LIVRO EM PREPARAÇÃO:
OLÁ JUVENTUDE
A inteligência é uma fonte inesgotável. Quanto mais se usa, mais ela dá
respostas surpreendentes.
O homem, sendo o mais inteligente, é o mais irracional dos animais.
Possui raciocínio e
usa-o para se destruir
e ofender.
Destrói-se fazendo
guerras absurdas na tentativa de obter pela força aquilo que não consegue
através do mérito.
Ofende-se deixando
que a ignorância se espalhe como a sarna ou a sida, e não lhe acode como faz a
estas doenças.
Ofende-se porque a
ignorância faz que o ser humano viva na miséria e na degradação mais abjecta e
de todo contrária ao estatuto de ser humano.
Por que esta irracionalidade,
do pseudo racional, sempre me fez muita confusão, dei largas ao instinto para
equilibrar o racional irracional que sempre senti e me faz ter desejos e vontades
que eu não quero ter porque agridem os outros.
O meu irracional é
muito forte e só puxando-lhe violentamente as rédeas ele não actua pior do que
deseja actuar.
Este livro é o percurso
de um irracional racional que continua a pensar que os guerreiros de
antigamente e os dos nossos dias são homicidas comandados que acatam as ordens
de chefes loucos que os condecoram para que assassinem os seus semelhantes.
Estes assassinos, a coberto da lei, são autorizados a matar e a morrer para
satisfazer os impulsos que não conseguem dominar.
Apesar do que acabei
de afirmar, todos somos deuses criadores que não acreditamos nas nossas potencialidades.
Todos somos capazes de atingir os objectivos, que idealizamos, a partir do
nada.
Quem acredita nos
seus poderes e nas suas capacidades usufrui a vida com a certeza de que os
seus direitos são ilimitados e que pode atingir, no campo do bem, do amor,
da inteligência e da riqueza, tudo quanto desejar desde que estude e raciocine
sobre aquilo que pretende.
Hoje, quase tudo está
inventado, assim, podemos aproveitar esses conhecimentos para os desenvolver,
aperfeiçoar ou criar as condições que nos interessam e ao mundo envolvente.
Há algo que tem de
interessar a todos sob pena deste mundo se desfazer pela indignação: a pobreza
e a miséria não são admissíveis num mundo onde os recursos são imensos e muitas
vezes estão totalmente desaproveitados ou mal distribuídos.
Há duas formas essenciais
para fazer sair o ser humano da lama onde nasceu e onde vive: a instrução
e a educação.
Pela instrução ele
adquire o conhecimento e o saber; pela educação atinge o nível moral,
intelectual e físico que há-de fazer dele um ser perfeito.
Os Governos dos países
ricos e desenvolvidos ao enviarem toneladas de alimentos, para os esfomeados
de África, fazem-no como quem alimenta animais de abate ou de combate. Estes
Governos não querem estes desgraçados nem instruídos nem educados, se quisessem
resolveriam rapidamente este flagelo.
As campanhas de
instrução e educação podem ser levadas a cabo através da Internet, da televisão
e apoiados por milhares de reformados que em vez de esperarem a morte a olhar
para o sol, aceitariam, por remunerações simbólicas, ensinar a desenvolver
aquelas regiões enquanto através dos meios de comunicação se insistia na
instrução geral e na educação.
O dinheiro, que os
países ricos gastam nas ajudas alimentares mal sucedidas e na entrega de milhões
de dólares, a Bokassas insaciáveis, daria para acabar com a miséria e a pobreza.
Os países ricos e
desenvolvidos precisam de povos menores e infelizes para experimentar as suas
armas até que elas se voltem contra eles próprios; veja-se o caso do Afeganistão
ou do Iraque a quem os Estados Unidos forneceram armas sofisticadíssimas.
Foi para entender
tudo quanto acontece e por que acontece, neste mundo, que o meu percurso se
fez sempre com os olhos postos no outro: por que é que eu tinha isto e o outro
não tinha? Por que é que eu era feliz e o outro não era? Por que é que as
guerras se desencadeavam se os homens tinham a fala para se entenderem? Estas
e outras questões condicionaram a minha vida e fizeram que eu escrevesse algumas
dezenas de livros nos quais tentei aproveitar os anseios das pessoas com menos
cultura e menos compreensão dos acontecimentos para os informar e incitar
a atingir níveis superiores de modo a poderem viver sem dificuldades e mais
felizes.
Neste livro descrevo
parte do meu percurso neste mundo e os meus anseios. As minhas tentativas
para chegar ao zero e a partir daí reconstruir a vida só para compreender
as dificuldades. Já bati no fundo.
O século XXI será
o teu e o meu século.
Vamos utilizar a
inteligência para vencer as dificuldades. Nunca tenhas receio dos chamados bloqueios do pensamento, de não seres
capaz de raciocinar correctamente em momentos decisivos. O bloqueio é um terror irracional que impede de resolver até os
pequenos problemas.
Usa e abusa da inteligência.
Aplica-a sem medo. Usa e abusa do pensamento, do raciocínio, da imaginação.
Nunca te enerves, nunca te precipites nas escolhas, nas compras, nos empregos.
Pensa, raciocina, decide. Sê feliz sem seres inconsciente ou pateta.
A inteligência aumenta
à medida que aumentas o teu conhecimento. Como disse no início: a inteligência
é uma fonte inesgotável, com ela tu atinges todos os teus objectivos. A memória
é o assessor da inteligência. Para teres boa memória basta tentares fixar
assuntos de interesse e que tu penses mais complicados do que o normal. Ter
boa memória é uma questão de aprendizagem. Insiste uma, duas, dez, quinze
vezes e faz assim sempre que pretendas saber mais, ao fim de um certo tempo
já te bastam três ou quatro leituras para fixar tudo com muita facilidade.
Repara nos actores. Eles decoram páginas e páginas de texto. Têm melhor memória
do que tu? Não. Treinaram. A memória ajuda a inteligência. As comparações
e as deduções são muito mais rápidas. O raciocínio torna-se fluente.
Partir do zero é o
que eu faço quando escrevo romances, poemas, peças de teatro, ensaios, crónicas
em jornais, conferências.
Criar novas formas
de trabalho ou de lazer tem custos mínimos; basta um pouco de cultura, muita
vivência, muito à vontade, algum estudo, lápis, papel e, se possível, um computador.
Aproveitar desperdícios,
inventar maneiras não poluentes de fabricar utensílios indispensáveis à vida
humana, nunca desistir de aumentar o progresso e o bem-estar humanos é outro
meio para alcançar objectivos.
No mundo há ainda
muito a descobrir, muito a inventar. Quem não tem outro trabalho, inventa.
Muitas companhias americanas, japonesas, alemãs, holandesas e outras dão prémios
aos empregados que melhorarem a produção com pequenas inovações. É sempre
possível inovar. É sempre possível ter novas ideias e descobrir produtos úteis
para a humanidade.
Vender ideias dá
lucros enormes. Com ou sem ajuda do Estado, inventa processos que façam evoluir
os países e desenhem a felicidade das pessoas.
Não guardes nem escondas
o que inventares. Não sejas egoísta, não queiras tudo só para ti; primeiro,
porque não lucras nada com isso, segundo, porque à hora da morte estás cheio
de remorsos e o dinheiro fica cá todo para os familiares te esquecerem o mais
rápido possível e aqueles a quem prejudicaste te rogarem tantas pragas que
nunca mais paras de dar voltas na tumba.
Vende os teus projectos;
entrega-os para benefício do mundo. Deixa voar a tua inteligência.
Ser diferente é ser
mais inteligente que os outros.
A inteligência é o
aperfeiçoamento e o desenvolvimento das nossas capacidades.
Ao entrarmos neste
mundo todos trazemos um painel fabuloso de instrumentos que têm a sua
localização na cabeça, daí a frase frequente dos professores: “puxa pela
cabeça”.
Alguns dos homens
mais inteligentes e que mais fizeram pela humanidade, quando jovens, e já
bem adultos, ninguém acreditava neles; nem pais, nem professores.
Einstein reprovou
várias vezes e foi considerado incapaz. Mas tens outros: Churchill, Volta,
Darwin, Picasso, Edison, Ford, Newton, Puccini, Zola, etc, etc, na juventude
eram considerados verdadeiras nulidades. Cito-os no livro “Doenças que as
Plantas Curam”.
Acredita em ti. Faz
um pequeno esforço e verás que a vida é um prazer aliciante e permanente.
Queres uma ideia para
um invento?
Quando se escreve,
um dos grandes medos de quem começa, uma das hesitações do escritor é: eu
escrevo para quê? Há gente que sabe muito mais do que eu, e já escreveu sobre
o mesmo tema ou temas semelhantes. Para quê perder tempo e fazer perder tempo
aos outros?
Este pensamento faz
desistir muitos escritores. Para que isso não aconteça, e comigo também
aconteceu, teria de compensar o leitor caso não lhe agradasse a história.
Durante quatro ou
cinco anos, não publiquei poemas ou pequenas novelas que tinha escrito devido
a estes preconceitos, só o fiz por razões adiante explicadas. Mas já em miúdo
achava que os livros também se deveriam comer. Quem não gostasse da história
comia-a. A frustração do escritor seria muito menor e o leitor compensava
a sofreguidão do saber, pela gulodice do sabor.
Aqui tens a ideia:
inventa o papel e a tinta comestíveis. Pasta de livro, com duração para um
ano de espera, como os bolos de mel da Ilha da Madeira. Duraria um ano, depois,
só a traça lhe conseguiria meter o dente.
O papel podia ser
feito de sementes de trigo ou de qualquer outro cereal, tratado para o efeito.
Como tinta serviriam as amoras, as romãs ou outro fruto fixante. Queres algo
de mais simples?
Depois de leres este
livro, escreve o teu próprio livro. Se nunca escreveste começa por fazer um
diário. Ao fim do dia, verás que as ideias e a realidade da vida te aparecem
com mais nitidez. Vais-te espantar das tuas asneiras ou até dos teus actos
mais nobres. Escreve os teus sonhos. Se conseguires que revistas ou jornais
te abram as portas, aproveita. Ao veres as tuas crónicas impressas, sentes
mais confiança em ti. Desta maneira, tu participas na vida do mundo, sentes
que és alguém, não és mais um animal bio degradável.
Akio Morita, o fundador
da Sony e inventor de muitos produtos no campo da electrónica, num encontro
casual com o meu amigo Manuel Guimarães, disse-lhe que os portugueses eram
o povo mais intuitivo e um dos mais inteligentes do mundo.
O português gosta
de aprender, mas tem de ter confiança em quem ensina. A falta de produtividade
não está na preguiça ou no desinteresse dos portugueses, está no material
obsoleto com que trabalham e na incapacidade dos mestres que os orientam.
Eu acredito no
cientista Japonês: em breve passaremos de um país de analfabetos ao país mais
alfabetizado, mais culto, mais evoluído e mais civilizado do mundo.
É o analfabetismo
e o semi-analfabetismo, em que vive uma boa maioria do povo português, que
o faz arrastar pela cauda da Europa. Isso não significa menos capacidade,
nem menos inteligência. Significa forçar mais a contemplação para,
neste século, resolvermos não só o problema português mas ajudar nos problemas
de todos os povos do mundo. Fizemo-lo há quase mil anos quando quisemos ser
independentes e nos estruturámos de modo a criar uma nação sólida. Mostrámos
todas as nossas capacidades quando nos envolvemos na aventura marítima ao
descobrir dois terços do mundo desconhecido e ao edificarmos novas nações.
Voltamos a fazê-lo agora com mais saber, consciência e ponderação ao
integrarmos a União Europeia.
Foram os portugueses
que juntaram os povos dos vários continentes, serão agora os portugueses que,
fundidos na Europa, conseguirão a solidariedade e a igualdade mundial. Ou
ela, ou uma nova destruição do planeta com mais de 600 milhões de anos e 2,5
biliões de seres, ditos humanos, a viver pior que os animais, ditos irracionais.
A diferença entre
os australopitecos, ou seja; os primeiros arremedos de homens e o Homo sapiens
sapiens, que hoje anda para aí engravatado ou esgravatando o lixo da subsistência,
a diferença é mínima; os cérebros equivalem-se, na medida em que, os primeiros
tinham crânios pequenos, e não sabiam tirar partido deles. Aos dos nossos
dias acontece-lhes o mesmo. Ainda não descobriram que não vivem sós neste
planeta. E, se não descobrirem rapidamente, a explosão é inevitável. Aí volta
tudo ao príncipio: outros 300 ou 400 milhões de anos a passarmos de poeira
a vermes, de vermes a batráquios, de batráquios a bugios, de bugios a australopitecos,
de australopitecos a Homo erectus, de Homo erectus a Homo sapiens e de Homo
sapiens a esta espécie sempre em vias de extinção logo que tenta, por todos
os meios, envenenar o planeta ou destrui-lo com as suas armas de defesa e
os seus exércitos de ataque. É a luta do homem contra a Natureza. Enquanto
esta, teima em o proteger, para encontrar um parceiro que a fecunde em actos
sucessivos de amor. O homem continua a fazer-lhe negaças.
O Império Romano, o
Mongol, o Persa etc., foram desenhados à espada. O Império Português foi a
geminação do conhecido ao desconhecido e a entrada deste, no mundo civilizado.
As conquistas, quando as houve, foram motivadas por actos de defesa ou auto
defesa quando os povos rejeitavam as nossas propostas de paz e de comércio.
Apesar de todos os
defeitos dos portugueses tenho a certeza das nossas aptidões.
O Quinto Império tem
como base o pensamento e como suporte os canais digitais. A boa utilização
de um e dos outros terá, como efeito, o acesso da educação a todos os povos
do mundo, a eliminação da miséria e a instauração da paz. Sem que estes três
items sejam activados, o ser humano sujeita-se a cataclismos periódicos e
devastadores.
Pensa por que será
que o mundo tem mais de 660 milhões de anos e só há pouco mais de 5 mil anos
temos documentos incoerentemente escritos. Não conto as garatujas feitas nos
15 ou 20 mil anos anteriores, apesar da reverência com que são tratadas, em
contraste com o desrespeito pelos analfabetos e os miseráveis que sofrem todos
os dias por causa da sua incapacidade ou do seu nascimento.
Eu acredito nos
portugueses.
O país tem de apoiar
sempre os melhores. Os melhores são todos, com excepção dos tolos. Todas as
hipóteses têm de ser consideradas e os Governos têm de pensar neste sentido.
Quando os Governos não o fazem são os cidadãos que têm de se unir para sua
defesa. Um dos Governos que melhor protege os seus cidadãos é o Israelita.
Como exemplos de outras uniões temos as Igrejas, os Rotários, os Lions, a
Maçonaria, a fundação Aga Khan etc., onde os seus membros se protegem uns
aos outros. São pequenos Governos dentro de outros Governos.
Há muitas companhias
americanas e Japonesas que têm um orçamento maior do que o do Estado português.
Elas fazem a formação dos seus operários É uma questão de boa gerência para um
óptimo resultado.
Cheguei a pensar em
unir os pobres, mas o mal dos pobres é a sua ignorância. Muitos não sabem
o que querem. O não saberem ler, escrever, contar, o não saberem raciocinar
faz deles farrapos perdidos no tempo. Para unir os pobres tinha de acabar
com o analfabetismo e para isso é preciso motivar os governos ou multi-milionários
muito poderosos.
A pobreza foi, e continua
a ser, a minha grande angústia. A minha dor era tão grande que, no primeiro
livro que escrevi, dizia que desejava ser cego para não ver o que me rodeava.
Lembro-me como meu pai ficou triste e me reprovou tal desejo. Ele disse-me:
“Tu estás a ser inconsciente
e egoísta. Inconsciente porque rejeitas um bem, e egoísta porque tentas fugir
à realidade da vida. Se te aflige tanto a pobreza e queres acabar com ela
luta para que isso aconteça, mas garanto-te que tens de o fazer de olhos bem
abertos. Cego, não terás quaisquer hipóteses de sucesso.”
A miséria que nos
rodeia faz de nós verdadeiros excrementos do céu.
Como é possível ser-se
democrata ou ter qualquer outro rótulo político e deixar morrer de ignorância
e fome mais de dois biliões de seres? Ou democracia é hipocrisia ou democracia
é um enorme falhanço político, económico e cultural, assim como o são as outras
formas de governo. A miséria não se combate dando, combate-se ensinando.
Em Portugal só a Fundação Gulbenkian, poderia ajudar a
resolver rapidamente a situação já que o Governo não tem conseguido atingir
os objectivos: erradicar o analfabetismo, e aumentar o gosto pelo conhecimento.
A consequência seria uma diminuição, muito grande, dos mais carenciados em
virtude dos instrumentos de defesa que lhe seriam fornecidos, logo: aumento
da prosperidade do país no seu conjunto. Vejam-se os casos da Noruega, Suécia,
Finlândia, Dinamarca, Japão onde, praticamente, não há analfabetos. Verifique-se
a prosperidade e o bem-estar desses povos apesar das condições climatéricas
que os fustigam.
Desde miúdo nunca me
conformei em ter amigos ou conhecidos pobres e prometi que, até ao fim dos meus
dias, por maiores dificuldades por que passasse, havia de desvendar o porquê
desta indignidade que nos mancha a todos e que faz viver, mais de metade dos
seres humanos, em condições de escravatura económica e cultural.
Para combater a pobreza
teria de conhecer todos os segredos da vida, passar por dificuldades e pelo
máximo das profissões.
Desvendo-te a minha
vida para saberes que todos erramos, mas que todos podemos alcançar o objectivo
que perseguimos. Não há santos ou pecadores, todos somos humanos e sujeitos
à cegueira da ignorância quando não paramos uns segundos, para utilizar a
inteligência.
Quando somos crianças
sofremos tratos de polé, mas temos as nossas defesas.
Em criança, salvo
quando estamos muito obcecados por uma brincadeira, os nossos sentidos estão
sempre alerta. A criança é uma esponja que absorve tudo e tudo tenta
descodificar.
Minha mãe magoava-me,
sem dar conta disso, quando dizia às amigas e às vizinhas:
- Ele devia ter saído
rapariga.
Apesar de criança
ficava triste. Não sabia porquê. Para ajudar “à missa”, as amigas respondiam
invariavelmente:
- Ele é tão bonito,
até parece uma menina.
Para comprovar essa
afirmação lambuzavam-me de beijos que eu limpava discretamente ou corria para
a casa de banho fazer uma lavagem ultra rápida. Minha mãe encarregava-se de
me dar banho duas e três vezes por dia e mudar de fato sempre que eu lhe aparecesse
com alguma nódoa ou a cheirar menos bem. Tratava-me como se eu fosse uma menina
de verdade.
Minha mãe tinha o
sentido do ridículo no feminino. Nunca a vi sair de casa sem a deixar impecavelmente
arrumada e ela impecavelmente arranjada.
Nas mulheres notam-se,
com mais evidência, as suas fraquezas: se são feias, nota-se mais a fealdade,
se são gordas, nota-se mais a obesidade, se fumam nos restaurantes, nota-se
mais o fumo, as frustrações e as rugas. É próprio do feminino. O homem é só,
e ainda, um prenúncio e uma visão do ser perfeito.
Minha mãe tinha dois
enormes e simpáticos vícios: ler e fazer renda.
Eu tenho fotografias
onde estou de gola de renda. O imperdoável é que as passou a usar nas minhas
cuecas e a dar-me bonecas para brincar. Com tanta renda e tanta bonecada não
sei como não saí maricas, mas não, pelo contrário a brincadeira com as bonecas
fez-me perceber de imediato, a elegância e o cheiro femininos que ainda hoje
me fazem tremer de emoção e prazer. Fiquei sempre apaixonado pelas bonecas
portuguesas, as mais carinhosas, as mais doces e sensuais, muito comparáveis
às tailandesas e às chinesas. Quando desinibidas e loucas são tão calorosas
e sensuais como as morenaças africanas.
Graças à D. Lucrécia,
minha mãe, aprendi a amar, desde criança, e a respeitar e admirar o ser mais
belo que a Natureza produziu.
Eu não me apercebi
da gravidade da situação. Brincar com bonecas! Sabem lá o que isso representava
nesta diferença de sexos, machista e marialva do touro português, até ao dia
em que fui à farmácia do Dr. Edmundo. Estava lá o sr. Fonseca, também conhecido
por Casaca de Ferro. Era muito valente e muito rezingão. A garotada adorava-o,
ouvia-o como a um oráculo por ser o único que nos parecia levar a sério. Ele
olhou para mim e perguntou-me:
- Tens rendas nas
cuecas?
- Tenho.
- Isso é só para as
raparigas. E tu és?
- Não. Eu sou touro.
- Mostra.
Eu mostrei perante o
indisfarçável gáudio dos mais velhos.
- Já vimos. És, és.
Os homens não usam rendas. Tira-as.
- Como?
- Puxa, que elas rasgam.
- E minha mãe?
- Diz-lhe que se
rasgaram, e tantas vezes se rasgam que ela acaba por compreender que tu és
rapaz de verdade.
Eu puxei. As rendas
ficaram em mau estado. Pelo caminho parecia já ouvir minha mãe: “Olha que
tu apanhas se isto torna a acontecer”, pensei que também devia ter dito ao
meu amigo Casaca de Ferro que brincava com bonecas que minha mãe me oferecia
quando ia às lojas ou aos mercados.
O meu pai não dizia
nada. Ele adorava-me, mas era incapaz de contrariar minha mãe. Ela era a chefe.
Nunca os ouvi discutir. Estava sempre de acordo mesmo que, às vezes, minha
mãe insistisse na pequena provocação. As mulheres gostam do combate leve,
mas ele, nunca deu luta.
Minha mãe batia-me
frequentemente, ele nunca interferia.
Nos meus oito anos
lembro-me de duas tareias marcantes. Por esse tempo já me distraía de duas
maneiras: ou a sonhar histórias ou a querer fazer experiências misturando
produtos que nem sempre davam bom resultado e que por duas vezes me chamuscaram
as sobrancelhas.
Num dia, propenso
ao sonho, depois de tomar o pequeno-almoço, resolvi deitar-me debaixo de um
sofá, na sala do primeiro andar. Aí passei todo o tempo a congeminar novos
inventos, pequenas escaramuças, histórias de fadas, paraísos terrestres onde
toda a gente fazia o que lhe apetecia. Cheguei mesmo a pensar que viver em
África ou na Austrália devia ser o máximo: na África ensinava os macacos e
os gorilas a trabalhar, assim eles passavam melhor o tempo e nós tínhamos
a possibilidade de viajar e de inventar muito mais coisas. Na Austrália os
cangurus seriam óptimos mensageiros. Até podiam substituir os carteiros.
Divagando sempre,
nunca mais me lembrei do almoço. Meus pais, empregados da empresa de camionagem
de que meu pai era um dos proprietários, polícias e outros amigos procuraram-me
por todo o lado. Estavam aflitíssimos e conjuravam o pior: “foi raptado, caiu
a um poço, anda perdido na mata”. Quando decidi sair do lugar dos sonhos não
havia ninguém em casa.
Levei uma sova monumental
de minha mãe. Meu pai nunca me bateu.
A outra foi na Quaresma:
o amigo Casaca de Ferro convenceu-me, a mim e a mais dois, a pregarmos as
saias das velhas, na igreja matriz. Sempre que as matracas fizessem aquele
barulho característico; rac,rac,rac,rac e que muitas pessoas imitavam batendo
na madeira. Nós, com um bolso cheio de pregos e uma pedra, segundo as instruções
do orientador, sempre que as matracas faziam rac, rac, rac, nós traque, traque,
traque; íamos pregando as saias das velhas. Quando as mulheres se levantaram
foi um pandemónio. O padre Matos olhava-as inquieto, o que estaria a acontecer?
Umas, meio despidas e outras de saias rasgadas.
Descoberto o ímpio
levei até saciar a cólera de uma mãe, muito amiga, mas ainda longe das práticas
pedagógicas dos nossos dias. Pagou todas as saias rasgadas das pessoas que
se lamentaram do sucedido e que não tinham achado graça, as outras, que não
tinham sofrido o ataque, sufocaram até às lágrimas; barulho não admitia o
rigoroso e ilustrado padre Matos. Eu continuei a ser “vítima” da incompreensão
dos adultos.
