Na altura, Freitas do Amaral não disse nada, mas no momento da votação lembrou-se do que eu tinha dito, foi à minha bancada e disse-me em tom mais afirmativo que interrogativo: - O Cunha Simões vota connosco. - Não. Vota, não vota, juntaram-se os deputados à minha volta porque o Professor insistia. Se não vota, saia do hemiciclo. Não saio. Os outros colegas pediam-me, por tudo, para sair. Não resisti a tanto pedido. Saí triste e muito descontente comigo mesmo. Naquela Assembleia tinha votado sozinho, várias vezes, contra a opinião de todas as bancadas. Aos insistentes pedidos dos meus colegas não conseguira resistir. O mais grave estava para suceder nos passos seguintes. À minha espera está o Doutor Anselmo Borges, que vai comigo para Tomar. Quando lhe digo que vamos embora aparece a Mina, a Secretária do Partido a dizer-me para não abandonar a Assembleia pois vai haver uma reunião importante e necessitam que eu esteja presente. Os Deputados saem do hemiciclo. Vem tudo calado e cabisbaixo. Digo ao Dr. Anselmo Borges que não demoro mais de cinco minutos. Era só entrar por uma porta e sair pela outra assim que começasse a sessão. Quando entrei, o silêncio, contrariamente ao habitual, era de sepulcro. Pensei para comigo: "estão arrependidos de terem votado contra um Homem honesto". Encostei-me à porta do lado contrário. O que se passa depois é quase trágico. Não o conto agora por ser muito extenso e muitíssimo desagradável. Resumo: Freitas do Amaral propõe que me seja feito um processo disciplinar de maneira a correr com o indesejável que ia votar contra o próprio Partido, que não obedece às orientações do mesmo, que...que...que... Foram muitas as acusações e com razão. Só a primeira é que não era válida. Para mim era a mais importante. Defendi-me fazendo acordar todos os neurónios. Às 5 horas e 40 da manhã, o Professor Freitas do Amaral foi derrotado pela primeira vez e em votação de braço no ar, o que era contrário a tudo quanto até ali se tinha feito. Saiu da sala zangadíssimo. Esteve largos meses sem pôr o pé no Parlamento. Eu fiquei muito triste. A vítima do tempo perdido, foi o filósofo Anselmo Borges, a quem dei cinco minutos de espera, e teve de aguardar mais de seis horas. Já no carro e devido ao meu silêncio e à minha tristeza por ter derrotado, julgo que por causa do sono e de algumas verdades violentas, um homem de memória fabulosa e muito inteligente, como é o Professor Freitas do Amaral, tenho de o reconhecer, o meu companheiro de viagem não resistiu à curiosidade. - O sr. Disse-me que eram só cinco minutos... Esteve seis horas. Foi alguma coisa de grave? _ As minhas respostas eram negativas e secas. Um nó na garganta, não me deixava passar a mágoa. Naquele momento mais pelo Professor do que por mim. Ele tem muito mais valor que eu e, se o seu saber fosse aplicado correctamente ao serviço deste País todos lucraríamos. Mas o Professor Freitas do Amaral não aplica as tácticas dos grandes generais. Não fala com os soldados nem os sabe ouvir. Neste caso os peões. Ouve só aqueles que ele pensa estarem ao seu nível. Mas esses também não conhecem os problemas dos peões, do povo. Este hiato tem-lhe sido fatal. É verdade que ouvirá muita coisa sem interesse, mas...acabará por compreender onde estão as dificuldades do povo e como elas podem ser resolvidas depois da sua inteligência as transformar e implementar sem nunca ceder a demagogias ou facilidades. O Dr. Anselmo Borges é que não queria ver a minha dor. Insistia e insistia. Já muito perto do fim da viagem disse-lhe: - Excepcionalmente conto-lhe o que ali se passou porque o sr. ouviu cá fora, conversas truncadas _ às vezes as discussões eram exaltadas e as minhas exaltadíssimas _ Conto-lhe o que se passou, mas em segredo de confissão. O Dr. Anselmo Borges é padre. Ainda esperneou. "Que não era preciso, ele prometia", mas eu não abdiquei do meu segredo a não ser em confissão. Depois de ter dito que sim. Contei-lhe. Aí ele não resistiu. - Ó Cunha Simões, se amanhã os jornais soubessem o que me contou, você ficava o homem mais conhecido deste País. Eu dizia isto ao Nuno Rocha, - que era o Director do Tempo, e um dos jornais mais lidos do País _ e seria uma bomba. - Eu não podia olhar de frente o Dr. Anselmo Borges, ia ao volante. Só lhe respondi: - Se o senhor divulgar, o que acabei de lhe contar, a alguém, sabe que não evitarei o escândalo. O senhor sujeita-se a que eu use métodos que nunca usei, mas que sei que sou capaz de usar para defender uma posição que não é agradável para o Professor. Eu não procuro protagonismo nem o quero ter. Sei o que valho e sei como me devo comportar. Durante anos, nem à minha mulher contei o que tinha