FREITAS

Nasceste inteligente?

CAMILO

Eu sei onde me querem levar. Eu faço de conta. Nasci, mas herdei as maleitas do corpo. A inteligência, essa, devo--a àqueles que me ensinaram a pensar e aos padres Simões e Cardoso, especialistas em retórica que me obrigaram a esquadrinhar os recantos do pensamento e a observar tudo o que nos rodeia e não só aquilo que está à frente do nariz.

FREITAS

Vê como és grato. Não há padre, abade ou bispo em que tu não desanques.

FERREIRA MOUTINHO

Não foste tu que quiseste tomar ordens menores?

FREITAS - (rindo)

No seminário, para onde entrou em 1850, insistiram na morigeração dos costumes e isso não estava nos seus propósitos.

CAMILO

Criancices! Ataques de histerismo místico que passam pela cabeça de todos os jovens.

FREITAS

Desculpas...

FERREIRA MOUTINHO

Ele não lhes perdoa as lições de moral.

CAMILO

Não digam asneiras. Eles abriram-me os olhos. Ensinaram-me a esgrimir a palavra, não me compraram a consciência!

FERREIRA MOUTINHO

Tive os melhores professores e não considero que tenham sido suficientemente apelativos e convincentes para me aumentar a capacidade da inteligência.

FREITAS

Assim toda a gente era inteligente.

CAMILO

Se tivessem professores que ensinassem a pensar, em vez de matraquearem o blá-blá-blá...

FREITAS

Ó senhor Visconde, não insista!

CAMILO

Estou cego, sou Visconde, mas não estou patarata.

FREITAS

Não há mais génios entre nós...

CAMILO

Resolveram brincar comigo. Está certo, também, muitas vezes, me divirto convosco.

FREITAS

Não divertimos nada.

CAMILO

Estão perdoados. Mas aviso-os: já nada me faz rir. A vida terminou. Sinto-me um inútil.

(entra Ana Plácido)

ANA

A conversa continua animada.

FREITAS

O senhor Visconde resolveu abrir o livro.

FERREIRA MOUTINHO

Depois do Marquês, do Castilho e do João de Deus, temos a revolução do ensino pelo sr. Visconde de Correia Botelho.

CAMILO

Este país só tem futuro vendendo inteligência. É o único produto que não ocupa espaço e rende imenso.

ANA

Não é o que fazem as escolas?

CAMILO

Não. Ensinar, não é reprovar. Ensinar é amar e brincar ensinando. Enquanto os burros do meu país invadirem as escolas e ensinarem reprovando, o país é uma chumbada porque esta cambada ainda não entendeu nada da vida!

(os três batem palmas)

ANA - (agarrando-lhe a mão)

Ensina, meu amor, mas não te exaltes.

FERREIRA MOUTINHO

Vai escrever a biografia alargada e comentada do sr. Visconde?

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