Nesse ano eu fiz parte da direcção da Escola de Santa Maria do Olival e pedi para ser eu a tratar de todos os assuntos com os alunos. Julgo que no País era a única escola onde as paredes não estavam esborratadas com os slogans. Tive o cuidado de os avisar no princípio do ano. Eles respeitaram. Os portugueses não se governam nem se deixam governar porque não há quem os governe. Esta democracia não tem espinha. Não há quem se imponha, por medo da liberdade democrática que, entendem eles, proíbe melindrar os meninos e os graúdos e obrigar a trabalhar os ociosos.
Logo a seguir à Revolução fui convidado pelo PS, pelo PPD e Pelo CDS para fazer parte das listas de Deputados para a Constituinte. Por mais que insistissem não aceitei. A resposta era sempre a mesma. Não sei nada de política, não sou contra ninguém, os únicos que me interessam são os que não se sabem defender. Não aceito. E não aceitei apesar da perseverança que nessa vontade colocaram. Devo dizer que nessa altura eu era Director do "Templário" e escrevia abertamente sobre aquilo que considerava estar errado. Vieram depois as Legislativas, a 25 de Abril de 1976. Aí o CDS mandou um peso pesado, o Dr. Manuel dos Santos Machado, que no último dia e por volta das três da manhã conseguiu que eu aceitasse, como independente, fazer parte das listas do CDS e em segundo lugar, pelo que seria impossível ser eleito. Para a Constituinte o CDS não tinha metido nenhum Deputado por Santarém. Além do Dr. Manuel Machado, o saudoso Manuel da Silva Guimarães, meu conhecido e amigo, desde os tempos do Liceu da Guarda, foi outro que me moeu a cabeça para aceitar ser Deputado. Aceitei como independente, mas o CDS incluiu-me nas listas como se o não fosse. Erro grave. Eu conheço-me. Sou português. O Povo é só um. O Partido que beneficia o povo é aquele que tem o meu voto. Foi dramático, como se verá mais adiante. Apesar de estar em número dois, e as possibilidades de ser eleito serem nulas, depois de ter aceitado o compromisso dei comigo a pensar: "aceitaste. Agora tens de mostrar que és capaz de vencer". O aliciante estava na dificuldade. O português é assim: gosta da dificuldade, gosta do desafio, é inventivo, arrojado, mas detesta a indecisão. A indecisão faz que ele se desinteresse de tudo. Durante dois dias meditei como havia de fazer a campanha e resolvi ser auto-suficiente, tanto na estratégia, como na campanha. Comprei uma máquina de Stencil e imprimia ali a propaganda segundo a minha concepção e a mentalidade da gente do Ribatejo. Juntava a propaganda do Partido à minha. Via se alguma não se integrava no pensamento dos ribatejanos, aceitava-a, não dizia nada para não perder tempo com discussões, e metia-a no lixo. O MRRP quando soube que eu tinha uma máquina para imprimir a propaganda pediu-me se lhes deixava também reproduzir uns papéis. A UDP fez o mesmo, e perante o espanto daqueles que sabiam desta coabitação, nós continuámos, cada um a puxar a brasa à sua sardinha, mas sem nunca entrarmos em qualquer conflito e sem revelar os segredos de como captar eleitores. O Deputado Acácio Barreiros, com quem, às vezes esgrimia uns piropos virulentos no hemiciclo, mas com quem, fora daquele incómodo local, me dava bastante bem, um dia, em Alhandra, encheu-se de coragem e perguntou-me: - Ó Cunha Simões é verdade que parte da propaganda da UDP, espalhada na zona de Tomar, era feita em sua casa? _ Quando lhe confirmei o que me acabava de dizer, os seus olhos ganharam mais brilho. Ele devia ter pensado que o amor entre todos é a nossa força. Aquilo que nos divide não é mais que teimosia e ignorância. Ao despedir-se, a maneira como o fez, deu-me a certeza que tinha conquistado definitivamente um amigo, que, infelizmente, partiu cedo. Apesar da minha área de propaganda me ter sido limitada pelo Presidente da Concelhia, o Dr. Baeta Neves, eu, nos meus sonhos, vi que só podia ganhar se trabalhasse em todo o Ribatejo. Assim fiz. Um dia o Dr. Baeta encontrou-me no Couço a fazer campanha, ele, com ar aborrecido, disse-me: "ó Cunha Simões, esta não é a sua área. Você não pode estar aqui", ao que eu respondi com uma pergunta: mas os votos desta gente não contam para eu ser eleito? "Contam". Então a área também é fundamental para mim. Não me importo de trabalhar pela eleição de todos os Deputados do CDS. Ele não ficou muito satisfeito, mas não me voltou a dizer mais nada. Como a campanha era considerada de alto risco, pois diziam que os comunistas faziam e aconteciam, quando saía para distribuir a propaganda impressa e para dar uns dedos de conversa, aqui e além, normalmente ia sozinho, mas hoje posso dizê-lo; levava sempre um revólver comigo. Nunca quis matar ninguém, mas sentia-me mais seguro. Parava