Mas nenhuma sova me
servia de emenda. Lembro-me que passado pouco tempo, e também instigado pelo
ateu e convincente amigo Casaca de Ferro, despejei um frasco de tinta de sapatos
nas pias de água benta. O escândalo foi enorme e as risotas também. De coscuvilhice
em coscuvilhice, as velhas, chegaram à conclusão que um dos participantes
nas benzeduras, tinha sido eu. Bem neguei, fazendo figas atrás das costas
para não ter de me ir confessar e dizer a verdade ao padre. Minha mãe, pelo
sim, pelo não puxou-me uma orelha e lá foi dizendo: “se eu descubro que estás
a mentir...”
Quando a sova era um
pouco maior e aparecia marcado com a escova, meu pai oferecia-me boas prendas
que minha mãe contestava.
- Tu é que o estragas.
- Mas não adiantava muito mais, nem se opunha à oferta de brinquedos dispendiosos.
De uma sova memorável
ganhei, de uma só vez: um automóvel de pedais, que era um sonho, e uma trotinete
onde eu atingia velocidades fabulosas. Toda a miudagem da vila andava nela.
Fazíamos corridas, para ver qual é que demorava menos tempo, desde o largo
da igreja até ao chafariz. Eu ganhava sempre. Não admira, além de gostar de
ganhar era o dono da trotinete e treinava em todo o sítio. Numa dessas corridas,
na curva do largo da vila, vi que um burro vinha fora de mão, guinei para
o outro lado, o dono do burro fez o mesmo. Resultado: fui contra o lancil
do passeio, fiquei debaixo do burro, sem a sobrancelha do lado esquerdo e
sem a trotinete que não teve conserto, ou meu pai disse que não tinha, para
não me acontecer pior.
Apesar de tão mal
tratado, o Dr. Moutinho, que me cozeu com 15 pontos, ainda disse:
- É bem feita. Agora
a tua mãe devia cascar-te.
Ela abanava a cabeça.
Bem lhe apetecia, mas perante o que poderia ter acontecido, conteve-se.
Quando me batia, eu
não deitava uma lágrima e não deitei enquanto estava a ser cozido.
Hoje, minha mãe está
com mais 90 anos e quando lhe digo que exagerava, ela, com aquele ar gaiato,
que ainda mantém, mão levantada, continua na sua: “ainda foram poucas. Só
se perderam as que caíram no chão.”
As sovas que levei
tornaram-me insensível à dor: grandes ou pequenos com quem me envolvesse à
pancada sabiam que tinham um adversário, aparentemente frágil, mas muito duro.
Por estranho que pareça, nunca fiquei zangado mesmo quando me chegavam a roupa
ao pêlo.
Minha mãe avisava-me,
imensas vezes, para não mexer, não tirar, não estragar, não fazer experiências
com produtos que eu desconhecia. Ela tentava todos os métodos. Era escusado.
Só fazia aquilo que achava que devia fazer e era imune a toda e qualquer coacção.
Um dos meus prazeres
era ir para dentro de um galinheiro que ficava junto da casa. Sentava-me no
chão, tirava os coelhos das casotas, misturava-os com as galinhas e com os
patos, e eu, no meio, enchia-os de comida: couves e milho. Os patos eram os
mais engraçados e os que me faziam mais cócegas. Sem qualquer pudor metiam
o bico por todo o lado sempre que lá sentissem um pouco de comida. Minha mãe
avisou-me imensas vezes:
- Ainda te fecho na
varanda. Ficas a ver as galinhas, os coelhos e os patos até te fartares. -
Assim fez, mas por pouco tempo. As pessoas, preocupadas, batiam-lhe à porta;
“o menino estava a atirar tudo para a rua”. Entre os objectos desfez-se um
bonito Santo António do século XIX, que minha mãe venerava e lhe ajudava a
encontrar tudo quanto perdia ou eu escondia só para brincar com ela, quatro
cuecas com as rendas rasgadas, cinco pares de meias, um bibe, uma vassoura,
uma pá, uma escova, um pente, um esfregão e um penico que quase acertou no
jardineiro da vila, o sr. António Cruxinho.
Minha mãe não se
cansava de repetir:
- Ele é impossível.
Não era melhor ter saído menina?
Quando nasci minha
mãe não teve dores de parto: levantou-se da cama, deu dois passos e aí vou
eu, feito tolo, direito ao chão.
Ela justificava a
minha rebeldia devido a esse facto. Era a minha costela independente a manifestar-se
logo à chegada a um mundo já meu conhecido. Minha mãe tinha servido de suporte
para a transferência entre o passado e o presente: é essa a função de algumas
mulheres: o acolhimento dos viajantes do espaço, daqueles que, sempre insatisfeitos
com os progressos do palpável, vão e voltam até ao fecho dos séculos. Talvez
por ter esta opinião nunca senti minha mãe como mãe. Muitas vezes lho disse.
Ela pensava que eu estava a brincar, no íntimo eu sentia o que estava a dizer
e assim nunca fiz qualquer diferença entre o amor que lhe dedico e o amor
que dedico a qualquer outro ser humano. Amo o meu semelhante e por isso me
enfureço quando vejo que ele não é capaz de deixar de ser capacho, de se levantar
e enfrentar a vida com o prazer de vencer todos os desafios e de amar. Amar
só por amar sem outro interesse que a felicidade de todo o ser humano.
Eu gostava imenso
de ir para a garagem, mexer nas peças dos carros, sentar-me ao volante de
cada um e imaginar corridas de automóveis. Meu pai, quando lá me apanhava,
agarrava em mim e ia levar-me a casa. Eu não tinha emenda.Aos dez anos já
era capaz de conduzir razoavelmente. Este conhecimento foi motivo de muita
apreensão para meus pais. A partir dos doze, treze anos, incitado pelo António
Fonseca, pelo Fernando e Artur Portugal, pelo José Rossa saíamos todas as
noites com o carro que estivesse disponível. Preocupávamo-nos mais com a polícia
do que com o martírio dos pais. Às vezes aparecia um encartado mais velho
e que nos fazia companhia, lembro-me do Dr. João Robalo Pombo, ainda estudante,
ter alinhado nestes desvarios.
Quando meu pai tirava
o rotor dos automóveis e tínhamos resolvido sair, nenhuma dificuldade nos
fazia mudar de ideias; serviam as camionetas de carga ou as de passageiros.
Meu pai nunca me dizia
nada, queixava-se a minha mãe e esta moía-me a cabeça, mas não me batia. Aquela
não era a sua jurisdição e tentava, por todos os meios, que meu pai, pelo
menos, me ralhasse. Ele sofria, mas era incapaz de o fazer. Só uma vez, com
ar triste, me chamou a atenção para uma tropelia.
Nas viagens que fazíamos,
íamos, muitas vezes, para uma Quinta onde meu pai tinha muitas galinhas. Nesse
dia, como nos apetecesse variar de ceia, o António Fonseca agarrou na espingarda
e a tantas galinhas atirou que lá conseguiu matar uma. Dessa vez meu pai não
resistiu ao desabafo.
- Não deviam andar
aos tiros às galinhas. Duas não morreram, mas devem sofrer muito. Eu via-as
coxear, fui ver porque era e deparei-me com elas cheias de bagos de chumbo.
Passei toda a tarde a tirar-lhes o chumbo. Com certeza tenho de as mandar
matar.
Disse-lhe que tinha
sido eu e pedia-lhe desculpa. Mas não tinha emenda. À medida que os anos passavam
eu comecei a saber de mecânica como um especialista. Eram os próprios mecânicos
que me davam as lições.
Fiz milhares de quilómetros
sem possuir licença de condução. Nunca tive um acidente. A partícula que nos protege, que trazemos
connosco e nos guia, também gostava daquelas brincadeiras, que só não foram
perigosas, porque ela estava comigo.
O interessante é que,
com os meus amigos, a partícula
me avisava para não o fazer e isso afastou-me sempre das suas conduções. Eu
senti isso por dois avisos. O primeiro foi com o João Maria Milheiro. Os pais
tinham comprado um belo Volkswagen verde, o João Maria sonhava com corridas
de automóveis e esmerava-se na condução, eu evitava andar no seu automóvel,
mas o António Fonseca era louco por andar de pó, pó, e tendo o João Maria
parado junto a nós, o António Fonseca começou a elogiar o João Maria, e tanto
o elogiou que este insistiu para eu dar uma volta até à Senhora do Incenso,
tentei recusar, mas ele insistiu tanto que lá entrei contrariado. O João Maria
deu a volta junto à igreja Matriz e aí vai de acelerar, vila fora, até que
perto das tílias o automóvel ia a grande velocidade, meu pai viu-nos de relance
e três segundos depois ouvia um estrondo enorme. Meu pai, louco de preocupação,
correu desvairado até ao local; pensou que tínhamos batido no muro e tivéssemos
caído de 7 ou 8 metros tal foi o estrondo. O João Maria conduzia muito bem,
mas ainda era muito jovem e ao fazer a curva apanhou óleo e teve o azar de
dar um pequeno toque no travão, perdeu de imediato o controle do automóvel
e só a sua perícia nos fez bater na parede do lado do Asilo Bárbara Tavares
Proença. A frente do carro subiu toda e, só por uma sorte fabulosa, não nos
aconteceu mais do que um forte apertão. De todos os que acorreram ao local
de acidente só meu pai estava sem fala.
Com o José Rossa a
conduzir tive dois acidentes, um em Penamacor: o automóvel ficou a balouçar
num valado e outro em Coimbra; foi raspando por nove ou dez carros até que
eu consegui travar a máquina. A partir destas experiências deixei-me de aceitar
convites de amigos meus e de conhecidos. A partícula
não queria e, como eu sou supersticioso, ou dito de outra maneira, como tenho
uma certa premunição do que vai acontecer, por mais que me convidassem não
aceitava, mesmo que ficassem aborrecidos como algumas vezes sucedeu com o
Fernando Portugal.
Eu não quero ser como os cães e os gatos. Eu quero
ficar na história, quero um lugar permanente neste mundo revolucionário com
mais de 600 milhões de anos.
Quantas vezes já nascemos, morremos e renascemos? E no
entanto continuamos selvagens e incultos.
Selvagens porque nos continuamos a perseguir e a matar
uns aos outros.
Incultos porque não nos entre ajudamos.
Em 500 milhões de anos devíamo-nos ter destruído totalmente,
pelo menos, 5 vezes. É mais que tempo do homem se tornar humano.
Eu quero ficar neste mundo porque quero ser humano.
E tu, que me lês,
que queres tu? Ou que pensas tu desta minha inquebrantável vontade?
No primeiro dia que
fui para a escola primária foi uma loucura. Estava excitadíssimo. Ia aprender,
com regras, ia sequioso por saber mais. Meu pai já me tinha ensinado a ler.
A minha Cartilha foram os jornais: “O Século” e o “Diário de Notícias”. Eu
gostava de saber muito mais. Ia ser independente. Recusei que minha mãe me
fosse levar à escola. Conhecia bem o caminho pois era ali e no jardim que
jogava à bola, às escondidas, aos cowboys e onde já tinha partido a cabeça
quatro vezes.
Tal como todos os
miúdos, os prazeres das brincadeiras e a delícia de uma bola eram irresistíveis.
Ainda não tinham começado as aulas já estávamos agarrados ao esférico e em
exacerbada partida de futebol. Atingiu o auge quando, na fúria do jogo, o
José Rego meteu um violentíssimo golo numa vidraça do primeiro andar. Todos
se encolheram. Daí a segundos apareceu o professor José Manuel Landeiro, de
bola na mão, olhos arregalados, branco de emoção.
- Quem fez isto? -
Apontou os destroços.
O Zé Rego estava
entre mim e o Prof. Landeiro. O professor tremia com os nervos em chama.
Voltando-se para mim, com olhos enormes, gritou:
- Quem foi?
Perante aquela voz
tonitruante, lembrei-me do lobo mau e, instintivamente, assinalei o canhestro:
- Foi este. - O Zé
Manel, como nós o tratávamos, pelas costas, o Prof. Landeiro, não esteve com
meias medidas: ZÁS! O Zé Rego baixou-se e eu apanhei uma bofetada que valia
50 sovas de minha mãe. Por incrível que pareça, o professor, não se apercebeu
que eu tinha sido a vítima da sua fúria, voltou as costas, e resmungou:
- Ficam sem a bola.
Quando todos viram
o Zé Manel fora do alcance de uma boa risada, foi gargalhada geral sem que
eu achasse piada; a face ficou vermelha durante mais de duas horas. Fiz logo
jura mental que o meu prestígio nunca mais seria enxovalhado e que nunca mais acusaria alguém.
Para entender a zanga,
do Professor José Manuel, é preciso compreender porque é que ele procedia
assim. O Prof. era muito exigente, ensinava bem e era um intelectual. Tinha
publicado: “O Concelho de Penamacor, na História, na Tradição e na Lenda”,
vários escritos sobre arqueologia e história, fundou o jornal “De capa e batina”
etc. etc. Só batia nos alunos em determinados dias. Sempre que a mulher, no
dia anterior ou naquele mesmo, lhe tinha batido, o que acontecia algumas vezes.
Eu e muitos dos meus colegas como o Ginja, o Gonçalves, o Armando e outros,
assistimos a essas cenas.
- Anda cá Zé Manel.
- Dizia a mulher, ele respondia-lhe:
- Oh Bitinha, tem
calma.
- Anda cá. - E ali
andava, o Zé Manel, à roda da mesa, até apanhar umas chineladas. Ele levava-nos
lá para casa e nós assistíamos ao acto, pelas frinchas do soalho. Mas tudo
muda nesta vida: alguns anos mais tarde, o Prof. Zé Manel e a mulher foram
para o Montijo, e, fosse pela harmonia dos ares, ou fosse porque arranjou
uns amigos que o embebedavam depois das aulas, o certo e sabido é que, todos
os dias, até falecer, dava sovas monumentais na mulher.
Era bom professor,
era inteligente, muito trabalhador, tinha gosto em ensinar e podia ser um
homem feliz com a D. Benedita a quem dedicou o livro supra mencionado. “A
minha mulher, Benedita de Jesus Nunes Gonçalves”, acrescentando na página
seguinte: “Benedita: aceita este livro, escrito sob a luz do teu olhar e ao
ritmo do teu coração”. Um homem que tem a coragem de oferecer um livro e declarar
nele, publicamente, o seu amor, é justo que leve umas chineladas como se fosse
um garoto? Há qualquer defeito no ser humano que o faz cometer actos impensados.
O Prof. José Manuel
Landeiro é alguém que recordo, muitas vezes, para tentar compreender por que
é que as pessoas hão-de insistir em implicar umas com as outras, em serem
polémicas sem necessidade?
A bofetada do Zé Manel
serviu-me de lição. A partir desse dia fui sempre um intransigente defensor
dos meus colegas. Quase todos os anos fui chefe de turma.
O encontro entre um
homem e uma mulher, ou a vida em comum de um casal principia a desfazer-se
quando o fascínio começa a esmorecer. A ligação dos corpos é muito importante.
O corpo é a materialização que os sonhos precisam para manter a chama viva
da compreensão. Quando o homem ou a mulher se desinteressam pelos sensores
que espevitam o amor; a ternura, a ligação do casal passa de contentamento
a tortura.
Tendo a certeza de
que o sexo, no homem, é o seu ponto de equilíbrio. Tentei, em vários livros,
apontar soluções para alguns percalços sem importância, e susceptíveis de
reparação, que deixam, muitas vezes, o homem destroçado, irascível devido
à sua incapacidade, que só é no seu pensamento, ou devido a uma exagerada
sensibilidade mal controlada.
No livro “Saúde e
Dinheiro, o Caminho para a Felicidade”, chamo a atenção sobre este assunto
no capítulo: “A potência dos Impotentes”. No livro “Saúde e Destino” aparecem
vários capítulos para estabilidade do corpo: “Homens e mulheres, problemas
idênticos”, “A doença Misteriosa”, “Ejaculação precoce”, “Síndroma Orgástico”,
“A Frigidez e os Desejos”. No livro “Doenças que as Plantas Curam” aparece
um capítulo “As ervas da excitação” que, mais uma vez, trata do assunto de
maneira correcta e sem escândalo.
Escrevi sobre este assunto, que considero fundamental para um perfeito relacionamento entre o homem e a mulher e ainda, como já aludi anteriormente, para um correcto equilíbrio do homem, porque não existe e ainda mal se divisa, em Portugal, uma disciplina de Educação Sexual que, naturalmente, explique os pequenos segredos do corpo e que, devido ao seu desconhecimento, causam traumas e frustrações de consequências desastrosas.
O
gravíssimo erro da Igreja Católica, ao teimar no celibato dos
padres, tem o seu reflexo na quantidade de sacerdotes apanhados nas práticas
mais indecorosas ao aliciarem jovens para a prática de sexo anal ou
oral. Nos séculos passados foi possível esconder estes desvios,
hoje os meios de comunicação farejam qualquer escândalo
e denunciam-no. Nos Estados Unidos, só de uma vez denunciaram 117 padres.
A pedofilia patristica deu um forte abanão à milenar instituição
clerical. Até ao século XIV os padres podiam casar e, muitas
vezes, exigiam às confessadas pagamentos sexuais para lhes perdoarem
os pecados. No século XIV, o Papa Gregório VII proibiu que os
clérigos se casassem, mas no século XVI, o Papa Júlio
II, conhecedor da impossibilidade do homem conter os impulsos sexuais, a menos
que se torne um atormentado permanente ou um monstro pedófilo e castrador
de novas vidas, esse Papa, que empreendeu a construção da basílica
de S.Pedro e protegeu os fabulosos artistas do renascimento: Bramante, Rafael
e Miguel Ângelo, criou um bordel de igreja onde as jovens estavam à
disposição do clero e, nas horas vagas, prestavam serviços
religiosos. O nosso Frei Bartolomeu dos Mártires que era, esse sim,
um verdadeiro santo, devido à maneira como respeitava e defendia todas
as pessoas, incluindo o seu clero, pediu ao Papa autorização
para que os padres do Barroso casassem, evitando assim a mancebia e as pernadas
nas mulheres casadas, cujos maridos andavam a descobrir e a povoar mundos,
o Papa recusou, e este santo, que tinha todo o direito a galões de
santidade, ficou só conhecido por Frei Bartolomeu dos Mártires,
Bispo do Barroso.Em vez de lhe tirarem virtudes acrescentaram-lhas se o quisermos
comparar aos santos Papas...
O amor vive de um
encontro natural e às vezes casual. Nunca pode ser imposição ou irreflexão.
Lembro-me de um acontecimento que serve para ilustrar o que acabo de dizer:
tem como personagem um jovem de raça cigana. Vinha de Salamanca e ia para
Penamacor, mas resolvi passar pela Guarda, cidade que vive no meu coração.
Depois de passar a fronteira, em Vilar Formoso, tinha observado um acampamento
de ciganos. Uns dez ou quinze quilómetros depois estava um rapaz cigano a
pedir boleia, era Dezembro, estava muito frio, eu ia num Mercedes que tinha
comprado há pouco tempo. Parei e vi que o seu aspecto era deprimente.
Pensei: “o carro vai ficar numa lástima”. Não consegui negar-lhe transporte
porque gosto deles, acho-os o povo mais livre do mundo, escrevi sobre eles
e, anos mais tarde, fiz uma intervenção na Assembleia da República defendendo-os.
Mas, naquele momento, não resisti ao comentário:
- Podias, pelo menos,
lavar as mãos e a cara. - O cabelo tinha bocados de resina.
Ele não respondeu.
- Vou para a Guarda e
tu?
- Eu também. - Respondeu
ele enquanto se recostava.
- Que idade tens?
- Dezassete.
- Que fazes?
- Fazia.
- Fazias o quê?
- Vendia cavalos e
burros.
- Trabalhavas para
quem?
- Para o meu ex-sogro.
- Já és casado?
- Era.
- Eras e já não és?
- Não.
- Que idade tem a tua
mulher?
- Ex-mulher. Doze.
- Doze anos! E casaste?
- Casei.
- Casaste como? –
repeti admirado.
- O meu sogro, uma
noite, à roda da fogueira e já com uns copos disse-me: “amanhã casas com a
minha filha”, no outro dia montou-nos uma tenda e fui viver com ela.
- E tu gostavas da
tua ex-mulher?
- Hum...
- Mas deste-te bem?
- Ela é um bocado
preguiçosa.
- Foi por isso que
a deixaste?
- Foi. Ontem mandei-a
levantar para ir fazer o café. Não foi. Hoje fez o mesmo, e eu mandei-lhe
duas lambadas no focinho.
- Não lhe devias ter
batido. As mulheres não são pele de bombo.
- Pois não. Ela levantou-se
imediatamente e foi, a correr, dizer ao pai. Eu mal a vi tomar aquele caminho,
e conhecendo o mau feitio do homem, não esperei pela resposta. Ele apareceu
de imediato de espingarda na mão. Se ele não estivesse de calças desapertadas
não sei o que teria acontecido, assim, tomei-lhe avanço e quando ele começou
aos tiros, eu fui-me cobrindo com os pinheiros, agarrando-me a uns e a outros
e lá me safei.
- E agora?
- Vou à vida.
- Começas tudo de
novo?
- Que remédio. O
senhor vai-me deixar perto de um laranjal logo à entrada da Guarda. Tenho de
apanhar qualquer coisa para vender.
- Não esqueças de te
lavar.
- Não esqueço.
Estive para lhe dar algum
dinheiro, mas pensei para mim: “ele não pode começar como um pedinte e eu não
lhe posso turvar a imaginação. Já mostrou que tem pé leve. Deixa-o ir às
laranjas. Se levar mais uns tiros do dono do laranjal, ainda fica mais
espevitado para enfrentar a vida.”
Tu que me lês, que
tinhas feito?
Ensinar alguém requer
tempo e os ciganos são um povo muito especial. Decidi pelo que achei melhor.
Espero que tenha sobrevivido e hoje seja um bom negociante.
Esforcei-me sempre
por compreender o porquê das desigualdades entre as pessoas, por que é que
havia tanto jovem descalço e de calças rotas na minha terra, por que é que
muitos estendiam a mão à caridade e tinham de recorrer à distribuição do rancho
feito na Companhia Disciplinar de Penamacor? Se isto era assim em Portugal,
como seria por esse mundo fora?
Quando saí de Portugal
e passei férias em Espanha, em 1947, tinha doze anos, vi horrorizado que a
miséria e as carências eram 10 ou 11 vezes maiores que em Portugal e eram
muitíssimo mais evidentes; casas a cair de podres, ruas quase intransitáveis,
comboios que mal conseguiam andar, automóveis e autocarros seguros por arames,
pedintes e engraxadores por todo o lado. Não consegui aguentar mais do que
um mês apesar de eu ter todo o conforto e poder comprar o que me apetecesse.
Eu queria ter a
coragem suficiente para distribuir tudo e juntar-me a eles para resolver aquela
situação.
Tendo sempre no
pensamento que a partir de uma ideia é possível resolver todas as dificuldades,
quando os meus filhos tinham 8, 9, 10 anos resolvi testá-los a partir de ideias
simples. Cada um montava o seu próprio negócio a partir do zero ou de um
pequeníssimo capital.
A minha filha mais
velha, a Margarida, começou por juntar roupas velhas e destinadas ao lixo;
lavou-as, restaurou-as, com a ajuda da mãe e começou a vendê-las a preços
insignificantes. Como tudo era lucro, reservou 50% para o seu tempo, trabalho,
lavagem, reparação e para comprar roupas, a preços simbólicos, a quem não lhas
oferecesse. Os outros 50% eram dados a pessoas carenciadas sempre com uma
sugestão tomada em colectivo, o que eu aprendi com meus filhos.
Sempre fui muito
individualista, talvez por ter sido filho único e me ter habituado a resolver
os meus problemas sozinho, mas eu nasci em Portugal e os portugueses sofrem
desta pecha: são individualistas. O associativismo ainda hoje vive com
dificuldades. O país dividido em municípios seria, de novo, o seu sonho e
provavelmente o seu desaparecimento. Hoje, o mundo é uma cidade global que
rejeita seres minúsculos e sem ordem. Os portugueses, com o sentido de
obediência e ordem que têm... seria o caos.
Ser individualista é
bastante desvantajoso. O mundo avança devido à cooperação e ao conhecimento
entre todos os seus elementos. O individualista tem de contar só consigo
próprio.
