Como já referi, sempre que havia possibilidade de se verem livres de mim, diziam-me: ó Cunha Simões, se não te importas vais representar o Partido aqui e ali. Nesse dia, já não me lembro qual a razão, fui almoçar à Tágide com o Presidente da Assembleia e Deputados dos outros Partidos. No final do Almoço o Dr. Vasco da Gama Fernandes disse:

- De hoje a oito dias vou à minha terra.

Eu sabia que o Dr. Vasco da Gama tinha nascido em Cabo Verde. Perguntei-lhe, vai a Cabo Verde?

- Isso mesmo. Do seu Grupo Parlamentar lembro-me que vai o Dr. Narana Coissoró. _ Eu fiquei excitadíssimo. Tinha escrito o "Tu cá, Tu lá", disponível na Internet www.cunhasimoes.net uma das personagens era de Cabe Verde.

Nunca tinha estado em Cabo Verde, mas descrevia muitas coisas das Ilhas porque num acampamento da Mocidade Portuguesa estavam jovens de Cabo Verde e eles contavam-me histórias deliciosas. Achei-os inteligentíssimos, muito simpáticos e sempre dispostos a colaborar em todas as tarefas. Eu devia ter os meus dezasseis anos, mas nunca mais os esqueci, nem às suas histórias. Quando escrevi o meu segundo livro, elas apareceram na minha cabeça e a maneira de homenagear essa gente foi agarrar numa personagem e colocá-la no livro. Por isso, quase instintivamente disse.

- Eu é que vou a Cabo Verde.

O Dr. Vasco da Gama puxou umas fumaradas pensativo, olhou para mim surpreso.

- Ó colega, eu já despachei todo o processo. O seu Grupo Parlamentar já tem tudo tratado. Está tudo decidido, para mais, o colega foi o único Parlamentar que recusou passaporte Diplomático. Eu ainda insisti com a minha Secretária para lhe mostrar as vantagens de o possuir. Ela voltou a dizer-me que o senhor Deputado voltara a recusá-lo por não lhe ver qualquer interesse. Foram as palavras que ela empregou.

- Neste momento, senhor Presidente, peço-lhe que aceite a minha petição.

- Perante a sua insistência, por mim revogo o que já fiz, mas agora tem o problema do seu grupo Parlamentar.

- Isso trato eu.

Quando cheguei ao Grupo Parlamentar chamei a eficientíssima secretária, a Mina, e disse-lhe:

- Ó Mina, há uma viagem a Cabo Verde e eu quero ir. Diga ao senhor Deputado Narana Coissoró que vou eu em vez dele.

- Por favor, senhor Deputado, não me peça isso. Logo com o senhor Deputado Narana Coissoró! - Mal acabou de dizer estas palavras, o Narana a entrar.

- Ó Narana, ainda bem que apareces. Tu ias a Cabo Verde...

- Vou.

- Ias. Agora vou eu na tua vez.

O Narana, que eu admiro pela sua inteligência, pela sua graça e pela sua irreverência respondeu-me à letra. "Tu vais mas é..." e voltou-me as costas para não me aturar. Eu agarrei-o por um braço.

- Tem calma. Espera. Ouve-me.

- Larga-me. Já te disse onde é que devias ir. Vai chatear outro!

- Bem, então não me resta outra alternativa... Quando começar a sessão, peço a palavra e demonstro que há deputados que exageram nas viagens ao estrangeiro. _ Acrescentei mais alguns argumentos muito convincentes.

O Narana olhou-me indeciso. Mas como sabia que eu era capaz de fazer isso e muito mais voltou-se para mim, furioso:

- Vai, vai...depois acrescentou uns desejos engraçados, que me deram muito gozo, e que não se concretizaram porque o Narana tem um fundo bom. As suas palavras, nem sempre exprimem os seus estados de alma. São mais repentes, como diz o povo.

Depois da desistência do Narana, a Mina e o Presidente foram impecáveis e eu tive o que necessitava para ir, e mais 1000 dólares para despesas.

Os dias que passei em Cabo Verde foram fabulosos.

A gente de Cabo Verde é de uma simpatia fascinante, as mulheres são lindíssimas, os homens inteligentes e educados, as crianças não pedincham, mas as dificuldades, com que se debatem, só não deprimem, porque é um povo de alma nobre. Mostram grande dignidade mesmo sofrendo imensas contrariedades.