sucedido. Nos dias seguintes o meu sorriso desapareceu. O que aconteceu não me fez mais feliz nem que eu ficasse com zanga ao Professor Freitas do Amaral, mas ele ficou e isso foi-lhe fatal. Aí já não tive pena. Tive dó. Um homem inteligente e que quer ser Presidente de todos os Portugueses tem de saber aceitar as derrotas e as vitórias como combates de ideias em que a mais válida é aquela que vence. Por outro lado, um adversário, por mais fraco que pareça, nunca se deve minimizar. A injustiça só vence porque não tem quem a combata com firmeza. O português é, por natureza, um passa culpas. Se o Professor Freitas do Amaral me tem feito um processo disciplinar e me tem corrido do CDS por eu ser indisciplinado e por votar contra o próprio Partido, eu aceitava isso com toda a naturalidade. Ele era o Presidente do Partido. Tinha todo o direito em fazer cumprir as regras. Fê-lo no momento errado. Pelo meio estava um homem, o Engenheiro Nobre da Costa, que nunca conheci pessoalmente, mas que sabia que governaria com inteligência e honestamente. Eu acreditava nele. O Professor, não só me impediu de votar nesse Homem como me arrasta para um processo disciplinar. Antes de contar as consequências desta zanga infantil. Não lhe vejo outro nome; pueril, fútil dá tudo o mesmo resultado. Tenho de relatar outros factos que mostram a fragilidade de homens inteligentíssimos, mas que por serem maus estrategas acabam por não atingir os fins que tinham em mente. Antes do meu processo disciplinar, o Professor tinha feito outro ao General Galvão de Melo. Eu tentei defendê-lo, mas ninguém me deu importância e a votação por voto secreto contou só com seis ou sete votos contra. O General foi expulso do CDS. Isto teve várias consequências. O General é um Homem muito inteligente, frontal e nada vaidoso, embora aparente. Consequências: todo o eleitorado que admirava o General e acreditava que com ele estava seguro, de repente esse eleitorado desapareceu, mudou-se, deixou de votar, desinteressou-se. O CDS nas eleições seguintes devia ter pensado nisto, não pensou. Como disse o General é um homem de uma frontalidade e de uma natural e desarmante simpatia. Poucas semanas depois do sucedido estávamos no hemiciclo, uns oito ou nove, todos em pé e em amena cavaqueira, à espera que começassem os trabalhos, com o General concitando todas as atenções e muito bem disposto, quando chegou o saudoso Nuno Abecassis. O Nuno imediatamente estendeu a mão ao General para começar os cumprimentos habituais. Galvão de Melo mudou de semblante e com uma voz que ecoou por toda a sala disse-lhe: eu não cumprimento f de p. O Nuno, sem palavras, virou as costas e voltou para a sala do Grupo Parlamentar. Todos ficámos incomodados. O meu lugar era sempre ao lado do General por quem tinha admiração e respeito. Ele procedeu daquela maneira porque se convenceu que o Nuno tinha sido um dos causadores da sua expulsão. Julgo que estava errado. E eu, com muita cautela, disse-lho. Mas julgo não o ter convencido. O causador só podia ter sido o Freitas que se tinha sentido ofendido por causa de um artigo onde o General, ao ser questionado sobre o valor de Freitas do Amaral tinha respondido que era uma homem muito inteligente, mas que ainda lhe faltava muito para estar maduro. Foi mais ou menos isto. Estou a citar de memória. Era verdade. E tanto era que o Professor continuou a cometer erros, repiso, de estratégia, e com isso destruiu as bases do CDS, tirou os apoios e ficou só com as cabeças: o Adelino Amaro da Costa, o Basílio Horta, o Nuno Abecassis, o Ribeiro e Castro, o Anacoreta Correia, o Macedo Pereira, o Canaverde, o Luís Barbosa, o Rui Pena, o João Porto, o Adriano Vasco Rodrigues, o Lucas Pires, o Narana Coissoró. Os outros deputados, que compunham o Grupo Parlamentar, eram os catalisadores das bases. Depois havia uma gama enorme de conselheiros; economistas, empresários, gestores, de enorme valor, que acreditavam neste Partido e que lhe davam todo o apoio para o CDS ter a possibilidade de equilibrar o País e rentabilizar ao máximo tudo o que havia e o que viria. Ao Professor faltou-lhe a humildade, que neste caso se chama prudência. O segundo Governo Constitucional é sintomático. O País ganha andamento. As pessoas sentem-se confiantes. Freitas do Amaral tem um escol de gente invejável, mas, em paga, exige cada vez mais a Mário Soares, este transige quase em tudo, mas Freitas do Amaral quer ainda mais. Vasco da Gama, em Cabo Verde, disse-me que Freitas do Amaral tinha também exigido a Presidência da Assembleia da República, não sei se foi assim. Infelizmente o Dr. Vasco da Gama, já não o pode confirmar. |
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