ANA O nosso amor foi sempre sublime. Deves continuar a escrever sem medos nem remorsos. CAMILO Agora, só escrevo lágrimas, dor, tristeza. ANA (agarrando um pequeno bloco) Se não fosse pelo sofrimento diria; abençoada dor que te faz escrever sonetos como este. CAMILO Que escrevi? ANA Escuta e vê se o cérebro que assim pensa, está agonizante. (lendo): "Que imensas agonias se formaram Sob os olhos de Deus! Sinistra hora Em que o homem surgiu! Que negra aurora Que amargas condições o escravizaram!
As mãos, que um filho amado amortalharam, Erguidas buscam Deus! A fé implora. E o Céu que respondeu? As mãos baixaram Para abraçar a filha morta agora.
Depois, um pai em trevas vai sonhando E apalpa as sombras deles, onde os viu Nascer, florir, morrer! Desastre infando!
Ao teu abismo, pai, não vão confortos. És coração que a dormir empederniu, Sepulcro vivo de dois filhos mortos.
(Ana beija-o na fronte.) CAMILO Pobre pai. Estava irreconhecível. A morte dos entes queridos mata a alegria, destrói a força, avinagra o espírito. ANA Escreveste o poema, o ano passado, e dedicado a um homem contra quem sempre lutaste. CAMILO Quando a morte ceifa inocentes, mesmo no campo de batalha inimigo, é necessário depor as armas e prestar homenagem a quem consegue sobreviver a tanta dor. ANA Teófilo sempre te detestou. CAMILO Teófilo Braga pode não ter a minha simpatia, na maneira como esgrime a palavra, mas tem todo o meu respeito quando sofre a morte da sua própria carne e tem a desdita de sobreviver. ANA Dois filhos mortos. Um, a seguir ao outro. CAMILO A maior dor humana. ANA Ninguém pode desistir da vida. Eu estou aqui para escrever o que ditares. CAMILO Hoje, não. Estou tolhido pela ansiedade e pela cegueira; já nem consigo distinguir os desenhos do tinteiro que o Henrique Coutinho me ofereceu. Agrada-me acariciá-lo mas, deixei de o ver. ANA O tacto também vê e delicia-se com o contacto, é uma questão de dias, vais ver que recuperarás a vista. CAMILO Só tenho os teus olhos. ANA São teus. CAMILO O cérebro nega-se a fantasiar e a rir. Agora o meu cérebro é o meu verdugo que só me recorda a turbulência do passado. ANA Faz um pequeno esforço. CAMILO Não consigo. |