Dentro de mim sentia uma angústia muito grande. Tudo aquilo que lhes comprasse lhes fazia falta para sobreviverem. Comprei uns calções de banho por 30 dólares.

Passados oito dias depois do regresso a Portugal fui à tesouraria para devolver 970 dólares. O chefe, julgo que se chamava Santos Velho, disse-me:

- Senhor Deputado, eu já falo consigo. Vá para o hemiciclo que depois tratamos disso. _ Não apareceu. Nesse dia esqueci o caso. Mas na semana seguinte estava determinado a entregar o dinheiro fosse a que preço fosse. Chamei de novo o senhor Santos Velho e quis-lhe entregar o dinheiro. Ele insistia em que ia falar comigo, mas eu sou muito teimoso e quando decido que tem de ser, não há ninguém que me faça mudar de ideias. Perante a minha determinação o eficiente chefe disse-me suplicando:

- Por favor, senhor Deputado, não me arranje sarilhos, é a primeira vez que um deputado quer devolver dinheiro.

- Mas este dinheiro não é meu. É do povo.

O senhor tanto implorou perante a minha irredutibilidade, que eu, desalentado, regressei tristíssimo por começar a perceber como todos estes meandros se movimentam. E quem movimenta estes dinheiros continua a fazer o que era hábito fazer. Como ninguém lhes diz para proceder de outra maneira, o sistema aguenta-se até alguém dizer como se deve gerir o património de todos. A falta não está nos funcionários, está no sistema.

Uma coisa era certa; o dinheiro não me pertencia.

Cheguei a Tomar, chamei uma empregada que tinha, a Manuela Cartaxo, e disse-lhe para ir pedir os papéis da Segurança Social a uma mulher que vivia na Rua Gil Avô, a Maria Fitas, e que uma vez se tinha lamentado que não recebia nada do Estado porque devia à Segurança Social. Paguei-lhe tudo e a sua situação ficou resolvida. Como ainda me sobrou muito dinheiro dividi uma parte pela Banda Filarmónica Nabantina e o resto foi para a Casa dos Pobres. Tenho de dizer isto, não para revelar um coração bom, pretensamente esmoler, nada disso. Sou como todos os portugueses. Umas vezes agarrado, outras liberal consoante o dinheiro que tenho no bolso. Conto todos estes episódios, que estavam reservados para daqui a uns anos ou até para depois da minha morte, para ver se nos compreendemos e se encontramos um caminho para resolver a dramática situação em que nos achamos. Eu já estou velho, não é por mim que luto, é pela continuidade de Portugal, que amo tanto como amo os meus filhos e netos e como amei os meus pais. Desculpe o desabafo.

O dinheiro não era meu. Era de você que me lê, era de todos os portugueses. Eu simplesmente tento aflorar motivos porque é que o País é ingovernável: neste caso e em semelhantes, porque cada um se vai displicentemente governando com o que é do Estado, em vez de considerar tudo quanto pertence ao Estado como haveres intocáveis. Algo que só pode ser rentabilizado a favor de toda a comunidade. Mas esta mentalidade está de tal modo enraizada que depois acontecem os julgamentos sobre sacos azuis, e sobre os bilhetes de avião, que deviam ter sofrido deste mesmo não-te-rales, e que mais cedo ou mais tarde tem de ser corrigido.

Quem beneficia destas verbas, normalmente não tem necessidade delas. Ganha o suficiente. Nem pensa que está a prejudicar seja quem for.

É por este e outros motivos que, em 2005, as contas do Parlamento ultrapassarão os vinte e um milhões de euros.

O Estado é excessivo? De que estão à espera?

Comecem pelo Parlamento.

Retirem 100 Deputados e racionalizem os serviços. Verão que o País fica mais leve, os Deputados restantes trabalharão melhor e ninguém fará greves ou reivindicará o seu posto de trabalho. Com isto são capazes de poupar dez milhões.

Governar com dinheiro toda a gente sabe.

Desde o começo desta revolução houve gente como Silva Lopes, Vítor Constâncio ou Rui Vilar que fizeram grandes esforços para travar despesas e realizar programas económicos viáveis. Mas tem sido o que todos sabem. Outros não se cansam de alertar para o descalabro que pode acontecer.

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