A do meio, a Andreia,
fazia poemas que vendia às amigas e à família. Destinava 75% aos amigos mais
carenciados e os outros 25% para o seu trabalho e gastos de papel e lápis. O
mais novo, o Fernando, montou um banco com os capitais da mãe que, embora não
estivesse pelos ajustes, só para não o ouvir, lhe ia entregando alguns trocos
sobre os quais ele lhe passava quitação. Julgo que nunca recebeu qualquer
compensação. Como não movimentava o capital tinha de pagar para o ter guardado,
mas fazia empréstimos às irmãs a quem cobrava os respectivos juros. Com este,
os lucros revertiam sempre a favor do capitalista. Nunca me dei conta que fosse
magnânimo nas suas ofertas, vi, no entanto, que o seu quarto se encheu de
aparelhos úteis para as suas brincadeiras e para os seus conhecimentos futuros
sobre informática e sobre maquinaria que gosta de entender, construir, inventar
e dominar.
As nossas reuniões
eram movimentadas e cheias de ideias. Com os filhos eu testava o que poderia
ser feito, primeiro, a bem de Portugal, depois reflectido a bem de todos os
seres. Tínhamos mesmo programado fazer uma lista dos homens mais ricos do
mundo, escrever-lhes, convence-los a investir em Portugal com a sugestão de
aumentarem os postos de trabalho, e destinar, todos os anos, 10% em bens
sociais que reverteriam para o Estado Português o qual se comprometeria a nunca
alienar esses bens enquanto houvesse famílias com dificuldades.
Partir do nada para
reconstruir o mundo. Partir do nada para desenvolver o amor e a prosperidade.
Esta é a ideia fascinante que, embora controversa, deve animar todo o ser
humano, o qual chega a este mundo, munido de todas as condições e meios para
superar todas as adversidades.
Para ensinar, além do
saber é fundamental gostar. O ensino nunca pode ser um sacrifício. Aquele que
ensina com sacrifício vai crucificar centenas ou milhares de jovens. É pior do
que o pior dos criminosos. Assassina a vontade e o interesse dos jovens.
O meu pai trabalhava
bastante; fazia o que gostava e o rendimento estava assegurado, vivia feliz
e pensava que a felicidade se mantém toda a vida. Como era feliz, queria que
eu ainda fosse mais feliz e julgava que eu nunca devia fazer sacrifícios ou
passar por dificuldades. Depois de ter feito uma quarta classe com distinção,
em vez de fazer a admissão ao Liceu, naquele mesmo ano, enviou-me para o colégio
de S. José, em Mangualde. Foi um erro grave.
Nunca mais abri um livro.
Nunca mais me lembro de ter voltado a estudar, para agravar a situação, a
partir de certa altura, a professora, passou também a dar aulas à noite para
no final e quando os outros iam para os quartos eu lá ficar mais um pouco
e ela me encher de beijos. Ficava meio desnorteado. Se coincidia sair, e as
luzes apagavam, depois daqueles apertões nos lábios, eu só sentia flashes
de luz, como se fossem estrelinhas, a explodir: paf, paf, paf, paf! A descarada, muitas vezes, de dia e na aula,
colocava-me numa das carteiras de trás, abria-me a braguilha, metia os dedos
sorrateiramente e divertia-se com o rapazito a crescer.
Foi o meu baptismo no
labirinto das surpresas agradáveis.
No ano seguinte, no
Liceu Nacional de Castelo Branco, contínuo a sentir o despertar para o mundo
das sensações.
Trazia uma “boa
escola” do Colégio de S. José. Tornara-me especialista em jogar hóquei com os
tronchos das enormes couves da horta, e em futebol. Numa das partidas do dito,
dei, sem querer, uma canelada no Zé Penha. Este ficou muito zangado; ele usava
calções e eu também.
- Hás-de pagar-mas,
hás-de pagar-mas. - Dizia o Penha. E eu que nunca me aborrecia, mesmo quando me
partiam a cabeça ou tinha os joelhos a sangrar, respondia-lhe:
- Desculpa, foi sem
querer. - O Penha não ouvia razões. Quando subíamos para a aula do cónego João,
ele aborreceu-me tanto que eu voltei-me e dessa vez é que lhe dei uma
biqueirada, logo por azar, por cima das botas de cano alto que ele usava. Ele
tinha uns onze anos e eu, mais um mes. Desatou a chorar e assim entrou na aula.
O cónego perguntou-lhe.
- Por que choras,
menino?
Todos os outros:
- Foi o Cunha Simões
que lhe bateu.
A aula do cónego era
uma festa para uns e uma chatice para outros: nem moral, nem cívica; era
barulho, insubordinação, ameaça de irmos ao reitor, o que nunca acontecia.
- Vais ao reitor no
fim da aula! - Disse-me o bronco. Eu já sabia que não ia. Enganei-me. Desta
vez, o sonso, manteve a palavra, mas também, pela primeira vez, tive a
percepção exacta da pouca consideração que o reitor tinha por outro ser humano
e que era seu igual, sendo professor. Tratou-o com rudeza, como se ele não
passasse de um mero lacaio que não ensinava o pouco que sabia, e de que nada
adiantava para a formação dos jovens.
- O que é? -
Perguntou-lhe seco, o Dr. Sérvulo Correia, terror da garotada e dos mais velhos
e também dos outros professores.
- Este menino,
apontou para o Penha, chorava que nem uma Madalena arrependida e diz que este
lhe bateu. - O reitor cortou-lhe, cerce, a retórica.
- Pode-se ir embora.
- Mas... - tentou o
cónego.
- Vá-se embora!
O reitor, que tinha
sido tão rude com o cónego, dirigiu-se ao Penha com ar simpático.
- Conta lá. - O Zé
Penha disse o que lhe apeteceu. Quando eu quis interromper aquela mistura de
verdades e mentiras, o reitor mandou-me calar.
Depois de ouvir o
queixinhas voltou-se para mim:
- Deste-lhe o
pontapé?
- Dei...mas...
- Não te perguntei
mais nada. Vais ser castigado. Os olhos do meu saudoso amigo Penha brilharam de
contentamento. - Olhei para o quadro preto onde iam aterrar todos os
prevaricadores depois das bofetadas. Pensei: “vai-me derreter.” Ele calou-se
por uns segundos e disparou:
- Queres um dia de
suspensão, oito dias à porta da reitoria durante os intervalos, ou um par de
bofetadas?
- Oito dias à porta
da Reitoria, respondi sem hesitar. Ele sorriu.
- Vai-te embora.
Começas amanhã.
A Reitoria ficava ao
lado do vestiário das alunas mais velhas. Logo no primeiro dia começaram a
parar e a fazer perguntas. “Como te chamas? Quantos anos tens?” Faziam-me
festas, batiam-me nas pernas, eu usava calções, beliscavam-me suavemente.
- És um malandreco.
As mais carinhosas
afagavam-me os cabelos, davam-me beijos fugidios e confortavam-me enquanto elas
suspiravam os seus afectos a despontar e a desejar um miúdo tenrinho, com
penugem nas pernas; já se sentiam mamãs, noivas ou irmãs mais velhas.
Eu adorava ir para
ali. Era o máximo: podia sonhar, podia estar perto da janela, podia construir
histórias, sentia o calor feminino. Ao fim do 18º dia quando o reitor voltou a
reparar em mim, perguntou-me:
- Que estás aqui a
fazer?
- Estou de castigo.
- Eu não te disse que
eram só oito dias?
- O senhor reitor não
me veio levantar a pena...
- Desaparece antes
que eu agrave a sentença. - Reparei que aquela “fera” ria feliz, enquanto eu
dava corda às pernas.
As carícias da
professora do colégio, as carícias das alunas do 6º e 7º anos, hoje 11º e 12ºanos,
espevitaram-me os apetites: um dia apertei as bochechas traseiras da criada.
Ela não achou graça, virou-se e deu-me uma bofetada, com tanta força, que fui
parar ao caixote do lixo.
A rapariga era muito
bem constituída e muito sisuda: desta vez riu à gargalhada e ainda me disse,
com ar maroto:
- Aí é que está bem.
É para aprender a não mexer onde não deve. - E ria, ria feita tonta.
Nesse tempo estava em
casa da D. Aninhas, mãe da doutora Luísa Grilo e do Coronel José Grilo a quem,
a descarada da criada, contou o sucedido, mas que a Luísinha proibiu de contar
à mãe.
Um país só se
desenvolve através do conhecimento e esse adquire-se nas escolas com bons
professores. Indivíduos como o cónego não servem para nada, são menos que pó.
Além de não ensinarem, incentivam, sem querer, o desrespeito nas aulas.
Portugal foi sempre
um país com um défice muito grande de gente de ensino, talvez por isso Akio
Morita afirmasse ao Manuel Guimarães que nós éramos um povo inteligentíssimo.
Penso que somos um
povo de grande intuição e inteligentes como os outros povos. A nossa intuição
e a nossa sensibilidade é que são muito grandes e conseguimos atingir objectivos
que só os mais instruídos conseguem. A nossa intuição foi sempre a nossa cartilha.
Mas isto não pode continuar. Temos de estudar e querer ser iguais ou melhor
que os outros para a felicidade de todos.
Desde o início da
nacionalidade vivemos com a ignorância. Só a intuição nos fez independentes e
capazes de desenhar este país. Os que sabiam ler e escrever estavam ligados à
igreja ou eram judeus. Os reis estiveram sempre nas mãos destes dois grupos. O
Papa atingiu o seu enorme poder devido mais ao grau de instrução dos bispos e
padres que serviam a religião do que à sua força temporal.
A igreja, durante
séculos, colocou em todas as aldeias gente com formação: os padres. Daqui lhe
veio a força.
Os povos submetiam-se
aos mais conhecedores, aqueles que melhor raciocinavam e melhor explicavam como
se resolviam os problemas ou como atingir tal ou tal finalidade.
Em Portugal o ensino
foi sempre muito reduzido. De qualidade, muitas vezes foi, e disso temos
exemplo nos homens brilhantes que saíram das nossas universidades e foram
ensinar em universidades estrangeiras ou deslumbraram o mundo com o seu saber.
Brutinhos não somos.
Desinteressados e, às vezes, pouco aplicados, sim. Hoje, temos quase todas as
condições para sermos os melhores entre os melhores e aplicar a sabedoria e o
coração para a resolução de todos os problemas humanos seja em Portugal, seja
em qualquer parte do mundo.
Vender ou dar inteligência será o nosso lema. E
insistirei sempre nesta ideia até fixares que tens de ser o melhor.
A vida do Liceu decorria
em roda livre. Reprovasse ou passasse, para os meus pais era indiferente.
Estávamos no quarto
ano, hoje oitavo, último período, turma desgraçada, haveria entre 80 a 90 por
cento de reprovações. Eu era uma das vítimas, mas não estava preocupado. Se os
meus colegas de instrução primária não podiam continuar a estudar, eu achava
que não tinha mais direitos que eles. Eu aprendia nos outros livros. Os meus
pais não me ralhavam por isso. Não estavam inquietos nem com as minhas dúvidas,
nem com as minhas sensibilidades porque não as conheciam, nem as compreendiam.
Tinha sempre excelentes férias.
Aqui tens mais uma
contradição do ser humano; devido à sua ignorância sobre a agressividade da
vida, minha mãe, que era tão severa para com as minhas traquinices, aceitava
com bonomia os resultados dos estudos. Ainda hoje a oiço dizer para as amigas.
- É novo, tem tempo.
Nesse ano
acontecem-me várias situações que só a curiosidade, a ansiedade de compreender
e ao mesmo tempo viver, aparentemente, o descuido da vida podem explicar.
O mais indisciplinado
da turma era o Zé Fevereiro que resolveu, em três ou quatro disciplinas,
insubordinar as aulas. De boca fechada emitia um arremedo de som gregoriano:
“um, um, um, um, um, um,” com variações, sempre que o professor falava. Os
professores começaram a ficar inquietos e a perguntar quem era. O Fevereiro,
nesses momentos, parava, mas continuava logo a seguir. Perante a ameaça dos professores
que reprovaríamos todos, os meus colegas intimaram-me a fazer calar o cantor.
Ao princípio fui-me esquivando, mas perante o argumento de que eu era o chefe
de turma e tinha de os defender: falando com o Zé Fevereiro ou denunciando-o ao
reitor, o que, para mim, estava fora de causa. Tentei dialogar com aquele
cabeça de turco.
- Agradeço-te que
deixes de brincar nas aulas. Os colegas estão preocupados com as consequências
e estamos a chegar o fim do ano.
O Zé, muito mais alto
e mais entroncado do que eu. Era um garoto com corpo de homem, passou-me a mão
pelos ombros:
- Ó amigo Cunha
Simões, eles são uns tontos, isto está tudo chumbado. Eu, por mim, chumbo a
cabeça aos professores.
Insisti para que ele
não continuasse, tivesse as razões que tivesse. Em causa estavam os colegas.
O Zé riu-se, deu-me uma palmada nas costas e repetiu: “são uns tontos”. Ele
sabia que era muito mais forte que eu e do que todos os outros colegas. O
seu poder de ataque era arrasador e via-se quando jogava brutebol, um jogo
bastante “meigo” inventado pelo Dr. Carriço e onde eu parti uma perna ao meu
amigo José Galvão por causa de uma bola mandada, com muitíssima força, ou
por ele ou pelo José Neves, que era também um fortalhaço, mas incapaz de se
aborrecer fosse com quem fosse, assim como o Zé Fevereiro. Eu digo, por um
ou por outro, pois mal choquei com o Galvão, e ele caiu a contorcer-se com
dores, o jogo parou; vi o Carriço vir direito a mim com cara de poucos amigos
e tratei de fugir para os balneários. Aquelas mãos já eu tinha experimentado
e por uma razão tão idiota como inexplicável.
Aqui faço um
parêntese para dizer que embora não tivesse qualquer culpa por ter partido a
perna ao Galvão deixei que ele me roubasse uma namorada para se sentir mais
amparado. Fiz de conta, e segui em frente.
Enquanto adio a
refrega e contínuo com o parêntese, vê como, injustamente, apanho duas
galhetas, como o Dr. Carriço gostava de chamar aos seus bofetões. Ele era um
homem enorme e até simpático quando não se aborrecia.
Fazíamos ginástica,
educação física, fora do ginásio, ao ar livre. O tempo estava sublime. Eu
dava os primeiros passos nas visões esotéricas. O Dr. Carriço mandou-nos sentar
e fazer um exercício de braços: para a frente, para a esquerda, para a direita
e assim sucessivamente. Aconteceu que, num dos movimentos para a esquerda,
fiquei aí parado, em êxtase profundo, uns bons nove ou dez minutos. Enquanto
a turma ria a bom rir, o Carriço olhava para mim para tentar perceber a origem
daquela paragem e até que ponto ia a minha ousadia. Eu continuei. Tinha saído
do mundo, entrei no sonho, no prazer infinito da viagem sem fim de onde vimos
e para onde regressamos. Andava a branquear a alma noutros céus. O Dr. Carriço,
que não era dado a fantasias, nem a teses místicas, fartou-se de esperar.
Pôs-se à minha frente, baixou-se e gritou:
- Oh! – Eu olhei para
ele surpreendido. Zás, zás! Duas bofetadas devolveram-me à terra, mais rápido
do que dela tinha saído. Levantei-me de um salto e escapuli-me a sete pés.
Bem me chamou o
Carriço. Eu agarrei o fato pendurado no vestiário e fui vestir-me para outro
lado onde o “selvagem” não me encontrasse. No intervalo seguinte, continuava eu
a tentar decifrar os enigmas que me perturbavam e à procura do Deus, que
permitia as desigualdades sociais, quando sinto a mãozorra do Carriço
agarrar-me um braço, apertar com força e dizer-me:
- O menino quer
brincar comigo, quer? Quer ir ao Reitor, quer? - Estremeci. Já tinha ido uma vez
ao reitor, saíra-me bem, mas se voltava lá segunda vez, nem a alma se me
aproveitava. O Carriço continuou:
- Queres ir ao
reitor, queres? A gozar comigo. Um miúdo. Se tornas a fazer o mesmo não te
escapas. És solipsista, és? Julgas-te um Narciso intocável, julgas? Todos
rendidos ao menino, é? Desta vez foram só as galhetas, para a próxima não te
ficas a rir.
Quando me largou,
pensei cá para mim “ Solipsista?” “Narciso?”, o que é que ele quererá dizer? “ Quem
será o Narciso? E o Solipsista? Nem conheço. Que se lixem o Narciso e o
Solipsista”.
Só uns anos mais
tarde soube que solipsismo significa, em filosofia, apenas eu, aquele que é
único; e Narciso era um ser mítico, muito belo, e que apaixonado por si próprio
se tinha precipitado nas águas de uma nascente onde vira a sua própria imagem.
Ainda bem que eu não conhecia o significado das palavras. Não arranjei traumas,
embora eu não fosse muito atreito a traumas, nem a tretas, mas às vezes, podia
ser afectado. Os professores devem ter muito cuidado quando falam para os
alunos e pretendem ser agressivos. Há palavras e actos que não se esquecem.
Estou certo ou estou
errado? O livro é a minha conversa contigo. Apoia, desapoia ou corrige. Fico-te
agradecido pelos teus comentários mesmo que não os faças directamente. Envia-os
por telepatia, se acreditas nesta forma de comunicação. Quando eu morrer também
estou à tua disposição. Eu converso, com relativa facilidade, com o meu amigo
Manuel Guimarães. Ele está do lado de lá, eu estou do lado de cá, mas isso não
impede que não nos entendamos, e olha que não estou maluco. Este tema fica para
outro livro, se o Manuel concordar.
O Zé Fevereiro
continuou a fazer barulho. Avisei-o mais uma vez e disse-lhe que ao terceiro
aviso iríamos para o Barrocal resolver a questão. O Barrocal ficava a 600 ou
700 metros do Liceu de Castelo Branco e a seguir à estação dos Caminhos de Ferro.
O Zé não fez caso.
Na aula do mano João,
o Fevereiro tornou-se insuportável. O professor bem insistiu comigo para o
ajudar a descobrir o prolixo e inflamado cantor. O Fevereiro piscava-me
sorrateiramente o olho e eu pensava cá para os meus botões. “Já vais ver como
elas mordem”. À saída disse-lhe:
- Vamos para o
Barrocal.
O Zé tentou gozar,
dava-me pancadinhas nas costas. Todos os colegas estavam a olhar para nós. Ele
dizia:
- Temos matemática
com o Dr. Sena Esteves. Com esse, estou calado. - E era verdade, mas eu não lhe
dei hipóteses.
- Ou é lá ou é já
aqui e somos os dois expulsos. Escolhe.
Aí vamos. A turma
inteira do meu lado, mas sem o poder exprimir e o Zé Fevereiro também calado
porque, só naquele momento, se deu conta que tinha levado a brincadeira longe
demais.
Instalaram-se quase
trinta alunos no alto de dois barrocos. Eu despi a capa e a batina, tirei a
gravata, o Zé despiu o casaco. Ficámos em camisa, de mangas arregaçadas; a
minha era branca, a dele de riscas vermelhas. Como tinha sido eu a desafiá-lo
convidei-o a ser ele o primeiro a iniciar o combate. O Fevereiro, que era um
bom lutador, teimou em ser eu a abrir as hostilidades. Como já íamos, nestas
delicadezas, em alguns minutos, fingi que lhe ia dar um soco no estômago. Ele,
mal viu o gesto, ripostou com um potentíssimo murro em pleno nariz. Caí de
imediato, mas de imediato me levantei porque ele não me seguiu. Lancei-me de um
salto sobre ele, cego de dor e esguichando sangue. O Zé, com o meu impulso
caiu. Ficámos os dois, no chão, agarrados, eu ao pescoço dele e a dar-lhe
murros com a mão livre, e ele com um braço a envolver-me as costas e com o
outro a dar-me também murros. Eu, de olhos fechados, repetia-lhe continuamente.
- Tornas a guinchar
na aula, tornas? - E pás, zás, pás, zás e o Zé Fevereiro, de resposta, a mesma
música.
Estávamos nesta
tontaria, há bem mais de 20 minutos, quando aparece um homem, de forquilha na
mão, a insultar todos os que ali estavam:
- Malandros! Grandes
malandros! Andam os vossos pais a mourejar de sol a sol para vos sustentar!
Vadios! Não tendes aulas, pois não? Desgraçado País este que põe a estudar quem
devia andar agarrado à rabiça do arado! Isto, também não é um país a sério!
Olhai bem estes idiotas, encharcados em sangue! - Chegou-se ao pé de nós e
separou-nos sem esforço.
- Desgraçados! Não
tendes pingo de vergonha! Mal empregado dinheiro que os pais e o Estado gastam
convosco! - Ele continuou a arengar enquanto nos vestíamos. Só quando se foi
embora é que os assistentes, descontentes com o resultado da contenda, desceram
dos poleiros.
Estendi a mão ao
Fevereiro.
- Amigos como dantes.
Isto continua se tu quiseres.
A aula seguinte era
de história, a professora, a D. Maria Antónia; um sonho minhoto que nos punha a
cabeça à roda.
O Vaz Antunes tinha
16 a Ciências porque tinha medo da D. Julieta, eu chegava a ter 20 a história
porque adorava a professora. E só para ela me perguntar sempre a mim, e eu para
lhe mostrar que era o melhor, levava a palma em história e negativas em quase
todas as outras.
A D. Antónia, quando
viu que tínhamos faltado à aula anterior, bem quis saber o que tinha
acontecido, mas ninguém se descoseu embora me tentasse subornar com olhos
tentadores, de quem sabe a paixão que provoca, mas não pode dar confiança a
miúdos que ainda estão a cheirar a cueiros.
Aquela turma estava
destinada à reprovação.
Um dos meus grandes
amigos era o Joaquim Vaz Antunes. Sempre nos tratámos por compadres, acho que
para melhor gozarmos as maroteiras. Ele também estava nessa turma, mas havia
uma particularidade; vivíamos na casa das senhoras Trigueiros onde estavam mais
oito ou nove “melros” de igual calibre. Como eu era chefe de turma, o Joaquim
pedia-me, duas vezes por semana, para eu não dar a sua falta na aula do mano
João, que era às 8 horas e 30. Assim fazia. Muito perto do fim do primeiro
período o Joaquim foi às aulas, o mano João, que era uma jóia, mas andava
sempre munido de vara, olhou para o Joaquim e disse-lhe:
- Ah, menino, tu não
és daqui.
- Sou sim, senhor
doutor. - Respondeu o Joaquim.
Ao prevermos o que ia
acontecer, todos, à uma, confirmámos:
- Não é, senhor
doutor, não é. - E todos a gozar com a cara patusca do Joaquim a levar varadas
do mano João, enquanto o professor repetia “vai-te embora” “vai-te embora” e o
Joaquim, de braço no ar, a jurar que era aluno, que visse na caderneta. O Mano
João, depois de muitas varadas, viu.
- Tu és o Joaquim Vaz
Antunes?
- Sou sim. -
Respondia o Joaquim de asa levantada
para evitar as varadas.
- Mostra o bilhete de
Identidade? - O Joaquim não tinha, mas possuía o cartão da Mocidade Portuguesa,
a única coisa que ele tinha da célebre Organização; o dinheiro da farda
tínhamo-lo gasto numas riquíssimas farras. Tenho de te dizer que eu era o
comandante e por isso ele também nunca lá ia, assim como outros que lá não
queriam ir. A Mocidade Portuguesa funcionava como organização para ocupar os
tempos livres dos jovens: havia secções de volei, aeromodelismo, futebol, ténis
de mesa, campismo e muitos acampamentos, durante as férias. Voltarei a falar da
Mocidade mais adiante.
Depois de examinar
bem o cartão, diz-lhe:
- Ah, menino... eu
nunca te vi e tu não tens cá nenhuma nota, mas...também cá não tenho nenhuma
falta. O professor olhou para mim. Eu afivelei a minha melhor cara e o assunto
ficou por ali, com 8 no fim do período. O Joaquim, nesse primeiro período, teve
8 negativas e uma positiva de 16 com a D. Julieta.
Como disse, este
quarto ano foi um ano atribulado, melhor dizendo: cheio de emoções.
Eu comecei a desconfiar
de que o meu compadre - tratávamo-nos por compadres,já não
sei porquê - Joaquim faltava às aulas porque andava metido com uma das
criadas. Na casa havia duas. Um dia, uma aula antes da cena com o professor,
quando ele me pediu:
- Ó compadre tire-me
lá a falta.