o carro nas terras, conversava, discutia, mas "o povo é sereno. É só fumaça", como dizia o almirante Pinheiro de Azevedo. Nunca nenhum ousou partir-me a cara. Às vezes eram duros nas palavras, mas eu, mesmo sozinho, respondia-lhes na mesma moeda e seguia para outra. Um dia, estava a campanha a terminar, venho de Ferreira do Zêzere e como tinha guardados ainda uns papéis para a volta fui-os deitando, junto das casas, na beira da estrada. Ao deitar os papéis tinha sempre o cuidado de reparar se vinha algum carro atrás e algum papel não voasse para o vidro e tapasse a vista ao condutor. Em determinado momento vejo que um Peugeot 504, com dois indivíduos, me segue. Por mais que eu abrandasse não me ultrapassava. Pensei: é desta que não te safas. Vais ter chatices. Apalpei o revólver, desapertei o botão do coldre. Abrandei mais. Eles não passavam. Quando vi um espaço aberto, fora da estrada, parei. Os sujeitos pararam a vinte metros de mim. Eu puxei o vidro para cima, deixei-o entre 7 a 10 centímetros aberto, tranquei a porta, pus uns papéis em cima do tablier do carro, tirei o revólver, puxei o "cão" para trás e preparei-me para o pior. De dentro do carro saiu um homem dos seus quarenta anos, forte, e com cerca de um metro e sessenta e cinco, um metro e setenta. Caminhava a passo incerto. Vi que avançava muito nervoso. Não me enganei. Chegou ao pé de mim e disse-me com esforço: - Pode-me dar um desses papéis que está a atirar ao pé das casas? - Posso. E dei-lhe um papel de maneira que o emblema do CDS ficasse na parte de trás. O Homem era de poucas letras, mas o sangue da fúria também o devia perturbar e não devia entender muito bem o que estava a ler. Eu esperei uns bons seis minutos para que ele lesse uma página que demorava, num máximo um ou dois. Nem assim entendeu o que tinha lido, mas voltou a página e viu o emblema do CDS. Aí ele desanuviou, um pouco o semblante e disse com voz de raiva: - Se você fosse comunista, matava-o. _ Quando ele diz isso repara que eu tenho o revólver apontado à sua cabeça. E disse-lhe: - Você não matava nada. Ao mínimo gesto você era morto. Deixe os comunistas, os socialistas, os do PPD, os da UDP, os do MRPP e todos aqueles que queiram divulgar as suas ideias. Como vê, o senhor sofria as consequências do seu ódio. E o revólver continuava apontado para o homem. Mas ele, mais calmo, apesar de visado, respondeu-me: - Mas o meu amigo matava-o a seguir. E chamou pelo o outro: - Ó João mostra lá o que temos aí. Mas mostra só. _ O outro mostrou uma caçadeira de repetição. Eu disse-lhe: mais um erro e mais um morto. Depois de o ter abatido a si, esperava que o seu amigo gastasse os cartuchos. Estaria coberto pelo carro. Julgo que ele não levaria a melhor e tinha de fugir ou deixá-lo-ia também ali estendido. Os portugueses são assim, matam e morrem por aquilo em que acreditam. A morte não tem significado.
Consegui ser Deputado e aí vou encontrar o que eu não queria saber. Este país nem se governa, nem se deixa governar porque não há quem o saiba governar; no entanto somos gente simpática, trabalhadora, prestável e inteligente. Os políticos têm de saber aproveitar as qualidades do povo, como afirma o Dr. João Alfredo Donas de Sá Pessoa. Dos dez milhões de portugueses, dois milhões são peso morto. Sobrevivem com muita dificuldade. Seis milhões e quinhentos mil vivem assim _ assim, e o restante um milhão e quinhentos mil comem, bebem, conversam, passeiam, tomam conta das empresas. Outros são Deputados e outros fazem parte do Governo. O que sobra, o Presidente, vê-se em palpos de aranha para manter a isenção ou a sua aparência. Luís Delgado, no Diário de Notícias de 13 de Dezembro de 2004, é demolidor: "...do discurso presidencial, e da sua argumentação vazia, começa a nascer, com convicção, a ideia de que Belém, o PR e os seus assessores, nunca estiveram empenhados em que o Governo durasse muito tempo. Nunca, em nenhuma circunstância, e nesse «jogo» não houve transparência, nem verdade, nem grandeza institucional. Esta certeza é tão simples como os argumentos usados pelo PR: em quatro meses não se avalia nada, nem ninguém, em consciência e com bom senso. Seja um Governo, uma empresa, um projecto ou um novo trabalho." No dia seguinte e no mesmo Diário de Notícias, António Ribeiro Ferreira é claro: " O Governo teve o que mereceu. O Parlamento, que aprovou um Orçamento do Estado em condições verdadeiramente humilhantes, contra a vontade de Mota Amaral, também. Falta a Presidência. O discurso de despedimento de Santana Lopes, proferido por Jorge Sampaio, poderia e deveria ser repetido, palavra por palavra, na resignação do Presidente da República." |
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