- Está bem. Os
quartos eram no primeiro andar, eu descia sempre as escadas a correr. Assim
fiz, puxei, como de costume o cordel que abria a porta, fingi que tinha saído,
empurrei a porta com força e, pé ante pé, meti-me no vão da escada onde havia
uma porta. Passados dois ou três minutos aí vem o Joaquim e depois a criada.
Deixei-os aninhar. Passados uns minutos e quando pensei que a festa devia já
ter começado, outra vez e desta sem sapatos, fui pé ante pé até ao quarto
interior onde eles se encontravam e quando me encontrei diante da alcova do
pecado, bati à porta e gritei: “eu também quero”! O Joaquim começou logo a
gritar:
- Ó compadre, não
entre. Ó compadre não entre! – Eu continuava na minha ladainha “eu também
quero”. – O Joaquim respondia:
- Está bem, está bem.
Mas eu queria que a
criada confirmasse de sua vontade. Quando confirmou, eu deixei-os em paz e
nesse dia tanto eu como o Joaquim tivemos falta na aula do Dr. João, pois eu só
cheguei quase no final e o professor não foi na conversa que eu inventei.
Depois do Joaquim
ter começado a assistir às aulas, a criada lá condescendeu em me fazer a vontade.
- Esconda-se que vem
aí a senhora.
Nervoso, sem saber o
que fazer, escondi-me na casa de banho sempre com o apêndice bem rijo e
excitado. Não acabei a festa e inexplicavelmente fiquei sem fala. O corpo
doía-me todo.
No Liceu o Joaquim
esperava por mim.
- Então?
Apontei-lhe para a garganta
e tentei dizer-lhe através do movimento dos lábios que não podia falar. Quando
soube de toda a história e eu lhe pedi que não contasse a ninguém, foi o mesmo
que fazer um anúncio publicitário. Só os professores não souberam a verdade.
Sempre que me chamavam e eu por gestos declarava que não podia falar, todos
os meus colegas repetiam:
- É ele a gozar sr.
Doutor. – Os idiotas riam que nem alarves.
A D. Julieta tinha a
alcunha de tia Anica. Não podia comigo por me encontrar sempre com raparigas.
Toda a vez que me chamava, eu sentia nela o prazer libidinoso de gostar de me
esticar ao máximo mesmo que eu lhe fosse respondendo uma por outra pois o
Joaquim tinha a mania de estudar alto e eu às vezes ouvia-o e também ouvia a
professora, mas ela arranjava sempre maneira de encontrar perguntas para que eu
não tinha respostas. No fim dizia sempre a mesma coisa:
- Sr. Simões, Sr.
Simões não se podem amar a dois senhores ao mesmo tempo; 8 no fim do período.
No fim do ano
estávamos chumbados, embora tivéssemos sempre 1% de esperança que passaríamos.
O Joaquim diz-me:
- Ó compadre, estamos
chumbados. Eu estou perdido, o meu pai dá-me uma sova que me mata. Eu vou fugir
para Lisboa. O compadre venha comigo.
Quando ele me disse
aquilo eu pensei: “o que é que vou fazer para Lisboa? Os meus pais nem me
ralham.” mas ele era meu amigo. Por solidariedade resolvi acompanhá-lo.
Disse-lhe: “temos de esperar pelas notas”.
- Não vale a pena.
Ninguém nos salva.
Mas eu insisti.
- Temos de esperar pelas notas.
- Está bem. -
respondeu ele - mas vamos para a saída de Castelo Branco e avisamos para nos
irem levar os resultados.
E lá fomos, com duas
pastas cheias de doces e fruta que tínhamos surripiado da despensa da casa, o
que era um dos nossos feitos, apesar de nunca nos faltar nada. Mas achávamos
piada violar os sítios onde era proibido mexer.
Era quase sempre eu
que ficava com as culpas. A D. Maria José, uma das senhoras Trigueiros,
detestava-me por pensar que eu era o mais traquinas como ela dizia. E não se
convencia do contrário. Eu gostava imenso dela porque tocava muitíssimo bem
piano. Isso dava-me calma, fazia-me sonhar, tornava-me bom, um coração
imaculado, mas se ela me sentia, deixava de tocar imediatamente.
Vamos lá saber porque
as pessoas reagem desta maneira?
Fomos para Montalvão,
saída da cidade. Passaram, as 16 horas, as 17, as 18, as 19 e o Joaquim começa
a insistir.
- Compadre, vamos
embora. Estamos chumbados. As notas deviam sair às 5 no máximo, eles não vêm.
Chumbou tudo.
Eram 20 horas e 15
minutos ouvimos uma gritaria enorme. Aí vinham eles: suados, aos pulos, doidos
de contentes. “Passámos, passámos!”
- Também eu? - perguntou o Joaquim ainda descrente.
- Todos, menos o Zé
Fevereiro, que tinha faltado nos últimos dias e aos últimos exercícios.
Ali mesmo dividimos o
farnel da viagem e fizemos a festa.
- Mas que aconteceu?
Os crentes exclamarão
milagre, os outros dirão sorte, e outros dirão ainda; ou há justiça para todos
ou não há para ninguém.
Aconteceu que entre
os 90% dos reprovados se encontrava o Pardal. O Reitor do liceu era muito
amigo do pai. Naquele tempo, os reitores, só deixavam sair as notas depois
de eles próprios as verificarem. Ao ver que o Pardal estava reprovado ordenou
que fosse revista a situação e que o deixassem passar. A D. Julieta opôs-se.
Chumba o Pardal e chumbam todos os outros que são tão cabulões como esse.
O reitor tenta impor-se. D. Julieta, a tia Anica, não cede e puxa aqui, puxa
ali, perante o impasse propõe:
- Se passa o Pardal
passam todos os outros que levantaram, pelo menos, algumas disciplinas. Perante
a posição irreversível da senhora, graças ao meu prezado amigo Pardal não
averbei mais um chumbo no meu notável currículo.
Devo confessar que a
minha falta de aplicação ao estudo não me tornava feliz. Eu conhecia as minhas
revoltas interiores e por não as saber compensar desinteressava-me à espera de
não sabia bem o quê. Dava como desculpa as diferenças sociais, o que em parte
era verdade, mas não deviam ser suficientes para o meu desinteresse, para a
minha rebeldia e outras vezes introversão. Lia todos os livros menos os de
estudo. Em férias, muitas vezes, minha mãe descia ao primeiro andar porque me
sentia às três e quatro da manhã, a ler tudo o que apanhava.
Muitos anos mais
tarde, quando professor, verifiquei que eu tinha 5% de culpa pela minha
inconsciência; meus pais 15% pelo seu exagerado amor e ignorância; e os
professores 80% pela falta de
sensibilidade, para não aplicar outra palavra bem mais violenta.
Muitos dos meus
professores foram péssimos; obcecados em obrigar a decorar 20 por cento de
matéria útil e 80 de matéria inútil só os alunos, muito pacientes, aguentavam
tamanha estupidez, prepotência e subserviência a programas de um
conservadorismo e inutilidade abissais. Bastava seguir os passos de uma Noruega,
de uma França, de um Alemanha, de uma Holanda. Estávamos sós...sempre estivemos
orgulhosamente sós...vamos ver se com a parceria europeia conseguimos aderir ao
futuro.
A agravar toda esta
situação: os professores esqueciam-se de amar, ou seja, de ensinar de uma
maneira humana.
O segredo do ensino
está no professor, tenha ele os alunos que tiver. Ele é a chave. Eu tive
professores que foram autênticos desastres. Nunca uma palavra de carinho, de
estimulo, de compreensão. Nunca o saberem tornear a irrequietude dos jovens, as
suas pequenas faltas, saber aproveitar a sua irreverência, tirar partido dos
seus erros, procurar saber o porquê da sua falta de estudo.
Eu queria modificar-me
mas não conseguia. Rejeitava estudar por solidariedade com aqueles que não
tinham posses para estudar. Insistia nesta desculpa para o meu desinteresse.
Passava um ano inteiro na brincadeira, no cinema, em pequenas farras, ou lendo
livros muito mais avançados para a minha idade. Lembro-me de um livro, do
Dr. Egas Moniz, sobre saúde, que li avidamente; ele estava cheio de gravuras
com vários tipos de doenças ou deformações congénitas, passava horas tentando
entendê-lo e foi de grande utilidade para o meu amigo António Manuel Camejo
dos Santos. As senhoras Trigueiros apanharam-no e fizeram-lhe um auto de fé.
Aquilo não eram leituras para jovens da minha idade. Fiquei um bocado aborrecido
com elas.
Quando fui para os
cursos da Mocidade Portuguesa, convidado pelo José Cabaço Neves, fi-lo para ver
se encontrava método, ordem, disciplina, se mudava a minha maneira de pensar,
se me esquecia que o mundo teima em manter desigualdades. Melhorei um pouco,
mas não o suficiente. Mas melhorei. A Organização, fora dos cursos, funcionava
como tudo em Portugal; na base do improviso, do desenrasca e das boas vontades
de alguns carolas, que pretendiam levar a sério aquilo que o não era. A
Mocidade Portuguesa era a tentativa para desviar a juventude dos cafés, do fumo
e lhe propiciar actividades saudáveis ao ar livre. Havia sempre quatro ou cinco
acampamentos por ano onde só ia quem queria e, normalmente, iam muitíssimos
jovens.
Lembro-me de um
acampamento, na serra de Monsanto, onde choveu tanto, tanto, que ficámos sem
alimentos durante quase dois dias e tivemos de nos deslocar para as instalações
da FNAT na Costa da Caparica. Aí acontecem dois episódios que não resisto a
contar. Os dois, passam-se com jovens de Cabo Verde.
Eram 8 da noite e
ninguém tinha comido. A certa altura aparece-me um miúdo, dos mais novos e
diz-me.
- Comandante, estou
cheio de fome.
Olhei para ele
desalentado. Nada, não havia nada. Com o coração desfeito disse-lhe:
- Tens de aguentar
mais um pouco.
- Não consigo,
comandante. Mande-me para a enfermaria.
- Mas tu não estás
doente.
- Eu digo que tenho
febre.
- Não tens.
- Eu faço.
Perante o olhar
faminto e enternecedor do miúdo quis verificar o que acontecia. Tínhamos ordens
terminantes para só entrarem na enfermaria os doentes. Levei-o ao enfermeiro
chefe e disse-lhe.
- Veja lá este.
Parece que está cheio de febre.
- Oh rapaz, mostra a
língua, o que te dói?
- A barriga sr,
doutor. Tenho muita, muita fome.
Eu saí da tenda,
rindo, o enfermeiro deu-lhe um pão. Passados cinco minutos o miúdo estava ao
meu lado e insistia para que eu comesse metade do que lhe tinham dado. Como
recusei, dividiu com outros três.
No fim do segundo dia
eu e o Cabaço Neves estávamos extenuados. O nosso sector era formado pelos
jovens do Ultramar. Cansados, cheios de sono mas sempre atentos e prontos a
acudir a todos os lados pois a chuva continuava a cair intensamente, nós não
parávamos um momento; de repente vimo-nos envolvidos pelo agrupamento de Cabo
Verde, agarraram-nos, sentaram-nos, tiraram-nos as botas e enquanto nos
obrigavam a descansar e a comer foram-nos limpando como se faz aos jogadores de
boxe. Depois de uns bons três quartos de hora em que tanto um, como outro,
passámos pelo sono, os jovens de Cabo Verde entregaram-nos as botas brilhando
de limpeza. Nunca mais os esqueci.
Devido a este
episódio escrevi o meu segundo livro: “Tu cá, Tu lá”
A rapidez de
raciocínio adquire-se com o tempo quando isso não é já uma característica de
nascimento ou do desenvolvimento dos primeiros anos. Tenta raciocinar rápido.
Faz experiências com os amigos. Analisa até que ponto as tuas respostas são
lógicas e cobertas de razão. Se ao dares a resposta, mais tarde verificares que
não era aquilo que devias ter dito, então o teu raciocínio ainda não está
afinado. Tens de continuar a analisar os teus disparates e as respostas
coerentes até sentires elasticidade mental capaz de “golpes de asa” que
deslumbram quem te ouve ou observa o teu trabalho.
O Cabaço Neves era
uma jóia de rapaz, um irmão, queria ser piloto e a Mocidade Portuguesa tinha
cursos de aeromodelismo e aviões sem motor, a seguir entrou para a Força Aérea
e foi para os Estados Unidos para um curso de pilotos a jacto. Ficavam numa
fortuna ao Estado Português. O Cabaço Neves casou com uma jovem que era
comunista, ele começou a ser vigiado; como castigo foi para a Guiné pilotar
pequenos aviões. Um dia, aqueles por quem ele nutria simpatia sabotaram-lhe o
avião e ele morreu estupidamente.
Estava no barbeiro a
cortar o cabelo para ir no outro dia para Paris de automóvel com a família; lia
o Diário de Notícias e sou confrontado, de chofre, com a tragédia. Comecei a
chorar como uma criança. Durante a viajem chorei quase ininterruptamente. Senti
uma revolta enorme.
Eu acredito na
comunicação das almas, é a partícula
de Deus que nos liga uns aos outros, mortos e vivos. Os mortos, como definimos
aqueles que partem para a outra dimensão, só conseguimos ficar com eles se nos
três dias seguintes ao seu desprendimento deste mundo nós pensarmos muito neles
e não nos quisermos separar e eles também tiverem esse desejo. Era o que estava
a acontecer comigo. Tenho a prova que o Cabaço Neves estava ao meu lado porque,
perto de Burgos, ao ultrapassar um camião, este barrou-me o caminho; ao travar,
o carro rodopiou quatro vezes na estrada perante o olhar horrorizado dos
automobilistas que vinham atrás e só não caiu nos precipícios que bordejam a
estrada porque uma força estranha me amparou. Estamos no Inverno e havia gelo
na estrada.
Escrevi nessa altura
“A Revolta e o Homem” com alguns poemas dedicados a um jovem que teve o azar
de viver numa época de gente bronca.
Não me revoltei só
contra o Governo, revoltei-me contra os incompetentes que nas chefias não
sabiam distinguir os valores. Isto acontece quando o défice de cultura é muito
grande. Em Portugal não nos têm faltado bons Presidentes da República, bons
Primeiros Ministros e Ministros competentes, aquilo que nos faltou sempre foi
um escol de funcionários públicos. Alguns são demasiado intransigentes num
serviço público que tem de ser flexível nos momentos em que o deva ser. A
interpretação rígida das leis levou a que os Censores fossem considerados os
seres mais estúpidos à face da terra e os Chefes, que preteriam os mais capazes
a favor dos medíocres e dos subservientes, autênticos répteis. Houve excepções,
tanto num caso como noutro, mas muito poucas. Repito: neste país não foram os
Ministros que erraram, foram os funcionários incompetentes e ignorantes que não
souberam dar continuidade a directivas que podiam percorrer várias trajectórias
para se atingirem os melhores objectivos.
A culpa destes
culpados, sem a totalidade das culpas, está na sua educação.
Em 1965, o Dr.
António Martins da Cruz, no livro: “Preocupações de um Deputado” a pags. 32.
Diz explicitamente: “É que Portugal será
o que for o nosso ensino, e este não será senão o que forem os seus
professores”. A resposta para as nossas falhas está toda aqui.
Pedi para fazer o 5º
ano na cidade da Guarda. Era a maneira de entrar num meio desconhecido e
dedicar-me ao estudo. Eu tentava entender-me e lutar contra o meu querer e não
querer. Logo no primeiro dia dei o primeiro passo em falso.
Depois de meu pai me
ter deixado num belíssimo quarto da “Pensão Central”, ali a dois minutos do
Liceu, junto à Sé, o que era um luxo, fui dar uma volta pela cidade. Quem havia
de encontrar? o nosso já conhecido Manuel Poppe Lopes Cardoso, o Nélinho, que
tinha muita piada, tinha a doidice da juventude, e era um rapaz inteligente.
Estava a discutir com outros três: “era impossível beber meio litro de
carrascão na Cova Funda,” célebre taverna lá burgo, junto ao café Mondego,
agora transformado em Banco e a dois passos do quiosque do bem sucedido
comerciante António Guimas Esteves. Eu, gabarola e brincalhão, ao passar, atiro
à guisa de desafio:
- Isso? Qualquer um
bebe.
O Nélinho, que não me
conhecia de lado nenhum, agarrou-me.
- Tu bebes?
- Se pagares.
- É para já. - E lá
fomos os cinco. Eu a beber, eles a ver.
Naquele tempo, os
jovens da cidade da Guarda bebiam imenso; novos e mais velhos Era o frio e a
fama. Aquele que quisesse ser respeitado pelos outros tinha de ser um bom copo.
Hoje, sabemos que
isso é um erro. Naquele tempo dizia-se que era para aquecer e para levantar a
alma.
Bebi o meio litro. O
Nélinho abanou-me. Esperou pelos resultados.
- Estás bem? Não
sentes nada?
- Nunca me senti
melhor. E agora passem muito bem que tenho de conhecer a cidade.
- Como te chamas?
- Cunha Simões.
- Até amanhã.
Apesar de em minha
casa nunca entrar vinho e minha mãe, em toda a sua vida, nem uma gota ter
bebido, e meu pai só em festas, eu, desde que fui para Castelo Branco, como
andasse sempre com os mais velhos, ia entrando nas farras com eles. Tornei-me
um bom copo, o que não é coisa de que me orgulhe, mas para saberes até que
ponto um jovem pode ser pateta e colocar a vida em perigo conto-te duas
brincadeiras avinhadas e que podiam ter graves consequências.
O problema, na casa
das senhores Trigueiros, era não termos problemas e então tínhamos de os
inventar. Naquele dia resolvemos dizer que queríamos vinho à refeição. Nunca
tínhamos bebido. Como a resposta fosse negativa resolvemos depois de jantar ir até
ao café e bebermos uns copos. Já não sei de quem partiu a ideia mas formaram-se
dois grupos; um a favor do Vaz Antunes e outro a meu favor. Puseram vários
copos de vinho branco entremeados com copos de aguardente naquelas mesas
antigas e quadradas, de tampo de mármore. Em frente um do outro íamos bebendo,
aquele que desistisse perdia e os apoiantes também. O Joaquim desistiu já perto
do fim e eu tolo, gabarola e inconsciente terminei os meus e acabei os dele.
Salva de palmas. Pagaram os vencidos mas já ninguém mais pensou em beber depois
de terem visto o desafio. O Joaquim quis ir ao cinema, os apoiantes
abandonaram-no. É sempre assim, é pecha dos portugueses: digerem mal as
derrotas. Foram todos com o vencedor para uma reunião da JEC. Juventude Escolar
Católica.
O Joaquim, só se
lembra de ter entrado no cinema, e, muito mais tarde, a mulher de limpeza o ter
acordado e lhe dizer que o filme já tinha acabado há muito tempo.
O salão da JEC estava
cheio, aquilo era em anfiteatro. Fui sentar-me ao centro, na terceira fila,
ladeado pelos meus admiradores, mesmo em frente do padre João e dos seus dois
assessores. As janelas estavam abertas, corria uma aragem agradável, de
repente, tudo se modificou, começaram a fumar, a sala ficou impossível, pelo
menos para mim, sentia um calor abrasador, o padre João falava, falava e eu não
entendia uma palavra, a cabeça começou a andar à roda, sentia uma espécie de
água solta na minha boca, o fumo tornou-se insuportável, as palavras do padre
insuportáveis, quem me rodeava era insuportável, levanto-me e vomito para cima
de padre e dos assistentes; cada um a fugir para seu lado e eu a borrifar todos
por onde passava. Os meus apoiantes, embora as maiores vitimas, além de me
ampararem ainda me desculpavam dizendo:
- Foi o Vaz Antunes
que fez anos, foi o Vaz Antunes.
Esta cena alcoólica
repete-se com o Victor Guterres de Carvalho, ele ficou tão bêbado que ia
morrendo, a dona da casa viu que ele estava gelado e a espumar pela boca,
agarrou numa bacia de água quente, colocou-lha junto aos pés e pediu para irmos
chamar o Dr. Alberto Trindade. Lá fomos. Perante a situação que contámos ao
médico, ele disse para chamarmos uma ambulância e levar o Guterres para o
hospital. Foi o que quisemos ouvir, aquilo era uma festa, ir de ambulância, gozar
aquela situação, nunca pensamos que acontece o pior, era mais uma brincadeira.
Quando chegámos a casa e dissemos que a ambulância estava ali para o levar para
o hospital, o Guterres, que era incrivelmente agarrado, estava a despertar e só
murmurava.
- Eu não pago nada,
eu prefiro morrer, eu não pago nada... - Metemo-lo à força na ambulância e o
bom do médico lá o salvou de apertos.
O Guterres de
Carvalho era engraçadíssimo mas sempre sequioso por dinheiro e incapaz de o
gastar. De uma vez, por vinte escudos, deixou que eu, o Fernando e o Joaquim
Vaz Antunes lhe déssemos uma tesourada no cabelo, que era enorme. Ficou como um
Cristo. Teve de rapar o cabelo à escovinha e comprar uma boina. Ainda lhe
sobraram quinze tostões. De outra vez, nos carrinhos de choque, ele trazia uma
perna de fora e, num choque a três, ele ficou com o sapato desfeito e a sangrar
abundantemente do tornozelo. Ele só dizia:
- Ai o meu sapato, ai
o meu sapato.
E nós:
- O Victor, olha a
perna, vamos ao hospital.
Mas ele não se
interessava do tornozelo, só continuava a lamentar o sapato. Apesar dos
dezassete ou dezoito pontos, nunca se queixou da dor mas sim, da perda do
sapato.
A demonstração de
amor também tomava formas pouco usuais. Conto-te só um resumo de duas.
A namorada do Victor
deixou-o, eu comecei a dar-lhe conselhos para a reconquista mas ele não me
ouviu. Colocou a fotografia da rapariga na lapela do casaco, arranjou um
canivete e todas as vezes que passava por ela, voltava a aba, apontava o
canivete para a fotografia e dizia:
- Hei-de-te matar,
velhaca.
Foi remédio eficaz.
Conseguiu ser aceite durante mais uns meses.
Outro que fez ouvidos
surdos à minha moderação foi o Fernando Vaz Antunes, não esteve com meias
medidas, perante a hesitação da apaixonada disse-lhe:
- Zézinha, ou casas
comigo ou dou-te uma sova que te mato.
Resultado: já está
casado há três décadas e vive feliz como um pardal.
Conclusão: conselho
só é válido para os assessores das grandes empresas. Na juventude só a sugestão
ganha força. Cada um toma o conselho da sua cabeça depois de ouvir montes de
conselhos. Os brasileiros é que sabem: conselho se fosse bom, não se dava,
vendia-se.
Voltamos à Cidade da
Guarda, depois do encontro na Cova Funda.
No dia seguinte,
apresentação de professores e eleição do chefe de Turma. Fui eleito para
espanto do professor de Inglês, Aristides, que perante o jovem desconhecido,
lhes chama a atenção para os riscos que corriam. Mas já estava eleito, já
estava eleito, e a mim pedia-me desculpa da franqueza.
Quando terminou, os
meus colegas, responderam em coro:
- Nós já o conhecemos
e bem.
O conhecimento foi
motivado pela tremendíssima bebedeira que o Nelinho tinha apanhado depois de
ter bebido do mesmo vinho que eu, o qual era muito forte para rapazes da nossa
idade. Foi ao colégio das freiras onde tinha a namorada, chamou-a, agarrou-se a
ela. Como ela não quisesse sair arrastou-a pelos cabelos. Um escândalo de que
eu não me apercebi porque me deitei em cima da cama e o deus Baco me
proporcionou um rápido sono.
Aquela Guarda, a 1075
metros de altitude é a cidade de ares puríssimos, a minha cidade bonita. Apesar
de ser a cidade dos F. Forte, farta, fiel, feia e falsa. Não tem nada de feia
nem de falsa. É uma cidade lavada, cheia de vida, de força, de pujança e de
fortes e sólidas amizades. De falso, só o bispo que deixou entrar no seu paço
D. João I de Castela quando da crise de 1383 - 1385, contudo, o alcaide - mor
Álvaro Gil Cabral nunca lhe entregou o castelo e manteve-se fiel ao Mestre de
Avis. A cidade não tem culpa da infidelidade do bispo. Eu deslumbrei-me com a
camaradagem dos meus colegas e a simpatia das pessoas, mas aqui também sofri o
meu primeiro grande desgosto e zanguei-me, a valer, pela primeira vez na vida.
Ainda hoje vivo essa zanga quando me recordo do que aconteceu. O mais estranho
é não conseguir esquecer, embora a pessoa já tenha morrido.
Um professor tem de
saber que a sua missão na terra é a mais sublime entre todas. Se escolhe esta
profissão sabe que acima dele estão os alunos que tem de defender, ensinar e
guiar para que um dia, sejam melhores que ele. O professor é a escada da vida.
Este, a quem nunca perdoei, e lho fiz sentir, foi um biltre que me reprovou
gratuitamente. Isso nunca o esquecerei.
Nunca me importei de
reprovar mas não suporto injustiças.
Uma vez um juiz
condenou-me injustamente. Eu jurei que nunca mais ali entraria de vontade. Só
algemado. Professores e juízes têm de ser verdadeiros conhecedores da alma
humana e do porquê dos seus comportamentos. Se tiverem incertezas ou limitações
não passarão de sinistros títeres do género humano.
Vamos deixar as
considerações para o seu tempo.
O companheirismo na
Guarda é muito forte. O ar dos montes Hermínios limpa os miasmas que afectam a
juventude e tudo se aceita com graça.
As feras do Liceu
eram o reitor e o contínuo “Bissaia”, que era alcunha, por ele andar sempre
empertigado e de pasta como o célebre Prof. Doutor Byssaia Barreto.
Nos primeiros dias havia sempre falta de um ou
outro professor. O chefe de turma devia perguntar ao contínuo se podíamos sair
da aula.O Cônscio disse-me:
- Vai perguntar ao
Bissaia se podemos sair. - Depois de alguma insistência; o Cônscio quando
começava nunca mais acabava. Lá fui perguntar ao continuo.
- Sr. Bissaia, não
temos aulas, podemos sair?
O homem, de olhos
muito abertos e de ar espantado, perguntou-me:
- O quê?!
- Podemos sair?
- Repete como na
primeira vez.
- Sr. Bissaia...
- O quê?! - Espumava
ele
Eu calei-me. O tipo
não parecia bom da cabeça. No varandim, do primeiro andar, os meus colegas riam
divertidos enquanto o Cônscio me fazia sinal para acabar a conversa e subir.
Mas o Bissaia é que não estava para largar quem lhe falava?
- Diz lá?
- Podemos sair?
- Não é isso! repete
tudo! - Gritava o monstro.
- Sr. Bissaia...
- Eu não sou Bissaia!
E se me tornas a chamar Bissaia... escavaco-te! Eu chamo-me Lauro!
- Já podia ter dito.
Podemos sair?
- Não!!!
Era a vingança do
infeliz de pau na mão. Nós nem nos importávamos de não sair, divertíamo-nos
imenso a conversar uns com os outros naquela pequeníssima despensa de
arrecadações transformada em sala de aula.
Era muito estreita;
as carteiras eram corridas para ocuparem menos espaço. Em cada carteira estavam
dois alunos. O meu companheiro era o Zé António Costa Ferreira, falador
inveterado; contava histórias, pedia constantemente para ir buscar giz ao
quadro, fazia as perguntas mais disparatadas para diminuir o tempo de aulas e
de chamadas. Era impossível, mas todos achavam graça, menos eu, que sofria
calado, e não achava graça porque tinha decidido passar de ano e se ouvisse as
aulas com atenção já não necessitava de estudar. Eu estava ciente que as
matérias não custavam nada e só falhava por desinteresse. Naquele ano resolvi
passar. Bem me esforçava para que o Zé António estivesse calmo. Nunca houve
maneira. O único que lhe chegava a roupa ao pêlo era o Ti Zé Vilhena, professor
de história, que ensinava, mandando sublinhar e ler na aula, em voz alta, a
história do Matoso. Eu oferecia-me sempre para ler. Quando era interrompido
pelo Zé António lá estava este a levar varada. Aquela leitura continuou a fazer
de mim o melhor aluno de história mas sempre com notas de 12 no fim do período;
o professor descontava-me pontos sempre que eu ajudava os meus colegas quando
estavam a ser chamados ou ditava as respostas dos pontos. Ele era um pouco
surdo.
- Já tens mais uma
cruzinha. - Dizia ele, avisando-me que, dessa maneira, baixava a cotação. No
final do ano a caderneta estava repleta. Era um autêntico cemitério. Apesar de
avisado muitíssimas vezes, o Ti Zé Vilhena nunca me bateu, mesmo quando um dia,
eu, não me podendo conter com a expressão da sua cara, ri a bom rir de um
esgar. Ele voltou-se para mim.
- De que estás a rir?
De que estás a rir? Julgas que eu sou palhaço? Julgas?
Eu disse-lhe a
verdade.
- Da sua cara, senhor
doutor.
Ele levantou a vara
mas não bateu, aceitou a pureza da minha verdade. Só insistiu:
- Achas que eu sou
palhaço? Achas?
O Zé António
inventava imenso e o ti Zé Vilhena sempre castiço, dizia-lhe:
- Não inventes,
homem, olha que quem fez o nosso livrinho sabia mais do que tu e do que eu.
Era um professor da
velha escola. Tinha vivido sempre os ares da Guarda. Conta-se que um dia, ele e
os colegas, já muito bebidos, resolveram arrastar a Sé da Guarda para junto do
Liceu, ali a dois passos. Despiram as capas e as batinas. Todos, à uma,
afadigam-se a empurra-la esforçadamente. Um estudante mais antigo e sóbrio
afastou-lhes a vestimenta para uns metros mais atrás.
- Isso está a ir. -
Disse-lhes, enquanto eles limpavam o suor. Um deles olhou para trás e ficou aflito.
- Alto, alto! mais
não. Vejam os metros que já a fizemos andar, daqui a pouco fica em cima do
Liceu.
Os professores
utilizavam muito a vara para apontar, no quadro negro, o que iam explicando,
mas a vara servia-lhes também para umas sacudidelas na cabeça e nas braços dos
alunos.
O Professor de Inglês
usava-a com prodigalidade. Obrigava-nos a decorar textos do livro.
Principalmente as pequenas histórias de quinze ou vinte linhas, o que era um
bocado violento. No dia seguinte perguntava:
- Sabes?
Se respondíamos
afirmativamente íamos para junto do quadro que ficava quase colado à secretária
de tão exígua ser a sala. Lá papagueávamos a história com algumas varadas pelo
meio, sempre que o aluno gaguejava mais do que o permitido. Se dizíamos que não
tínhamos estudado, marcava nota negativa.
O Zé António, bem
tentava, com as interrupções, amenizar o sacrifício, mas havia sempre muitas
vítimas. Éramos considerados a pior turma, até que um dia o Zé me disse.
- Eu tenho uma ideia.
- Lá vamos ter é
sarilho.
- Ouve e cala: nós
ficamos sempre entre o professor e o quadro, se colocarmos o texto no quadro, o
Aristides não vê e nem se pode levantar. Se ele o quiser fazer arranca-se o
papel quando nos desviamos. Queres experimentar?
- É para já. - Com a
colaboração de todos, à porta fechada, fizemos vários testes com uns a servir
de professor, outros de alunos e o Zé António ou outro a colocar e a tirar o
papel.
Passámos dos piores
aos melhores. O Aristides estava deslumbrado. Fazia-nos rasgados elogios. Nunca
descobriu. Só uma vez tivemos um pequeno percalço. O Aristides começava sempre
com a historieta, mas quando ela era pequena e via que todos a sabiam passava a
explicar outra matéria ou analisava o texto seguinte. Era muito bom professor.
Nesse dia, ouviu três
ou quatro alunos sempre com a sagrada pergunta:
- Sabes?
A resposta era sempre
positiva, mesmo que não fizéssemos a mínima ideia do que se tratava. Nesse dia o Aristides
chamou o Maurício. Ele usava lentes muito fortes e não se apercebeu que o José
António já tinha tirado o papel porque o Aristides, depois de ouvir os alunos,
a seguir explicou matéria, mas como ainda lhe sobrassem 3 ou 4 minutos de aula resolveu
aproveitá-los, outra vez, com a história. O Maurício ia todo sorridente, estava
muito bem disposto, já tinha experiência das outras vezes e tinha visto colocar
a folha arrancada do livro, mas não a viu retirar. Ele nem sabia o título da
história.
- Começa. - Diz-lhe o
professor.
A turma olhou-se
inquieta. O Maurício procurava a folha do livro por todo o lado, começou a
ficar lívido. O Prof. olhou para ele.
- Então?
Até ao fim da aula o
Aristides encheu de varadas o infeliz Maurício que só gemia:
- Amnésia, senhor
doutor. Amnésia.
Nós, depois do
primeiro impacto, ríamos perdidamente e assim o salvámos de mais algumas
bordoadas que foram distribuídas por aqueles que não continham as gargalhadas
por mais varadas que levassem.
Tudo isto pode ser
feito mas os jovens têm de estudar ou, pelo menos, estar muito atentos na aula.
O verdadeiro sumo da matéria é muito reduzido e de fácil absorção. Aquilo que
desvia os alunos das matérias é aquilo a que na linguagem estudantil se chama
palha e que muitos professores confundem com matéria e tornam as disciplinas
intragáveis. Conseguem diluir a essência com montes de teoria balofa e
improdutiva.
Por que razão os
alunos são capazes de ler os livros mais diversos e não são capazes de ler os
de estudo? Pelo que acabei de dizer.
Eu ofereci todos os
meus livros à Casa da Mocidade da Guarda, impecáveis. Porquê? Eu, que era capaz
de ler até de madrugada e mesmo depois de umas horas de farra, por que razão
não lia os de estudo? Falta de motivação dos professores e minha e livros com
pouco interesse.
Minha mãe lia imenso;
Camilo, Bocage, Eça, Gomes Leal, Júlio Dinis Florbela Espanca, Aquilino, Alves
Redol, Ferreira de Castro, Júlio Dantas, Gomes Leal, Gomes Ferreira, Tolstoi,
Morris West, Erico Veríssimo, Somerset Maughan, Stendhal etc, etc.
A partir dos dez
anos, deixei de ler os livros que minha mãe comprava para a minha idade e
comecei a ler tudo o que ela lia. Queria entender o porquê da vida. E procurava
a explicação naqueles. Era a minha intuição, a minha partícula divina, a indicar-me o que devia fazer.
A maior invenção do
ser humano foi o livro. Com o livro desenvolveram-se e fixaram-se os
conhecimentos. E, mesmo existindo os mais complexos meios de gravação, há-de
ser o livro que prevalecerá como ligação desses conhecimentos. É uma ligação de
amor eterno. Porquê? Porque o livro seguramo-lo entre as mãos, apalpamo-lo, não
nos cansa, repousa a nosso lado, dorme connosco, conversa calmamente de maneira
que o conhecimento nos é fornecido como um manjar delicioso que recordamos
quando nos interessa.
O livro é o
companheiro que nos ensina e nunca discute. Sentimo-lo entre as mãos. É um
contacto afectivo. Se nos desagrada pomo-lo de lado e procuramos outro. Ele não
se aborrece, nem faz má cara.
Continuo a insistir.
Deve-se utilizar a inteligência para se resolverem não só os problemas do
ensino a nível dos países menos desenvolvidos como até dos mais desenvolvidos.
Comparar o que está feito nos outros lados e melhorar sempre.
Quando todos souberem
ler, escrever e contar, o mundo dá um salto enormíssimo e, se esse saber ler,
escrever e contar for acompanhado de sugestões, conselhos e ensinamentos sobre
as relações humanas e o desenvolvimento humano, acabam as guerras porque o ser
humano estará feliz. Quem é feliz nunca aborrece os outros porque não sente
necessidade e não quer ser aborrecido.
Acredita em ti,
ciente que a tua vontade, a tua liberdade, o teu amor à vida e a tudo quanto te
rodeia te pertence e podes usufruir dos seus benefícios dando-lhe, em troca, um
pouco do teu esforço a bem dos outros. É o reflexo da vida: vivemos todos em
função uns dos outros. Se ajudarmos os mais inaptos estaremos sempre a
ajudar-nos a nós próprios e a ajudar a humanidade a viver a vida, a viver a sua
felicidade.
Isto não é utopia. É
fruto de cinquenta anos de estudo e de sessenta e quatro de amor, mesmo quando
devia sofrer. Por inacreditável que pareça, até o sofrimento me dá prazer.
Aceito os desafios, vou à luta, provoco as situações ou elas até me apanham de
surpresa.
Não desisto enquanto
não compreender a vida e por isso me desnudo para, se não for eu a desvendar o
segredo que continua a envolver o porquê da existência dos pobres e da barbárie
que faz com que nos matemos uns aos outros, sejas tu a resolver esse mistério.
Estamos, outra vez,
na cidade da Guarda.
O Cônscio era o único
aluno que estudava, talvez porque apoiado pelos pais; o pai era médico, ele
fosse levado a fazê-lo de maneira correcta. Mas ele era inteligente embora, às
vezes, um bocado maçador com as suas teorias. Era o mais novo da turma. Os
colegas fugiam das suas conversas. O único amigo que ouvia o Cônscio era eu. Ele
tinha conversas diferentes. Era um jovem que gostava de descobrir coisas para
beneficio do mundo. Lembro-me que o ouvi, durante dias sobre a invenção de um
carro que funcionava a água, enquanto passeávamos pelo jardim da Guarda,
descíamos até ao antigo sanatório e regressávamos purificados pelo ar bendito
daquelas alturas. O automóvel funcionava através de um reduzidíssimo
combustível para fazer que a água entrasse no circuito idealizado por ele. Podia andar milhares de quilómetros enquanto
houvesse fontes, torneiras ou rios onde abastecer. Não sei se ele continuou com
as investigações: já não o vejo há uns bons 46 ou 47 anos. Sei que intimamente
lhe desejava o maior sucesso, embora na altura lhe fosse contestando a ideia
para ele melhor pensar nela. Ficaria felicíssimo se um português conseguisse
revolucionar a área dos combustíveis e despoluísse este mundo abafado em
dióxidos e asneiras.
O ano foi passando e
apesar de estudar pouco, os exercícios do período garantiam-me a ida a exame.
No dia anterior à saída das notas estava eu com o Calheiros, grande amigo, que
tinha uma voz de sonho e que era o nosso cantor para as serenatas. Ele cantava
e nós fazíamos as conquistas. Muitas vezes, quando ele não queria cantar,
oferecíamos-lhe uma boa sova e ele lá se resolvia a abrir a goela. Era o máximo
o Calheiros. Especialista no canto e em pilhar galinhas aos professores.
Fazia-o com requinte. Enquanto nós usávamos todas as cautelas e queríamos que
ele se despachasse, ele preparava aquilo como se fosse para um concerto de
ópera:
“Quereis a castanha
ou a preta?”. Apetecia-nos apertar-lhe o pescoço. “Despacha-te!” e ele: “A
castanha ou preta?” e tínhamos de escolher, senão não saíamos dali. “A
castanha”. Nunca mudou, fazia aquilo sempre com todo o requinte. Só uma vez lhe
fiz devolver um belíssimo capacho que ele levou para a República Baco - Vénus
que funcionava no meu quarto e onde eram julgados os caloiros.
- É proibido tirar
seja o que for, salvo aves de pena e animais de pêlo, e só para as ceias
imediatas, ouviu seu bruto?
- Eu só queria que
todos pudessem limpar os pés.
- Vê mas é se não
sujas as patas com material que podemos dispensar.
Apesar deste
“suave”tratamento, nunca se aborrecia.
Era um amigo.
O Calheiros era
também um refinadíssimo cábula; só estudava nos últimos dias do ano. No dia
anterior à saída das notas ele estava triste, encontrávamo-nos na sede da
Mocidade Portuguesa, casa onde toda a juventude se juntava. Ele estava
preocupadíssimo com as disciplinas de português e inglês. A português tinha tido dois Medíocres
nos pontos. Eu tinha tido um Bom e um Suficiente, estava mais que descansado.
Só ia com deficiência a matemática. Estávamos nesta conversa quando chegou o
Ferreirinha, professor de português. o Calheiros agarrou-me o braço.
- Ó Cunha Simões, por
favor, pede ao Ferreirinha por mim.
O Ferreirinha era o
dirigente da Casa da Mocidade como professor e eu era Comandante de Bandeira da
mocidade Portuguesa. Estava muito à vontade com ele, como estive sempre com
todos os professores, nunca fui tímido. O Ferreirinha deu as boas noites e eu
fui com ele para a sala das reuniões. Imediatamente lhe atirei.
- Queria pedir-lhe um
grande favor.
- Tu não tens
problemas na minha disciplina.
- Não é para mim. Dê
nota ao Calheiros para ir a exame. Eu prometo-lhe que faço uma boa revisão da
matéria com ele.
O Ferreirinha
olhou-me com ar indefinido.
- Ele é assim tão teu
amigo para te empenhares tanto, em vez de te preocupares contigo?
- Ele faria o mesmo
por mim.
- Aquela turma, é uma
turma desgraçada. Vocês são os maiores cabulões do Liceu.
Eu fiz que não ouvi e
continuei a insistir na petição. O Ferreirinha saiu irritado da casa da
Mocidade.
No outro dia
estávamos os dois reprovados e quase toda a turma. Mais de 80%. Eu fiquei
louco. O Ferreirinha tinha-me reprovado injustamente. Vou a casa dele,
procuro-o pelo Liceu, por toda a cidade para lhe dar a maior sova que alguma
vez ele teria levado em toda a sua vida. Ou ele ou eu. Estava cego pela
injustiça e faria qualquer loucura se o tenho encontrado. Como não o encontrasse
reuni todos os alunos reprovados e fomos à caça de professores, entretanto
alguém devia ter dado o aviso e tinham desaparecido. Fomos ao liceu falar com o
reitor. Não nos queria receber. Eu mandei-lhe recado, pelo Bissaia, que íamos
começar a partir tudo. Lá me recebeu. Disse-lhe que era um escândalo tantas
reprovações e contei-lhe a parte do Ferreirinha e a resolução que eu tinha
tomado. O Rabaça, era o reitor, tentou acalmar-me, mas viu bem a minha
determinação. Depois de prometer que ia falar com os professores, embora as
notas já estivessem lançadas e ele pouco ou nada pudesse fazer, ia tentar.
No dia e dias
seguintes estiveram os portões do Liceu fechados. Como se tudo fosse natural
havia dois polícias passeando pelas imediações. Eu não descansei. Fui várias
vezes a casa do Ferreirinha, esperei-o horas, à porta e nada.
Quando fui para
férias ia com a alma desfeita. Afinal o professor era uma criatura indigna em
quem eu não podia confiar. Isso entristeceu-me tanto que por mais tentativas
que meu pais fizessem para sair de casa, enfiava-me no primeiro andar e
devorava livros sobre livros. Ao fim de um mês tudo voltou ao normal, excepto o
pensamento negativo contra o infame do Ferreirinha, o que para mim era uma
sensação nova.
O Calheiros tentou ir
falar com a professora de Inglês, que eu adorava, mas ela julgando que a íamos
atacar fechou-se em casa e no ano seguinte nunca mais sorriu para mim. E eu
respeitava-a tanto. Só estava com o Calheiros para evitar que ele lhe fizesse
algum mal ou a ofendesse. Ela não entendeu, nem podia entender. Sabia que
éramos um bocado loucos e temeu o pior. Foi outra mágoa. Perdi a amizade,
injustamente, de uma professora que estimava profundamente. Era muito
simpática, muito bonita e muito boa professora.
No ano seguinte não
tive nenhum professor do ano anterior. O
Rabaça era bom psicólogo e dessa maneira tentou evitar conflitos. Eu esqueci o
Ferreirinha, não sou de guardar rancores quando o motivo que os desencadeia não
me aparece pela frente, mas logo no início do ano eu estava na bela varanda da
casa da Mocidade observando o movimento da praça, o interessante casario sobre
as arcadas para abrigo e passeio de quem, nos breves, mas ferozes
Invernos, por ali se resguarda, a imponente
Sé da Guarda, a estátua do D. Sancho, onde muitas vezes fazia discursos
inflamados, melhor dizendo; vaporizados, depois de uma noite de serenatas, ou
de alguma ronda pelos galinheiros para a ceia; estava eu, dizia, no deleite
infinito do sonho, quando vejo a sombra monstruosa; ele pouco mais era do que
raquítico, do Ferreirinha. Tudo se transformou em mim, eu o doce, o amante, o
jovem capaz de sacrificar tudo pela felicidade dos outros, virei a fera
acossada e incapaz de suster os instintos. Saí intempestivamente da varanda e
fui-me postar no portão largo da Casa da Mocidade, para onde eu imaginei que o
infame se dirigisse. Não me enganei, o energúmeno ia descarada e incautamente
ver a casa que ele, como professor indicado para o efeito, devia dirigir.
Especado entre as
portas, que eu de propósito tinha aberto de par em par, estava eu, de braço
estendido e encostado à ombreira direita.
- Com licença. -
Disse o descarado.
Eu olhei-o faiscando
furor. Continuei na mesma posição. Quando ele ia passar pelo lado esquerdo,
estendi o braço esquerdo.
- Você não passa daí.
Eu nunca trato
ninguém por você, a menos que essa pessoa me ofenda. Fiz isso também com um
político quando ele me instaurou um processo por causa de um primeiro ministro
que ele tinha escolhido para depois o derrotar no Parlamento. É uma história a
contar mais tarde, em outro livro, em histórias politicas. Temos de fazer a
nossa catarse. Eu não dispenso de fazer a minha. Só conhecendo-nos uns aos
outros seremos capazes de resolver os problemas do mundo.
Voltemos ao infeliz.
- Eu sou o
director...- disse o Ferreirinha.
- Você não é nada. E
se fizer alguma coisa para o ser, eu dou cabo de você! Desapareça antes que eu
o agarre, o leve lá acima e o atire da varanda! - Eu devia estar de pêlo
eriçado porque o Ferreirinha desapareceu. Durante o ano nunca mais pensei nele.
O rancor não é semente que dê frutos. Eu talvez sentisse isso. Bastava-me um
sorriso de uma colega simpática ou um piano, ou um poema, ou um livro, ou um
cântico e as zangas desapareciam como por magia. Ainda hoje sou assim.
O Ferreirinha só se
queixou a um amigo dele, homem muito inteligente, o senhor José António, que
era na altura secretário do Governador Civil da Guarda e tinha sido Secretário
da Câmara de Penamacor, onde toda a gente gostava dele. Conversava com todos,
metia-se com as pessoas, mas sempre de uma maneira simpática, embora, às vezes,
puxasse demais a corda. Conto só esta para veres até que ponto ele podia
exasperar as pessoas:
Estava no barbeiro e
resolveu massacrar o bom do jovem que lhe cortava o cabelo. Este, farto de o
ouvir e não sabendo o que lhe responder perguntou-lhe:
- Ó senhor José
António, o senhor é de onde?
- Do Telhado.
- Bem me parecia.
- Bem te parecia?
- É. Na sua terra só
há burros e carvoeiros e, segundo me parece, o senhor não é carvoeiro.
O José António riu-se
e deixou o barbeiro em paz.
Foi ele que me contou
o desabafo do Ferreirinha já depois de eu terminar o quinto ano, onde esse
safado entra outra vez.
No Liceu só se falava
no que eu tinha feito ao Ferreirinha, mas eu não adiantei muito sobre o assunto
e aquilo ao terceiro dia morreu, como morrem todas as notícias ou
acontecimentos se não se insiste neles.
Andava pensativo,
escrevia uns poemas que enviava para o lixo, não estava a gostar de mim, sentia-me
aborrecido e acabava por me culpar a mim próprio. Estudar não estudava nada.
A matéria já a tinha ouvido no ano anterior e procurava fazer tudo o que me
distraísse. Continuei a ser chefe de turma e uma das professoras que mais
me davam prazer, não que ela me ligasse qualquer importância, mas que eu tinha
gosto em a ver ruborizada sempre que ficava zangada era a D. Fernanda Cardinali.
Não sei porquê tinha de a fazer zangar um bocadinho só para a ver de faces
rosadas. Como era chefe de Turma perguntava-me sempre em Inglês.
- Moniter. Who is
absent? - Chefe, quem falta?
Eu fingia que não
ouvia e ao fim de 4 ou 5 repetições da mesma frase, quando ela ficava zangada e
ruborizada eu respondia-lhe:
- Não absent ninguém!
Deixava-a
desesperada. Depois passava a aula sossegado e feliz. Era um pequeno
egoísta.
Ela tentou vingar-se
destas maroteiras. Eu perdoei. Embora jovem, compreendia que a sua retaliação
era justa. Como professora ela devia, não obstante, compreender o aluno e
arranjar maneira de o corrigir. Continuei a gostar dela na mesma, mas aproveito
para apontar dois dos seus ataques que me podiam ser fatais se eu não tivesse
esta elasticidade portuguesa que nos faz ser génios nos momentos difíceis.
Vamos ao contra
ataque da professora.
Eu nunca escrevia os
sumários que ela ditava e só passava os exercícios do quadro que não sabia. Lia
e compreendia bem inglês e como gostava da professora, mesmo sem ela gostar de
mim, tudo era simples. Um dia a D. Fernanda resolveu pedir os cadernos diários,
talvez desconfiada do meu fingido interesse. Tinha razão. Eu e o Borges
teríamos menos de um terço do que havia sido ditado para estar no caderno. Fez
um grande sermão e só não me marcou falta de castigo para não castigar o
Borges. Exigiu que trouxéssemos os cadernos diários impecáveis na Segunda feira
seguinte. Eu pedi o caderno emprestado ao Herculano e nesse dia e no outro
fiquei livre de preocupações. No Domingo houve jogo entre o Benfica e a
Académica. A grande maioria de estudantes da cidade da Guarda ia para Coimbra
estudar, por isso todos puxavam pela Académica. A Académica ganhou ao Benfica.
Não se pode imaginar a euforia. Um comerciante ofereceu uma pipa de vinho, e
durante todo o resto da tarde, milhares de estudantes, de todos os graus de
ensino, juntaram-se, cantaram, dançaram felizes. Tudo se passou sem partir
montras ou fazer quaisquer estragos. Foi até às tantas. Passámos perto das
janelas da professora e eu bem a vi, mas fiz de conta. No outro dia, depois do
tirar das faltas, pediu-nos os cadernos. O Borges foi lesto em mostrar aquela beleza
mas começou a lamentar-se.
- Senhora doutora,
estive até às quatro da manhã de hoje para o acabar.
- Então, não te
divertiste com os teus colegas?
- Nem pensar, estive
todo o dia em casa. - Não era verdade, o Borges tinha andado na farra como eu e
os outros.
- Bem feita! Não te
divertiste! Senta-te. Cunha Simões?
Eu ainda estava
sentado na carteira e continuei. Respondi-lhe.
- Eu diverti-me à
grande e à francesa.
Ela, cega de mente,
por culpa minha, não entendeu ou não quis aceitar a brincadeira.
- Vai ter falta de
castigo! Que número é, que número...?
Enquanto abria o livro para marcar a falta, eu
fui até junto da secretária, sem ela se aperceber, tal era a sua excitação.
Quando levantou a cabeça para me perguntar outra vez o número, eu respondi-lhe
com o ar mais cândido que consegui ajustar:
- Eu disse que me
tinha divertido, mas não disse que não tinha feito o trabalho.
A doutora Fernanda
perdeu as estribeiras. Estava esplendorosa mas implacável.
- Eu não lhe admito
que brinque comigo! Eu não sou da sua idade! Vai já ao reitor! - Carrega na
campainha, chama o contínuo e aí vou eu enfrentar o Rabaça. O Reitor depois do
contínuo lhe explicar quem me tinha mandado, perguntou-me.
- E então?
- A professora não
compreendeu nada e deve estar mal disposta. Mandou-me ao sr. Reitor. Estou
inocente. - O Rabaça conhecia-me do ano anterior . Sabia o meu modo de actuar,
embora contra uma senhora eu fosse incapaz de uma maldade.
- Vai outra vez para
a aula. Diz-lhe que tomei nota do assunto.
- Vou ser castigado?
- Não. Mas tens de
lhe dizer alguma coisa. - Foi o que fiz, e embora eu tentasse que ela me visse
aquele perfeito manuscrito que me tinha mandado copiar, recusou tocar naquelas
folhas, filhas da irreverência e inúteis, ou talvez não. Sempre revi matéria.
A D. Fernanda tentou
prejudicar-me na nota de Inglês. Eu, no exame, provei-lhe que sabia bastante
bem a matéria. Passei com uma boa nota, dada por outro seu colega . Se fosse
ela a examinar-me tenho dúvidas que isso tivesse acontecido, embora possa estar
enganado no que penso. Fiquei a gostar tanto da disciplina que embora tenha
seguido Filologia Românica domino bastante bem o Inglês, às vezes, melhor do
que o Francês.
O Professor nunca
deve prejudicar um aluno pela sua conduta. Ele tem de compreender o que se
passa e tentar resolver o assunto sempre sem lesar o jovem. Os jovens são
irrequietos, desagradáveis, às vezes até mal educados. O professor tem de
descobrir a parte sensível e despertar-lhes outras reacções.
Vou mostrar como
conseguia resultados positivos com os meus próprios alunos.
As aulas funcionavam
sempre muito informais de maneira a ganhar a confiança dos alunos. Eles sabiam
que podiam errar, perguntar ou dizer aquilo que pensavam que isso não me
incomodava, servia sempre para esclarecer. Muitas vezes vinham-me ideias
mirabolantes quando fazia chamadas.
Um dos indivíduos
mais cábulas que tive, mas muito bom rapaz e muito educado era o Henrique, ele
gaguejava um pouco, quando era chamado e não sabia a matéria, não havia maneira
de lhe arrancar palavra. Ali estava “am, am, am”, tempos infinitos. Um dia, em
que eu o senti forte psicologicamente, e sabia que não o ia ofender disse-lhe.
- Ó Henrique, se eu
gaguejasse como tu ganhava uma fortuna.
- Como, como? -
gritaram todos os alunos, enquanto o Henrique, espertalhão, manteve o ritmo.
- Co...co...co...como
sr. professor?
- Conheces a varanda
da minha casa?
-
Co...co...co...conheço.
- Colocava um cartaz,
a toda a largura, com os seguintes dizeres: “ Seja diferente de toda a gente,
aprenda a gaguejar com o Prof. Cunha Simões, ganhava uma fortuna”. - Gargalhada
e reboliço geral, todos queriam imitar o Henrique e ele sem se importar dizia:
- Pa...pa...pa...gas?
Ao marcar pontos de
período sabia que muitos dos alunos copiavam. Eu fingia que não via. Tinham copiado
a matéria do livro em casa, voltavam-na a copiar ali, alguma coisa lhes ficaria
na cabeça e ficava. Eu sabia-o por experiência própria. Um dos males dos
professores é esquecerem as suas próprias experiências de juventude.
Nos exames protegi
alguns alunos, não me arrependo. Uma aluna que repetia pela quarta ou quinta
vez o exame de francês, e que ali continuaria indefinidamente, é hoje uma
óptima advogada. Podia citar muitos outros que fiz passar perante os meus
colegas, escandalizados por eu omitir erros de palmatória só para os tirar dali
e serem bons para aquilo que estavam vocacionados e não para marcarem passo em
disciplinas a que eram totalmente avessos.
No livro de história,
que publiquei, insisto para que os professores ensinem a consultar os livros.
Os advogados, os médicos, os engenheiros é o que têm de fazer. Hoje, não há
ninguém que consiga saber tudo. O tempo dos sábios acabou.
Eu sei que as turmas,
com muitos alunos, são mais complicadas. Eu fui professor. Quando entrava na
aula era como entrar no paraíso. Por mais que eles fossem irreverentes eu tinha
sempre uma saída. Nunca uma saída piegas. Algo que os marcasse para o
entendimento.
Numa aula verifico
que 3 ou 4 alunos estavam a mascar pastilhas elásticas. Aquilo estava a
incomodar-me e disse-lhes.
- Acabem a mastigação
e deitem as pastilhas no lixo. - Eles assim fizeram, mas eu quis testar a minha
premunição; sabia o que iria acontecer, e acrescentei:.
- Sempre que venham
mastigar pastilhas para a aula, de três em três minutos colocam a pastilha na
testa, retiram, mastigam e testa.
No dia seguinte, dez
minutos depois de começar a aula, todos os alunos começaram a mascar pastilhas. Vi imediatamente o que eu
adivinhara. De três em três minutos; pastilha na testa. Só quase no fim da
aula, em que eles estavam besuntados até dizer basta, houve gargalhada geral.
Não os repreendi, fui eu que provoquei aquela reacção. Ri contente. A partir
daí nunca mais nenhum mastigou pastilhas
como era hábito.
O professor tem de
ser, na aula, o que abre horizontes e aquele que nunca se fecha a uma pergunta
incómoda.
Num texto apareceu a
palavra tango. Oito ou nove alunas declararam, e já tinham 16, 17, 18 anos que
não sabiam o que era o tango ou dançar o tango. De pergunta em pergunta resolvi
exemplificar; dancei o tango com algumas alunas e sem o mínimo reboliço. Claro
que escrevi no livro de Sumários “Dancei o tango com as alunas tais e tais...”
Foi um escândalo. A
direcção do Liceu Nacional de Tomar exigiu que eu modificasse o sumário. Eu
ri-me nas caras dos meus colegas: “foi isso que foi dado na aula, importa-me
bem o que pensem os inspectores do Ministério.”.
Um dos muitos alunos
que tive foi o António Manuel Lourenço dos Santos, que tem ocupado vários
cargos neste país e sempre com brilhantismo. Era um brincalhão incorrigível.
Ele era meu aluno de lições particulares e se eu não tenho insistido com a
professora de inglês para lhe dar nota, ela tinha-o reprovado sem razão. A
professora foi uma vítima a seguir ao 25 de Abril. Eu tive de intervir, várias vezes,
nas suas próprias aulas para os alunos pararem de a enxovalhar, talvez por
isso, embora renitente, deu-lhe nota para exame e ele saiu-se muito bem.
Insisto:
comportamento, não tem nada a ver com aproveitamento e se os alunos não têm
aproveitamento deve procurar saber-se o que está errado na maneira de ensinar
dos professores.
Só o aluno atrasado
mental deve ser encaminhado para as instituições respectivas. Esses é que não
têm hipóteses de aproveitamento nas instituições normais, os outros é uma
questão de orientação.
Há mais de trinta
anos já eu insistia que os alunos estavam nas escolas para aprender e
aprender brincando. Estamos a caminhar
nessa direcção. Na altura apelidaram-me de louco.
Continuo a insistir:
as disciplinas só são difíceis ou porque os livros as complicam ou porque há
matéria a mais e sem interesse que desmotiva o aluno.
Em lições
particulares tive alunos, já adultos, que fizeram sete anos em dois. Lembro-me
da Célia, do Martins, etc. Cinco anos em dois, foram muitíssimos. Isto provava-me
que eu tinha razão em estar revoltado com os professores e estar-me borrifando
para os estudos. Só os fiz por passatempo e quando me apeteceu.
Tu não deves proceder
desta maneira. Hoje, os tempos e as circunstâncias são diferentes.
É fundamental que os
alunos se apresentem aos exames que entenderem, independentemente da idade.
Neste deambular pelo país encontrei miúdos, com oito, onze e doze anos que
estavam ao nível de qualquer professor universitário, no entanto andavam pelo
terceiro, sétimo e oitavo ano, aborrecidos e sujeitos a desistirem por falta de
interesse. Normalmente são os países
estrangeiros que os absorvem. Lembro-me de um que foi reprovado aqui em
matemática e é um génio nas ditas, em Inglaterra.
Por agora, só conto
mais esta e que revela bem o mau carácter ou a atitude irreflectida de alguns
professores.
Na faculdade de
Letras, em Lisboa, a professora de Latim reprova a latim, um jovem que lia e
escrevia Latim como os melhores latinistas. Foi ele que me deu lições de latim
para o exame do sétimo ano, hoje 11º. Ele tinha saído do seminário quase a
cantar missa. Resolveu à última hora vir cantar para outras freguesias. Fez
como entendeu. Entrou para a faculdade. Teve de lá sair enojado com o que lhe
aconteceu e porquê? Porque ingenuamente emendava pequenos erros da professora.
O Resultado foi sair da faculdade para não acontecer nada de mal a quem mal lhe
fazia sem necessidade. Perdeu-se um catedrático de Latim, salvou-se um Homem de
honra.
Eu senti na
faculdade, o incómodo de uma intervenção não concordante com a do Professor.
A Professora Doutora
Crabbé Rocha, dissertava sobre “Os Relógios Falantes”, eu, atento, via a
explicação de maneira completamente diferente e em vez de esperar pelo fim da
aula e ter exposto, em particular, a minha opinião, automaticamente peço para
interromper e dizer de minha justiça. A Professora não tinha pedido sugestões.
Depois de ter falado, vi que tinha causado incómodo e só aí me apercebi da
minha falta. A Professora ouviu e aceitou dizendo que era outra maneira de
abordar a matéria. Não ficou magoada. Devia ter pensado que fui deselegante por
impulso. Alguns anos depois, no meu livro “Os homens são Difíceis” citei-a como
o forte esteio do marido na crítica e revisão dos livros. Foi a maneira que eu
tive de lhe pedir desculpa da minha deselegância, da minha falta de tacto,
falta de saber ou impulso que não soube controlar, e é um pouco isto que
acontece com quase todos os jovens. É preferível ouvir um irreverente do que se
perder uma boa ideia. São os riscos e a subtileza dos professores que fazem
desenvolver o mundo.
O aluno tem
necessidade de dizer o que pensa e isso, muitas vezes, não é coincidente com o
que pensa o professor. Este não deve ficar ofendido com o desplante do jovem.
Nunca me ofendi com as irreverências ou com as perguntas dos meus alunos.
Disse-o uma vez, dois ou três meses antes do 25 de Abril, num programa do
Manuel Varela, que eu aprendia com os meus alunos. Cada um, entendesse como
quisesse.
Na verdade, nós
aprendemos tudo quanto quisermos e quanto mais aprendemos mais fácil é aprender
seja o que for. Nesse programa do Manuel Varela, embora fosse sobre o livro “Os homens são difíceis” que
ele ia tratar, eu aparecia a arranjar relógios de bolso. A ideia era
demonstrar que os interesses dos homens
podem ser os mais diversificados. E quanto mais são, mais se apalpa a vida,
mais se saboreia, mais sentimos que estamos a viver.
Como é que eu aprendi
a arranjar relógios? Um dia apareceu-me lá em casa um especialista em
ourivesaria e relojoaria, o sr. Santos. Eu não o conhecia. Estamos em Tomar.
- Sei que o sr. dá
lições, particulares, de Inglês. Eu queria aprender.
Eu andava muito
cansado e indiquei-lhe vários bons professores, mas ele teimou, pediu desculpa
da insistência e eu achei-o tão delicado que lhe perguntei:
- O sr. trabalha em
quê?
- Sou relojoeiro.
- Fazemos o seguinte,
o sr. ensina-me a arranjar relógios e eu ensino-lhe inglês.
Perante o espanto
dele, ao fim de menos de 4 meses, eu punha um relógio impecável enquanto ele me
confessava que tinha andado mais de quatro anos para aprender o mesmo. Eu
respondi-lhe que o mérito estava no professor. E estava. Ele é um especialista
e tem gosto em ensinar o que sabe. Devido a essa aprendizagem coleccionei
relógios, vendi relógios e até cheguei a trocar 7 belíssimos relógios por um
Ford Perfect, ao meu querido e saudoso amigo Manuel Marques (Migalhas), que era
um fabuloso artista na arte da latoaria.
Outra vez troquei
lições com o sr António Alves. Também me apareceu lá em casa. Queria lições de Francês.
Ia para França. O patrão não lhe dava os 200 escudos de aumento que ele tinha
pedido. Estava casado há pouco tempo e o dinheiro não lhe chegava. Ao princípio
não o aceitei. Ele voltou 8 dias depois.
- Tenha paciência sr.
professor, é consigo que eu tenho fé. Leve-me o que quiser. Eu pago-lhe quando
voltar de França, no próximo ano.
Perante aquele: “é
consigo que eu tenho fé”, eu, que sou um pouco supersticioso, acreditei que lhe
poderia valer.
- O que faz?
- Sou chefe da
oficina de electricidade de automóveis do Sr. Câncio.
- O sr, dá-me lições
de electricidade de automóveis e eu ensino-lhe Francês.
- Como fazemos?
- Eu vou para a
oficina todas as manhãs. - E lá ia, perante o olhar admirado de quantos me
conheciam e não resistiam a fazer perguntas. Eu respondia invariavelmente.
- Temos de deitar mão
a tudo. Quanto mais sabemos mais vivemos, porque mais nos apaixonamos pela
vida. - E acreditava no que dizia.
O sr António só me
ensinava uma vez e a seguir, para seu espanto e do sr. Câncio eu reparava os
carros seguintes. Das muitíssimas avarias que me ensinou a reparar, todas as
repetições foram de minha lavra. O sr Câncio, feliz de contente, cobrava como
se eu fosse 1º oficial. Além da reparação ficar perfeita, era muito rápido nos
trabalhos e não tinha que me pagar coisa nenhuma.
Isto não tem nada de
extraordinário. Quanto mais aprendemos, mais fácil é aprender outros assuntos.
A vida é uma sequência de aprendizagens, está tudo ligado. É como puxar um fio
e aí vem tudo. Acontece isso com os trabalhos manuais, acontece isso com as
línguas, acontece isso com qualquer outra matéria. Matéria puxa matéria.
Que aconteceu ao sr.
António Alves e às lições de Francês?
Todas as noites, eu
matraqueava a lenga-lenga. Ao fim da quinta lição pediu-me para deixar assistir
um amigo dele, era primeiro sargento; reparava televisões também na oficina do
sr. Câncio. Naquela altura, um ano antes do 25 de Abril, um primeiro sargento
ganhava muitíssimo pouco. Eu concordei.
À medida que os dias
passavam vi que aqueles dois homens faziam falta a este país: eram dois
prodigiosos especialistas que iriam enriquecer outra nação tendo nós tanta
necessidade de gente qualificada. Todos os dias lhes dizia:
- Aqui é que é a
França. Aqui é que se pode ganhar dinheiro. Está tudo por fazer.
- Mas como? -
perguntavam-me eles.
- Montando uma
oficina igual à do sr Câncio.
- Não temos dinheiro.
- Têm crédito. - Eu
posso emprestar, sem juros, e lá lhes disse quanto.
Eles começaram a
pensar no assunto e a procurar.
Montaram a Repal
Ourém em Vila Nova de Ourém, sem necessitarem do meu empréstimo, porque todos
aqueles a quem recorreram lhes facilitaram a vida. Hoje são dois verdadeiros
potentados.
Tinha razão, o meu
amigo António Alves. A fé é a intuição que raramente nos engana. É preciso
saber aproveitar a intuição e o conhecimento das matérias em que devemos ser
muitíssimo bons. É preciso insistir na fé que desperta os nossos desejos e
actuar sem receios. É preciso juntar a fé à acção e ao conhecimento para se
atingir a prosperidade e a felicidade.
Todos nós estamos
carregados de energia. É a tal partícula
de que tenho falado. Essa energia capta outras energias a longas distâncias,
vê, em determinados momentos, factos que outros não prevêem. Dou-te exemplo de
factos que podem ser confirmados.
Em 1963 ou princípios
de 1964 estava no Cine teatro Tomarense com quatro amigas, eu estava numa ponta
do 1º balcão seguido da Maria Ermelinda, a Maria Alcina, a Manuela e a Graça, a
determinada altura do filme, e sem que nada o motivasse, disse à Maria Ermelinda;
vai acontecer um terramoto. Ela respondeu-me.
- Não diga patetices.
Esteja calado. Veja o filme.
Mas eu estava
inquieto e continuei a insistir. Passados 7 ou 8 minutos, um tremor de terra
abalou todo o edifício. As pessoas aterrorizadas preparavam-se para fugir. Como
estava avisado, levantei-me rapidamente e gritei:
- Daqui ninguém sai!
Passados uns segundos
as luzes foram abertas e só, depois, as pessoas começaram a sair calmamente e
sem atropelos. O cinema estava quase cheio, quando continuou o filme só ficamos
nós e mais uma vintena de valentes. As minhas amigas ficaram porque eu lhes
garanti que o perigo tinha passado.
Esta sensibilidade,
esta energia é uma das nossas defesas que mal sabemos explicar mas que todos
possuem num grau maior ou menor.
Outro caso, com duas
vertentes. Eu falo nele, por alto, no livro “Doenças que as plantas curam”. A
minha amiga Maria Alcina e o Manuel estiveram alguns anos sem ter filhos,
consultaram alguns médicos, o pai da Alcina, o Dr. Gomes da Silva era médico.
Não tinha hipóteses de engravidar. Num dia em que falávamos sobre o assunto eu
disse-lhe entre o sério e a brincadeira.
- Queres que eu te
arranje um filho?
- Não sejas doido. -
Respondeu-me ela.
- Estou a falar a
sério.
E de conversa com o
Manuel e com a Alcina e mais só a minha energia eles acabaram por não só ter um
mas três filhos. Com a primeira, no segundo mês de gravidez indiquei-lhe o dia
exacto do nascimento. Ao sexto mês confirmei o dia mas nem a Alcina nem o
Manuel acreditaram. A médica que a seguia dava-lhe mais dezasseis dias depois
da minha data.
Estava eu a entrar
para o mesmo cine teatro de que já falei, quando vejo a Alcina e o Manuel a
atravessarem o átrio, gritei-lhes imediatamente, perante o espanto de quem
entrava naquele momento e o ruborizar da Alcina.
- Alcina, tu não
podes estar aqui, vais ter a filha logo de manhã!
Nos corredores do
Teatro a Alcina, muito corada, voltou a dizer-me se não tinha vergonha por
falar tão alto e que tinha precisamente ido à médica e ela lhe tinha dito que o
parto ainda estava demorado. Eu insisti na minha certeza. Às seis ou sete da
manhã estava o Manuel excitadíssimo ao telefone.
- Já nasceu!. Já
nasceu! Você sabe mais que todos.
Não sei nada. Uso a partícula em que acredito. Só não a
posso utilizar em meu proveito. Ela só me protege quando os meus exageros
ultrapassam as loucuras.
As nossas viagens do
século XXI devem ser as do pensamento. Vender ideias para ajudar primeiro,
Portugal e depois todo o mundo. Brancos, negros, mulatos, amarelos, vermelhos
somos todos irmãos dispersos pelo grande útero que nos acolhe.
O Manuel Guimarães
era inteligentíssimo. Eu, no livro de “História de Portugal 1097-1999” digo que
ele se formou com 20 escudos no bolso. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Ele admirava-me pela loucura, eu admirava-o pela inteligência. Ele serviu-me de
estudo para assistir à subida a pulso de uma vida, a sua, que terminou jovem. A
minha, que quase me ofendia, por ser tão facilitada, foi sempre palco de uma
revolta constante mas de aparência feliz.
Para entender o
porquê destas diferenças, e para as saber resolver, cometi vários erros de que
ainda hoje sofro as consequências. Só me arrependo das vezes que prejudiquei
alguém, durante algum tempo, mas sempre certo de que os prejuízos seriam reparados.
O Manuel insistia em
que vivemos num mundo de lobos famintos e que eu seria destruído se continuasse
idealista. Era um conselho que eu nunca aceitei porque sempre pensei e ainda
continuo a pensar que estas desigualdades têm uma solução. O meu idealismo tem
razão de ser: eu acredito na felicidade do ser humano. Na junção do ideal e do
material.
Ele, várias vezes
contava as minhas facécias ou as minhas destemidas atitudes o que,
aparentemente, estava em contradição com esse idealismo. Relato três episódios
que ele referia frequentemente.
O primeiro passa-se
em pleno Inverno. A Cidade da Guarda e arredores congelaram durante mais de 17
dias, a temperatura ultrapassou os 15 graus negativos. Para a juventude aquilo
era o delírio, não havia frio que cortasse a sede de brincadeira, de corridas
no gelo, a feitura de bonecos e castelos, de batalhas campais com bolas de
neve. Num desses dias, estava eu no quarto da Pensão Central e oiço gritos
aflitivos, medonhos, misturados com choros lancinantes. Certo de que era na
entrada da Pensão, vesti rapidamente uma camisola branca, de gola alta, e vi,
indignado, que a entrada e a escadaria estavam repletos de raparigas que ali
tinham sido encurraladas e os meus colegas atacavam, inconscientemente, com as
rijíssimas bolas de gelo. Consegui sair para a rua por outra porta. Em voz de
trovão gritei:
- Aquele que lançar
só mais uma bola de neve ou gelo eu atiro-me a ele e desfaço-o! E, voltando-me
para as raparigas ordenei: saiam!
Fez-se silêncio entre
os mais de cento e setenta atiradores. Até que um disse.
- Ó Cunha Simões, és
louco?
- Sou, e apesar de
teu amigo rebento-te os queixos se não fizeres o que digo. - Mais uma vez
ordenei às raparigas para saírem. Fi-lo com tamanha veemência que saíram
confiantes. Por incrível que pareça, nenhum se atreveu a desobedecer.
Depois desta cena,
onde o Guimarães também se encontrava, ele passou a admirar esta bravata
portuguesa que nos está no intimo, que nos fez ganhar esta terra, que nos fez
entrar pelos sertões sem medo, mas que também nos fez arrostar lágrimas de
sangue e raiva em Alcácer Quibir.
Tínhamos uma
República. A República Baco - Vénus. Os membros eram o Adérito, o Martins de
Almeida, o Calheiros, o Bidarra, o Guimarães, o Chartier, o Sá Pessoa, o
Armindo e eu. Desde serenatas e ceatas todas as semanas, a julgamentos de
caloiros, desempenhávamos a missão como manda a lei da cabulice.
Muitos dos
julgamentos serviam para testar o grau de cultura do caloiro: desde saber a
data da fundação da Sé da Guarda, quais os pratos tradicionais da região até à
fabricação do queijo da Serra, tudo servia para dar as boas vindas ao neófito.
Ai daquele que não soubesse que a Sé tinha sido mandada edificar por D. João I
em 1390, que entre os pratos tradicionais se destacavam o cabrito assado, a
feijoada de lebre e o arroz de carqueja e que o melhor queijo da Serra provinha
das ovelhas bordaleiras sendo o melhor o dos meses de Janeiro e Fevereiro.
Lembra-me de um
julgamento, a que presidi, tendo como advogado de acusação o Martins de Almeida
e de defesa, o Adérito Nunes Monteiro. Depois de muito massacrada, a vítima,
foi condenada ao enforcamento com bênção apostólica para o que na altura, à
vista dos presentes, o Bidarra e o Chartier urinaram para um bacio. No tecto
tínhamos colocado um gancho feito de arame coberto de pano preto, parecia
fortíssimo, onde estava sempre uma corda. A vitima via tudo aterrada. O
Advogado de defesa barafustava, não só pela condenação, mas porque, também ele,
tinha de pagar cinco litros de vinho devido às custas e pelo condenado ser
insolvente.
Mandei vendar o
“animal”, o Calheiros cantou uma ladainha própria e o Sá Pessoa começou a
borrifar o infeliz, com água morna que nós tínhamos já preparado. Ele julgava
que era urina e as lágrimas corriam-lhe cara abaixo. Depois de bem molhado, o
carrasco que era o Guimarães ajudou-o a subir para um banco, passou-lhe a corda
ao pescoço. Fez-se silêncio. Ordenei-lhe que saltasse. Depois de uma pequena
hesitação saltou e com ele a corda. Como tinha escapado ao enforcamento ordenei
que lhe fossem dados cinco tostões para ir comprar bolos, pão e queijo da Serra
à leitaria Cristal. Quando lá chegou e contou a sua desdita, o dono encheu-o de
mercadoria à borla que nós comemos e bebemos até altas horas da madrugada.
Foi sempre assim este
segundo ano na cidade da Guarda.
Apesar de ninguém
prestar muita atenção às actividades da Mocidade Portuguesa ou da Milícia, como
eu era o comandante e como andava sempre em todas as farras e era igual ou pior
que eles, todos iam às actividades e ninguém pensava em outros assuntos que não
o de nos divertirmos e acamaradarmos com os diferentes anos.
Na Páscoa havia as
confissões que eram, como tudo o que forjávamos, um motivo de brincadeira. Dos
pecados contados aos padres fazíamos gáudio em nos divertirmos tentando ouvir
as confissões uns dos outros. Um dos mais engraçados era o José António.
O José António não
podia com o padre Inácio. O padre Inácio era um homem de excelsas virtudes,
fabuloso de cultura, inteligência e sensibilidade. Apesar da gordura e cara de
bonacheirão sabia perfeitamente que o José António o detestava.
Havia muitos
estudantes para as confissões, a confusão era grande por causa da brincadeira.
Quando vimos que o Padre Inácio estava livre, alguém empurrou o Zé António.
- És tu.
Ele não reparou quem
era o padre, mas logo que o encarou teve um gesto para se retirar. O padre
Inácio disse-lhe:
- Vai para outro
colega, vai. Eu sei que não gostas de mim.
O Guimarães está no
lado contrário, preparado para ouvir a confissão, com um monte de capas em
cima.
- Não...não...eu
confesso-me. - Diz o Zé António, muito vermelho e de bigodito a despontar.
O padre tenta
convencê-lo: “assim ficas mais à vontade”, mas o Zé não quer dar parte de fraco
e lá se desenrola a confissão interminável. Devia ter inventado milhentos
pecadilhos. O Guimarães já dizia mal da vida, por não haver facto assinalável,
quando começou a ouvir o padre:
- Eu não te dizia?
Tinhas ido a um colega meu e confessavas, à vontade, os teus pecados. Mas diz.
Tu sabes que eu estou aqui para te perdoar seja o que for. Conta que eu perdoo.
O José António
retorquia:
- Mas eu
envergonho-me.
- Ou confessas, ou eu
não te posso dar a absolvição.
O Guimarães estava de
ouvido atentíssimo, mais uns minutos de espera naquele puxa vaca, puxa boi até
que finalmente o Zé António se decidiu.
- Senhor Padre, eu
peço-lhe desculpa. Peço-lhe muita desculpa...
- Conta. Não tem
importância, seja o que for.
- Então lá vai, e
seja o que Deus quiser.
- Diz.
- Senhor padre
desculpe, mas todas as vezes que vou à casa de banho e me sai um daqueles
muito, muito grande, eu digo sempre: aboca padre Inácio.
O padre ficou lívido,
o Guimarães contorcia-se de riso e só foi descoberto porque o padre não
conseguindo resistir ao desabafo respondeu, um pouco alterado:
- Aboca tu, meu
grande malandro.
Já não houve mais
confissões naquele dia. É noticia que ainda hoje corre e que no dia seguinte ia
provocando uma catástrofe litúrgica.
Estávamos na Sé,
fardados, eu de espada, o Guimarães, o Pedro, o Adérito, os Craveiros, o Nave,
o Armindo e outros, segurando as bandeiras da milícia e da mocidade. Estávamos
à volta do altar, perfilados. Sempre que nos lembrávamos da história do dia
anterior dificilmente contínhamos o riso. A igreja estava cheia. Quando toca ao
Santíssimo, o Adérito, tem um ataque de riso, para o suster leva a bandeira um
pouco mais longe do que devia. Ouve-se um coro, quase um grito em surdina:
“O Cristo!” E o
enorme Cristo, em cima do altar, cravado em cruz pesadíssima, aí vem tocado
pela bandeira do infiel. Numa fracção de milésimos de segundo eu tirei a espada
e encostei-a ao peito do Redentor. Rapidamente acorreu alguém, que fazia parte
da igreja, e segurou a peanha enquanto eu, com todo o cuidado, O empurrava para
o Seu lugar.
O Cónego da Sé fez-me
um sinal de agradecimento.
Passado o susto,
aqueles malandros, escondiam a cara atrás das bandeiras e riam perdidos de
gozo.
Quando terminei o
quinto ano (nono de hoje), a minha ânsia de procura do porquê das desigualdades
humanas, levava-me a querer encontrar Deus, estivesse Ele onde estivesse. Eu
tinha de Lhe fazer umas perguntas.
À hora de almoço,
tinha o meu pai acabado a sopa, que não dispensava, e minha mãe tinha acabado
de falar, aproveitei o silêncio.
- No próximo ano vou
para o seminário.
Meu pai olhou-me
muito sério. De olho azul a tremelicar com o despontar de uma lágrima disse-me:
- Tu não sabes o que
queres. - Levantou-se, já não comeu mais nada, foi-se embora e andou cinco dias
sem me dirigir palavra apesar de eu lhe dar um beijo de manhã e à noite.
Minha mãe, que
normalmente diria “Ó menino (o meu pai), então não comes mais nada? Calou-se.
Passados uns minutos disse-me sem rodeios:
- Ora, agora! Tu que
não podes ver uma burra de saias, queres ir para padre? Rico padre tu me saías!
Não viste como magoaste o teu pai? Não temos outro filho.
Era a espada ao
peito, davam-me toda a liberdade, podia gastar o que quisesse só para
usufruírem o prazer de ter uns netos. E na verdade, quando casei, vi a loucura
que eles lhes causavam.
Queria também ser
padre para mais facilmente influenciar as pessoas através do púlpito. Quis ser
padre e locutor pela mesma razão.
Com o meu amigo
Alfredo Donas de Sá Pessoa comprei, a meias, um gravador caríssimo, como os da
rádio profissional. Aí gravámos e treinámos a maneira de dizer. Quando nos
convencemos que já estávamos aptos para voos mais largos fizemos uma proposta à
rádio “Altitude” para aí gravarmos a “Ceia dos Cardeais”. A proposta foi aceite
e, depois de a termos gravado com todos os pormenores, entregámos a fita. No
dia aprazado ficámos à espera do resultado.
Foi uma catástrofe. A
minha voz estava irreconhecível. Um execrável
atrevimento. Senti-me tremendamente envergonhado. Não tinha voz para ser
locutor, e por mais que os meus amigos me tentassem animar, ninguém me
convenceu do contrário. Terminou ali a minha auspiciosa esperança de salvar o
mundo através daquele meio. Talvez isso me empurrasse para a caneta, para o
papel e para o computador.
Voltando ao
seminário. Quando metia uma ideia na cabeça era muito difícil desistir dela.
Calei-me. Passados dois dias disse que ia à Guarda. Até ao Sabugal os
transportes colectivos pertenciam-nos e do Sabugal para a Guarda eram da Viúva
Monteiro onde também não pagava nada, eles não ligaram. Fazia isso quando me
apetecia e às vezes, nem os avisava.
Fui falar com o padre
Inácio e dar-lhe conta da minha resolução. Era um homem erudito e pragmático,
ninguém melhor do que ele para avaliar a minha decisão.
O padre Inácio
olhou-me com os olhitos a tremelicar por trás dos óculos, lábios grossíssimos,
também a tremelicar como banha de curtumes só própria para fazer colas.
Olhou-me longamente.
- É uma bela
resolução. A igreja ficaria bem servida, mas tenho de ser franco, e tu sabes
como sou teu amigo e como gostaria de te ver deste lado. Tu não podes ser
padre. Os problemas que irias causar à igreja reflectir-se-iam nos teus comportamentos. Desiste. Não vás
para o seminário. Além do mais tu não resistes a uma rapariga, bonita... ou
feia. Eu conheço-te. - E conhecia, ele era o meu confessor - Quanto a Deus, Ele
encontra-se em todo o lado, não necessitas de pertencer, no todo, a esta Igreja
ou a qualquer outra.
Ficou por ali a minha
tentativa de ir procurar Deus no seio da igreja para Lhe pedir contas, mas não
ficou por ali o meu desgosto. Tinha demasiados amigos pobres. Eles tinham os
mesmos direitos a viver como eu já que não tinham culpa por entrar neste mundo
pela porta da miséria. Desde criança que essa revolta era evidente. Eu conto
isso no livro “Saúde e Dinheiro, o caminho para a felicidade”, onde digo que
aos 5 anos intimei minha mãe, se quisesse que eu comesse, que o meu amigo
“Bucha” tinha de comer comigo. Ele era paupérrimo.
A pobreza, o ver a
pobreza, sem conseguir encontrar um meio para a eliminar, tem-me atormentado
toda a vida.
Quando penso que o
mundo tem seis biliões de almas e só 2 biliões vivem razoavelmente fico
desesperado.
Peço-te que me ajudes
a resolver este problema. A miséria não é uma condição inevitável para 4
biliões de pessoas. Hoje aprende-se e ensina-se à distância. Os capitais
parados e os capitais empregues em material bélico devem ser desviados para
proporcionar o bem estar dos povos.
É inacreditável como
os países ricos e desenvolvidos fornecem armas aos países que não têm dinheiro
para a educação e para a alimentação. Denuncia estas situações, torna-te grande
em saber e conhecimentos. Estuda e chama a atenção sobre ti, é a única maneira
de tu poderes chamar a atenção sobre os outros. Acredita que o podes fazer e ao
mesmo tempo viver a tua vida. Eu só não tenho conseguido fazer mais porque em
determinada altura perdi tudo quanto tinha amealhado para começar a desenvolver
um plano através dos meios de comunicação. Mas ainda não estou derrotado. A
minha derrota seria a derrota do que pretendo defender, mas eu sou só um,
necessito de ti, temos de estar todos motivados para eliminar a miséria.
Um mundo com 6
biliões de pessoas tem de ser um mundo rico e próspero.
Os países produtores de material de guerra podem
empregar as mesmas pessoas fazendo material escolar. Em vez de destruir podem
construir. O lucro seria o mesmo e o risco menor. Ensinar os povos em vez de os
combater é outra via para absorver desempregados e fazer as pessoas felizes.
A felicidade é uma
bola de neve. Quanto mais felizes somos, mais felizes queremos que os outros
sejam.
Depois de muitas
interrogações, estudo e hesitações, cada vez estou mais convencido do seguinte:
Deus não criou o
homem, Deus criou o mundo. O homem, depois do Big Bang saiu da evolução natural
da matéria e por isso ele continua ainda tão imperfeito.
A imagem de Deus
feito homem é irreal, é um álibi para lançar culpas sobre o Outro.
Deus, na Sua
explosão, deu força ao criado e deixou que tudo acontecesse segundo a lentidão
dos séculos. A energia dos mais aptos leva-os a desembaraçar-se do manto de
crisálida e a evoluir no sentido da perfeição.
Aquele ou aqueles que
saíram do caos, ao atingirem a sua perfeição máxima entram no corpo de Deus que
é o conjunto de todos os nossos corpos imaginados como fumo, como um sopro, como
fogo. Somos feitos de pensamento e para o pensamento voltamos até voltarmos a
ser matéria neste vai e vem que atinge limites e de repente se desfaz para se
voltar a refazer.
Cada um de nós tem em
si uma pequeníssima partícula de Deus e quando desejamos ou rejeitamos,
fortemente, alcançar ou repudiar seja o que for, isso, mais cedo ou mais tarde
acontece.
O padre Inácio volta
ainda a ser, mais uma vez, interveniente nesta tentativa de renúncia às
injustas benesses da vida; porque não são para todos, porque não há
democraticidade nesta bênção divina se nós fazemos parte do Seu corpo e não O
entendemos?
Passados dois anos
entreguei ao padre Inácio o meu testamento. Não queria nada deste mundo. Até
preferia ter nascido sem pais apesar de eles me adorarem. Ingrato, dirás. Tens
razão. É a revolta por ver o que não quero ver e não consigo resolver. Preferia
não ter nascido.
Não penses como eu.
No ano seguinte fui
para o Fundão, para o colégio do Dr. Meneses para fazer o sexto e o sétimo anos
de que já falei. Para aí, também os transportes colectivos nos pertenciam.
Fiquei em casa de meu tio Soares, um dos donos da moagem, junto da estação. Ele
era um verdadeiro compincha; só tinha filhas. Para ele, eu era o grande
companheiro, lá em casa só estava a filha mais nova, a Maria da Conceição
Soares, que era como irmã. Ia estudando, o ambiente era diferente mas eu sentia
necessidade de mais movimento. No Carnaval, quisemos fazer um baile, como era
costume, segundo rezavam as crónicas, mas nesse ano o Dr. Meneses não quis
arcar com os riscos do baile. Disse que sempre perdia dinheiro. Não havia
baile. Combinado com os meus colegas eu propus - lhe fazer o baile e assumia os
riscos. Ele conhecia a família e sabia que dinheiro, naquela época, não
faltava. Anuiu.
O baile foi um
sucesso e imediatamente fomos alugar um autocarro ao “Pião e Irmão” para
fazermos uma excursão. Ainda sobrava muito dinheiro.
O Meneses mandou-me
chamar.
- Que lá, que lá.
Quero aqui todas as contas do baile e não há excursão nenhuma que eu não
autorizo.
Aí, vieram-me as
forças.
- O sr. Doutor não
tem que autorizar ou não autorizar. Deixámos tudo limpo, pagámos a toda a gente
e agora vou pagar ao “Pião” porque já empenhei a minha palavra.
- Que lá, que lá (era
assim que ele falava) - era muitíssimo bom professor de matemática mas levado
da breca pelo dinheiro. - Se não me entregares contas e dinheiro até às sete da
tarde és expulso do colégio e todos os que te acompanharem na excursão.
Resultado: fui
expulso. A excursão não se fez. Fui o único que apareceu e não estava para ir,
feito parvo, sozinho, por aí fora. O “Pião” ficou com o dinheiro porque não
tinha nada que o devolver e eu resolvi dar a todos os indivíduos necessitados o
restante que sobrou embora a isso não fosse obrigado pois o capital inicial foi
todo meu. Se eu tinha arcado com todas as despesas e todos os riscos, também
podia fazer do dinheiro o que quisesse. Alguns do meus colegas não ficaram
muito satisfeitos comigo, principalmente
o Armindo e o Luís Bouceiro que eram umas jóias de rapazes, mas argumentavam que eu era um ditador. Eu
continuei amigo deles e pensei cá para comigo “ditador somos todos quando
pensamos que fazemos o melhor e não anuímos às vontades dos outros.” Encolhi os
ombros e levei a minha avante.
Assim me encontro, de
novo em Castelo Branco, onde o amigo de que já te falei, me deu aulas de Latim
e Grego e eu fiz o sétimo ano tendo deixado só filosofia para Outubro.
Para veres como as
disciplinas são tremendamente simples e só alguns, ainda bastantes, professores
e fazedores de livros didácticos as complicam, conto-te este pequeno episódio.
Nesse tempo havia a
disciplina de Organização política, comum a todos os cursos. O Vaz Antunes
tinha seguido ciências e eu letras. Nesse ano voltámo-nos ali a encontrar e
fomos para a mesma casa; das senhoras Trigueiros. Eu não tinha aberto a
Organização Politica. Ele perguntou-me.
- Ó compadre, já
estudou Organização?
- Ando às voltas com
o latim e o grego, tenho lá tempo!
- Eu vou começar.
Vamos estudar os dois?
- Comece o compadre
que eu depois pergunto-lhe.
Dois dias antes do
exame eu continuava sem abrir livro. O Joaquim insistiu para lhe fazer
perguntas. O desgraçado sabia aquilo de fio a pavio. Voltei a fazer perguntas e
tantas vezes fiz e ele sempre a responder como estava no livro que eu fiquei
com uma ideia da matéria. Fomos a exame.
O Joaquim voltou para
casa. Todos os dias perguntava se já tinham saído as notas, lá as ia dizendo
até que veio a de Organização política. Ele teve 13 e eu 12. Quando ele me
telefonou, eu comecei uma grande conversa.
- Ó compadre, que
chatice! Não se fala noutra coisa! - Ele, do outro lado do fio, insistia “a
nota, a nota?”- e eu continuava no rebéu - béu pardais ao ninho, estive nisto,
uns bons dez minutos. Ele sempre desesperado e eu gozando o efeito.
- Mas a nota? Por
favor, compadre, a nota?
- Teve quinze vírgula
quatro. Não dispensou por uma décima. Toda a gente fala no assunto.
- Os professores são
uns bandidos.
- A quem o diz.
- E o compadre?
- Também vou à oral.
À justa, tive nove.
- O compadre nem
abriu o livro.
O Joaquim contou a
toda a gente a sua desgraça e todos maldisseram, com ele, os professores que
não o tinham dispensado da oral por uma décima. Quando viu a verdadeira nota,
escondia a cara de toda a gente porque aquele 13 além de ser uma afronta aquilo
que ele sabia, tinha sido motivo de chacota por todos os que conheciam a
história. Não se zangou comigo porque ele fazia-as muito piores.
Os amigos nunca se
aborrecem, nem das brincadeiras, nem das palavras que uns e outros têm ou dizem.
O ser humano é
demasiado inteligente para se aborrecer com ninharias. Só se aborrecem os
pequenos, aqueles cuja vida é tão infeliz que para fugirem dos seus próprios
problemas discutem os dos outros ou com os outros.
O ele disse isto ou
ela disse aquilo nunca deve ser motivo para tristezas, aborrecimentos, intrigas
ou zangas. O melhor é nunca ligar ao diz-se. Só os assuntos tratados frente a
frente devem ser levados a sério, se for caso para isso.
Minha mãe disse-me
uma vez: “as pessoas tem de falar de alguma coisa”. Ela estava à janela a
conversar com uma amiga sobre outras amigas, eu estava na varanda, perto.
Comecei a ficar tão enjoado com as observações sem qualquer interesse, de uma e
de outra, que pedi para mudarem de conversa. Ela respondeu-me o que já referi.
Fiquei cheio de dores de cabeça, de estômago, meio zonzo fui-me deitar e minha
mãe viu, aflita, que eu estava doente. No outro dia fiquei fino. É só para
dizer que nunca ouvi dizer bem ou mal de mim, nunca quis. Eu sei o que sou e
gostava de ser muitíssimo melhor.
Um dos males do
mundo, entre muitos, é a má interpretação que damos às palavras que os outros
nos dirigem. A intriga ou a crítica feita pelas costas é ainda mais grave.
Lembro-me que um dia o sr. João Mourão falava de outra pessoa que estava numa
mesa afastada no café do sr. Domingos Seguro em Penamacor. Eu que devia ter os
meus dezasseis ou dezassete anos, avisei o sr. João Mourão que se não parasse
de falar na pessoa em causa, dizia alto e bom som o que ele estava a dizer, ele
não ligou, devia ter 65 ou 66 anos. Eu levantei-me e disse alto e bom som: O
sr. João Mourão está a falar disto e daquilo. Ele ficou muito zangado, o outro
não se apercebeu porque eu embora falasse alto fiz voz fanhosa. O sr João
Mourão, passados dois ou três meses, continuou na mesma. É o mal das terras
pequenas. Tem de se passar o tempo de alguma maneira. Depois das discussões
futebolísticas de Segunda Feira, o resto da semana, nas horas de ócio, só
dominó ou conversa fiada.
Os portugueses têm de
ultrapassar o tempo da conversa fiada.
Depois de ter feito o
sexto e o sétimo ano num ano. Fiz seis cadeiras: Latim, Grego, Português,
Francês, Organização Politica e História, uma a mais do que o necessário para
Filologia Românica e a menos Filosofia que deixei para Outubro. Entrei, outra
vez em crise, queria saber insistentemente o porquê da pobreza que me rodeava e
comecei a dizer a meus pais que me queria empregar.
- Porquê? - Dizia
minha mãe. - Vais para a Faculdade, não precisas de te empregar. Temos o
suficiente para não te preocupares.
Sem que meus pais ou
alguém se apercebesse, porque eu sempre pareci alegre e desprendido de tudo, eu
tinha vergonha por me sentir um inútil e não era capaz de resolver as minhas
dúvidas.
A única maneira de
não entrar na Faculdade era não fazer Filosofia e foi o que aconteceu. Nem fui
a exame. A seguir tanto insisti, com minha mãe, que acabei por ir trabalhar
para um colégio em Sintra. Adorei. Depois dos primeiros tempos, a Directora
achou que eu era competente e praticamente, até ao fim do ano, coordenei aulas,
recreio e transporte, pelo meio a Directora pediu-me para dar aulas a um miúdo
inglês, Nello Haward Davies, inteligentíssimo, mas que já tinha sido expulso de
vários colégios. Entendi-me perfeitamente com ele e acabou por fazer a terceira
e a quarta classes num ano, ele que não falava uma palavra de português e era
impossível de dominar. Entrei na dele: brincadeira, boxe, passeio e acabava
sempre por lhe ministrar a matéria que eu pensava necessária. Foi uma boa
experiência para mim e completada mais tarde por um Professor Universitário da
Sorbonne.
Conto já o episódio:
mais tarde, estando em Paris, no Consulado de Portugal, fui convidado a fazer
leituras de português a esse Professor e corrigir-lhe a dicção. Ele, por sua vez,
dizia-me como queria ser corrigido. Eu fixei o método. Com os erros que eu
sabia que os professores tinham cometido comigo e com os meus colegas e com
aquilo que aprendi com estas experiências que acabo de relatar, talvez isto
explique o porquê de eu saber conduzir os alunos nos programas de ensino e ter
uma grande devoção por eles: eu quis entender-me. Analisei também jovens e
professores no colégio “O Bloco” de Sintra. Só tive de juntar e aplicar
conhecimentos e sensibilidade.
Anos mais tarde
quando o Ministério da Educação foi inspeccionar alunos meus e que eu nunca
reprovava, o inspector chegou à conclusão que eles estavam aptos a passar. É
uma questão de amor, chamar-lhe-ei psicologia básica, e um pouco de saber. É
tão simples como isso.
Estamos ainda no
“Bloco”, o colégio de Sintra.
No final do ano a
Directora, muito feliz, anunciou-me que tinha sido o primeiro ano em que nunca
teve problemas com os alunos; nem vidros partidos, nem cabeças partidas, nem
faltas de educação e muito bons resultados. Felicitava-me e disse-me que no ano
seguinte me pagaria o dobro. Eu respondi-lhe que tinha gostado imenso de ali
trabalhar mas que ia sair do país. A Directora tentou demover-me, não
conseguiu.
Continuava em crise.
Já tinha entendido o que era trabalho e tinha gostado. Não gostava era de ver
pobres no meu país.
Quando disse a meus
pais que tinha resolvido sair de Portugal, meu pai agarrou-se a mim a chorar.
Dava-me tudo o que eu quisesse. Infelizmente, não me podia dar o que eu queria
e a única maneira de eu mostrar a minha revolta era não querer mais do que aos
outros sempre tinha faltado.
Não te aconselho a
que penses como eu. Há outras maneiras de resolver os problemas. Mas era assim
que eu pensava e é assim que o escrevo. Foi por isso que eu entreguei o meu
testamento ao padre Inácio, sem meus pais saberem, e caso eu tivesse algum
acidente pedia-lhe para ele lhes fazer chegar às mãos a minha vontade.
Entregava tudo aos pobres e parti.
A desilusão foi
grande. Havia pobres em todos os países e enquanto em Portugal podia fazer o
que me apetecia, no resto da Europa havia leis a cumprir. Começou-me a faltar o
ar: uma saudade imensa que eu tentava esquecer trabalhando até altas horas, sem
ser obrigado a isso, no Consulado de Portugal, Avenue Kléber, em Paris onde
substituí, durante meses, a Isabel, a primeira mulher do etnógrafo Michel
Giaccometti.
Aproveito este salto
para contar um ou dois episódios que revelam a diferença de mentalidades.
Apesar dos clochards
(mendigos que dormiam ao frio, em caixotes etc.), apaixonei-me por Paris. Tinha
o deslumbramento nos museus, nas bibliotecas, nos teatros, nos cinemas, nas
mulheres e quase esqueci os pobres. Só me lembrava deles quando os via embora
ali estivessem mais dispersos e só a noite os descobrisse.
Como gosto imenso de
línguas pensei em aprender russo. Em Portugal, nesse tempo, era impossível. Ia
ver todos os filmes russos num pequeno cinema que havia perto do Panteão
Nacional. Um dia, em conversa com o Vice Cônsul, João Carvalho da Silva, que
era muito meu amigo e era muito engraçado, disse-lhe o que fazia e o que
pensava fazer quanto a aprender russo. Ele pôs-se muito sério:
- Ó Cunha Simões, não
me devia ter contado isso. Agora só me resta aconselhá-lo a esquecer as lições
de russo para não arranjar para aí algum problema.
Na verdade, todos os
funcionários públicos eram obrigados a assinar um documento em que não eram
comunistas. Todos o faziam, fossem ou não fossem. São regras e quem não quer
correr riscos tem de se submeter. O Estado é uma grande empresa com normas e
tem de as seguir se não quiser ser subvertido. Eu não era comunista e nunca o
fui mas digo-te que gostei de estar nos países de Leste, quando lá fui mais
tarde sem autorização e correndo os riscos de cá e de lá. Estive seis horas na
fronteira. Fizeram-me imensas perguntas, deviam ter pensado que era doido ou
fugitivo politico, lá me deixaram entrar. Havia ordem, havia organização, havia
limpeza, não se via miséria. Mas senti que havia falta de liberdade porque as
pessoas tinham medo de falar, ficavam aflitas com a minha maneira de ser. Em
Portugal nunca senti isso, embora me tivessem cortado vários artigos de
jornais. Cortavam, mas não me levavam a tribunal como o fizeram depois do 25 de
Abril por eu ter escrito o artigo: “Atrás dos Militares”, no semanário
“Templário”. E eram oito anos de cadeia.
Desde 1961 tinha
começado a escrever livros para dizer o que me apetecesse. Os livros só eram
apreendidos se os editores, para terem lucro certo, começassem a dizer que o
livro era contra o regime. Faziam tanto barulho que a Pide ia no engodo e
apreendia umas centenas de exemplares, a seguir eram vendidos uns largos
milhares. Verifiquei perfeitamente isso quando escrevi em 1962 os livros “Tu
cá, Tu lá” e mais tarde “A Revolta e o Homem”. O “Tu cá, Tu lá” era para ser
editado com a chancela da Editora “Aster”. Depois de ler o livro, o sr.
Fernando de Sousa disse-me que ia ter problemas se o editasse como estava.
Tinha de fazer alguns, muitos cortes. Recusei. Respondi-lhe, meio a sério, meio
a brincar que não era invertebrado e que para cortes bastavam os da Censura nos
jornais. Publiquei o livro como o tinha escrito.
No “Tu cá, Tu lá” logo no inicio, a pág. 16,
digo: “Depois foi o arco da velha, sempre a mesma coisa, patrão com dinheiro,
trabalhador ganhando vinte mil réis mal coados, bem suados e desprotegidos e
toca de ir malhar com os ossos à prisia”, e a págs 59. Em referência ao Governo
digo: “não me queiras convencer que se mete ali um pulhazita qualquer só para
encher o papo e prejudicar o Zé povinho?”. Ao que o outro responde “ Pois
escuta, se não metem, então imitam muito bem”.
O livro seguia esta
linha. Quem o lesse pensaria que eu era comunista. Só na comunhão do amor. O
livro foi a maneira que eu tive para expressar a minha revolta pelas diferenças
sociais, pela diferença entre os muito pobres e os muito ricos. Ninguém me
incomodou apesar de um chefe de polícia uma vez me ter dito:
- O senhor é muito
inteligente, mas a mim não me engana. - O tolo estava enganado.
Depois de vir do
estrangeiro continuei a não querer estudar. Entrei para o SNI que era o único
departamento de Turismo com um Secretário Geral: o Dr. César Moreira Baptista.
Ao principio fiquei na contabilidade o que era o oposto aquilo que gostava de
fazer, mas o que é interessante é que verifiquei que gosto fazer de tudo. Nada
me aborrece. Quando trabalho num lugar faço-o com o máximo dos prazeres e dou o
máximo de rendimento. Ainda hoje, com 64 anos, me acontece o mesmo. O trabalho
é uma festa. Se me apetece mudar, mudo. Há tanto para fazer! Eu ainda não
entendi por que há desemprego, se há escolas sem professores, hospitais sem
médicos e enfermeiros, campos sem lavradores, casas a cair de velhas, estradas
cheias de buracos, etc, etc, etc, etc.
O Director da
contabilidade e serviços era o Dr. Ferro Rodrigues que os funcionários temiam.
Era um homem inteligente e muito trabalhador. Nunca o receei e nunca me
aborreceu, apesar de em certa altura eu publicar um jornal semi clandestino com
o nome de “Camisinha” onde criticava os serviços. Na minha secção a camaradagem
era muito boa e a Cezina Gomes ensinou-me rapidamente todos os segredos do
trabalho. Eu tinha-o sempre em ordem e sobrava-me muito tempo; tanto que,
enquanto outros dos meus colegas, no fecho de contas do final do ano, tinham
que fazer horas extraordinárias para as apresentar até à data marcada eu me
recusei a ficar a olhar para eles só para fingir que também estava a trabalhar
e ganhar mais umas centenas de escudos. Ganhei-os na mesma e gastei-os com
todos eles pois não me tinha sacrificado e não os merecia. Comemo-los e
bebemo-los.
A propósito de comer
e beber, relato um facto curioso para mostrar que um chefe deve ser sempre um
exemplo. Se não é, arrisca-se a que os serviços lhe sigam os hábitos.
O Dr. Moreira
Baptista, no inicio desse ano, resolveu incitar os funcionários a poupar. Era
necessário poupar nos lápis, nas borrachas, enfim, em tudo quanto fosse
possível, para o Estado arranjar fundos para outras prioridades. Tudo bem, só
que, como eu estava na contabilidade comecei a ver que o Dr. Moreira Baptista
almoçava sozinho no Gambrinus e em outros restaurantes de muitas estrelas e
gastava mais em cinco almoços do que todos os gastos que nós fazíamos em
material de escritório durante um mês. Isso entristeceu-me. Eu que o considerava
um homem muito inteligente, vi que ele podia ser um pouco mais.
Fui requisitado para
o Turismo na secção do sr. Pereira Forjaz,
o Director era o Eng. Alvaro Roquette. O trabalho aí era
incomparavelmente muito mais, mas eu adorava. Fazia o serviço de secretaria e
acompanhava os turistas VIP nas viagens a Portugal.
Eu tinha um Studbaker
fabuloso que era da família mas que o Eng. Roquette pensava que era meu e
dizia-me frequentemente.
- Tu ganhas mais que
eu. - Ganhava as ajudas de custo que gastei numa viagem pela Europa com todas
as mordomias para conhecer por dentro onde as pessoas podiam esbanjar o
dinheiro em vez de o canalizar para beneficio de todos.
O Eng. Roquette era
também um homem inteligente e não tinha vergonha de me perguntar, a mim, um
miúdo, tudo sobre o país, já que eu o
percorria com frequência, e de como era possível resolver este ou aquele
problema? Eu dava-lhe a minha opinião e ele fazia como entendia. Queria
acertar. Amava o país.
Mas nem tudo são
rosas, no meu segundo ano de trabalho, vai haver um concurso para subida de
escalão. Eu gostava imenso do serviço e tinha pensado fazer carreira no mesmo.
Perante o concurso pedi ao sr. Pereira Forjaz para me dispensar de acompanhar
fosse quem fosse pois tinha de estudar. Ele disse-me que tudo se arranjaria e
mandou-me acompanhar e assessorar, durante quase um mês, um dos administradores
dos filmes Rank, aqueles onde aparece um leão. Sei que até ao concurso não tive
descanso. E ele sempre a dizer-me que não havia problema. Acabei por ficar mal
classificado como era de esperar. Fiquei furioso. Não tinha sido compensado
como me tinha sido prometido.
Zanguei-me fortemente
com o sr. Pereira Forjaz, que até era boa pessoa mas que lhe faltava alguma
elasticidade para compreender até que ponto me tinha prejudicado. Fiz de
imediato, com o coração a sangrar, pois adorava aquele trabalho, um pedido de
exoneração ao Dr. Moreira Baptista que terminava da seguinte maneira: “Lamento
deixar V. Ex.cia no meio dos acéfalos supracitados”. Os acéfalos tinham sido
aqueles que eu mencionava na carta e me tinham garantido uma coisa e depois
fizeram outra.
O Dr. Moreira
Baptista mandou-me chamar. O Secretário dele era o maestro Ivo Cruz, filho, que
simpática e delicadamente me aconselhou a fazer o que o chefe dissesse.
Fiquei de pé, em
frente do poderoso Secretário Geral. Olhou-me longamente.
- Tu ainda és muito
novo, o Engº. Roquette faz-te os maiores elogios e pede-me que eu não seja
severo perante toda esta carta que é um ror de insultos a uma série de pessoas.
Tomo em consideração o seu pedido, rasga-se a carta, esquece-se o assunto e
vamos ver o que podemos fazer.
Mas eu estava muito
ofendido. Era uma paixão atraiçoada. Nunca mais conseguiria voltar a amar da
mesma maneira. Não aceitei a proposta.
- Eu pedi a exoneração,
senhor doutor. Mantenho o pedido.
Ele tentou
convencer-me. Eu recusei sempre. Perante a minha atitude disse-me:
- Sou forçado a
demitir-te se não rasgar a carta. Nunca mais poderás entrar para a função
pública.
Olhei-o bem nos
olhos.
- V. Ex.cia fará o
que entender. Eu pedi para ser exonerado e é o que vou ser.
- Como? -
Perguntou-me ele, divertido, perante a minha ousadia, enquanto puxava de um
cigarro.
- Compro meia dúzia
de foguetes, passo em frente da Assembleia Nacional, acendo um com o cigarro, e deixo-os rebentar no interior. Tenho a
certeza de que alguém me há-de perguntar por que fiz aquilo.
Fui exonerado e perdi
uma das paixões da minha vida.
Alguns anos mais
tarde tive oportunidade de verificar que o meu país e o seu povo são as minhas
paixões e o turismo uma das vias para impulsionar a prosperidade de ambos.
Casado e com filhos
estava em férias que para mim eram sempre um sacrifício. Íamos para o Algarve,
minha mulher resolveu passar um dia em Lisboa, em casa da mãe. Já ia em cinco e
vi que a companhia da mãe, das irmãs e as idas à Costa da Caparica e ao Jardim
Zoológico com os filhos, a tinham feito esquecer a ideia inicial. Comecei a
ficar inquieto:
- Volto a Tomar.
Quando quiseres ir para o Algarve telefona.
Sabemos como são as
mulheres, ninguém as vence.
- És sempre assim,
não podes descansar uns tempos, ainda hás-de gastar o trabalho e mais isto e
mais aquilo.
Eu estava a ler o
“Diário de Notícias”, comecei a folhear o jornal. De repente vejo um anúncio:
“Guia Turístico, precisa-se - Rodarte”, era mais ou menos assim. Depois de
minha mulher acabar de falar levantei-me, com toda a calma, e fui até à
Rodarte.
- Está o gerente?
- Para que é?
- Por causa de um
anúncio.
Encaminharem-me para
o gerente e patrão da empresa, o sr. Quirino. Expliquei-lhe ao que ia e ele:
- Sabe alguma coisa
de turismo?
- Tudo.
- Conhece Portugal
todo; os seus monumentos e os sítios mais importantes?
- Tudo.
- Fala alguma língua
estrangeira?
- Todas.
- Inglês, francês,
espanhol, alemão, italiano?
- Todas.
O Quirino, intrigado,
continuou.
- E quanto quer
ganhar?
- Aquilo que o sr. me
quiser dar.
- E se eu não lhe der
nada?
- Não dá.
O Quirino, cada vez
mais interessado, continuou.
- E quando quer
começar a trabalhar?
- Já.
E foi assim que
estive, a partir daquele momento, dois meses na empresa de Turismo Rodarte.
Eu disse ao sr.
Quirino que só podia estar o máximo um mês, mas ele ralou-me tanto, e o
primeiro mês tinha sido tão fabuloso que eu não me consegui escapar.
Naquela tempo os
guias ganhavam cinco mil e duzentos escudos por mês. Umas vezes estávamos ao
balcão e outras em viagem. Eu consegui vender-lhe todas as viagens do mês em
menos de dez dias. Vendi as minhas e as dos outros colegas. Os clientes diziam
maravilhas e eu no fim do mês recebi vinte e sete mil escudos sem que os outros
colegas o soubessem, nem nunca o imaginarem capaz de fazer uma coisa dessas. O
patrão tinha fama de ser muito agarrado. O sr Quirino estava-me grato e por
mais que insistisse para eu ficar na empresa só lá não fiquei porque a minha
vida era em Tomar, cidade monumental, que eu amo muito e onde recebia a energia
para dissecar e explicar a vida.
Por causa dos livros
e antes do 25 de Abril também tenho duas situações catitas.
A família tinha
também um Citroen, boca de sapo, como era conhecido, e que eu gostava muito
pela sua comodidade e segurança. Um dia, numa auto estrada da Alemanha, resolvi
dar o máximo de velocidade, eu devia ter fechado mal o capot, ele veio, com
toda a força, contra o vidro dianteiro, mas a concepção do automóvel devia ser
tão perfeita, que não o partiu. O capot ficou muito mal tratado; lá o atei o
melhor que soube. Quando voltei a França fui para o reparar. Venderam-me um
novo: ficava mais barato, mas vinha sem pintura. Cá em Portugal, naquele tempo,
reparava-se tudo. Tinha de se poupar em divisas. Andou assim uns tempos, viajei
por muitos lados. Em conversa com o gerente do Hotel Lisboa, de Vigo, em
Espanha, este disse-me que havia um bom pintor de automóveis ali a dois passos.
Lá fui e lá o deixei. Como estava muito perto de Portugal resolvi ir a Valença
comprar umas garrafas de vinho do Porto e matar saudades. Aluguei um táxi. O homem disse-me que não
tinha passaporte, eu respondi-lhe que não fazia mal.
Ao pedir, na
fronteira, para o taxista passar para o lado português, o funcionário disse-me
que não podia. Propus responsabilizar-me, apresentei passaporte com carimbos de
todo o lado, disponibilizava mesmo uma significativa verba de garantia. O homem
manteve-se inabalável. Eu perdi a cabeça. Comecei a disparatar.
- Isto não acontece
em mais parte nenhuma do mundo (não era verdade), é o país mais atrasado da
Europa, não passa da cepa torta. É um país de burocratas e de videirinhos!
- Está preso. -
Disse-me o homem, com toda a calma.
- Importo-me lá bem.
Prenda-me, mande-me fuzilar!
- Passe para esta
sala. - Continuou sem se exaltar.
O Espanhol,
visivelmente assustado, não abriu boca, o homem estava branco e encostou-se à
parede para não cair.
Depois de mais de uma
hora de espera apareceu o chefe, o funcionário contou-lhe o que se passou, eu
confirmei.
- Não me resta
alternativa. É um julgamento sumário. Terá de ficar para amanhã. O senhor
confirma tudo...quer acrescentar algo mais?
Nessa altura,
lembrei-me do meu primeiro livro; “O Nó” .
- Gostaria de dizer o
seguinte: Eu disse aquilo tudo porque amo, até à exaustão, o meu país, não
gostaria de ter nascido noutro e a demonstrá-lo, o meu primeiro livro,
dediquei-o a Portugal, dizendo que o havia de ver feliz e próspero.
O chefe olhou para
mim.
- O senhor ainda é
muito novo. Escreveu um livro e dedicou-o a Portugal?
- Dediquei.
- Como posso
confirmar?
- Não o tenho aqui,
envio-lho, telefona para meus pais, ou indico-lhe algumas pessoas que o devem
ter e eles lêem-lhe a dedicatória pelo telefone. Acreditou em mim, falou com o colega a quem
tive de pedir desculpa, não deixou entrar o táxi espanhol em Portugal mas
chamou um táxi português para eu fazer
compras e reabastecer as baterias da alma.
Não sei que força
estranha emana desta terra portuguesa que eu preferia estar aqui preso do que
livre em qualquer outro país do mundo.
O padrinho de meus
filhos, o americano Edward Budge Mead, o
maior accionista de dois importantes bancos da Florida ofereceu-me uma fortuna
incalculável para ir para os Estados Unidos, recusei. Ele ficou muito
desiludido comigo. Eu também ficaria se aceitasse e abandonasse o meu país.
Por que publico este
meu primeiro livro?
Este livro nasce de
uma viagem atribulada de avião. Ainda havia os aviões a hélice.
Vinha de Frankfurt
para Lisboa, o tempo estava péssimo: muita chuva, trovoada fortíssima. A certa
altura, uma das hélices deixou de funcionar, passado mais um tempo, a outra
aconteceu-lhe o mesmo. Sei que a partir dali e até Lisboa foi um inferno,
entrávamos, frequentemente, em poços de ar, vínhamos em queda livre durante
centenas e centenas de metros; uns choravam, outros gritavam, outros vomitavam,
outros rezavam. O comandante tentava sossegar os passageiros, ninguém o ouvia.
Eu metia a cabeça entre as mãos e só dizia:
“Não fizeste nada nesta
vida. Vais morrer como o mais ignorante dos animais. Nada. Não fizeste nada,
não produziste nada. Foste um inútil. Tu não és um homem, és um equívoco. Um
fracasso ignóbil da criação.”
Com estas e outras
lucubrações pessimistas e demolidoras da minha estima pessoal, mal aterrei em
Lisboa, a minha primeira ideia foi publicar uns poemazitos que já tinha escrito
e dedicá-los ao meu país como entidade viva a quem eu agradecia o acolhimento
neste planeta. Prometia-lhe que lutaria pela felicidade de todos os seus
filhos.
Em 1961 havia uma
enorme percentagem de analfabetos e muitos outros que, querendo ler, mal sabiam
entender o que liam. Desde o inicio pus na cabeça que tudo aquilo que
escrevesse não podia ser tendencioso, nem a linguagem ambígua. Conversei sobre
o assunto com o meu Prof. de Literatura III, o Prof. Prado Coelho, ele, pelo
contrário, achava que eu devia usar uma linguagem rica de maneira a obrigar as
pessoas a um esforço mental para atingirem a elegância da forma. Eu, que
conheço Portugal e os portugueses, sei que nós não gostamos de fazer grandes
esforços, mas também sei que ajudados, depois de atingirmos elevados níveis
continuamos a querer subir e a ultrapassar tudo e todos. Para os fazer gostar
da leitura eu tinha de a produzir simples, directa e coloquial. Seria a maneira
mais rápida para os atrair para a leitura. Foi sempre o que fiz.
Hoje, há muito mais
gente nas escolas, a televisão, a internet e os jornais ajudam a aumentar o
conhecimento dos portugueses. No século XXI teremos uma forma mais elegante de
entendimento. Os portugueses já não precisam que eu esteja preocupado, neste
campo.
A outra vez foi com o “Tu cá, tu lá”
Eu estava a parquear
o automóvel perto da Fonte Luminosa, fazia um calor sufocante. Reparo que, mais
acima, a uns cem metros, está a sair um automóvel e com uma boa sombra, faço
marcha atrás e estaciono feliz e descuidado. Do outro lado está um policia que,
com cara de poucos amigos, me pede a carta.
- Há algum problema?
Nem resposta. Recebeu
a carta.
- A carta está
apreendida. Tem que vir comigo à esquadra.
- Aconteceu alguma
coisa?
- O senhor ainda
goza?
- Eu?
- Estamos aqui só os
dois. Quando o senhor se preparava para fazer a marcha atrás, vi o que ia
acontecer, apitei para o advertir da infracção, vim ao seu lado a apitar todo o
tempo e o senhor, ou é muito surdo, o que eu verifico que não é, ou está a
gozar com a policia, o que não lho posso permitir.
Expliquei-lhe que não
ouvi qualquer apito, que seria incapaz de brincar com desconhecidos e muito
menos com um agente de autoridade. Não me quis ouvir, não me deixou pegar no
automóvel até à esquadra de Santa Marta. Aí fui eu, sempre pedindo-lhe desculpa
e ele nunca me ouvindo.
Aproveito para dizer,
e isso acontece com muita gente, e com os escritores ou aprendizes de
escritores é frequente entrar-se em devaneio. Sabemos onde estamos, mas
entramos num tal alheamento a ruídos e a pessoas que ficamos surdos e
indiferentes ao que nos rodeia.
Ao chegar à esquadra
e depois do guarda explicar ao graduado de serviço o que tinha acontecido, este
começou a ler os meus dados na carta, pediu-me o bilhete de identidade, ficou
perplexo e perguntou-me:
- O senhor é alguma
coisa a um Cunha Simões que escreveu o livro “Tu cá, Tu lá”?
- Sou o próprio.
O homem olhou-me com
simpatia. Fechou o postigo do balcão e durante mais de quarenta minutos falou
com o guarda. Quando voltou a abrir o postigo disse-me.
- Na verdade o senhor
cometeu uma infracção grave, o pior foi aqui o meu colega sentir-se ofendido
depois de o tentar avisar. Peça-lhe desculpa.
Pedi, mas quando
apanhei os documentos na mão, não resisti; virei-me para o guarda e disse-lhe.
- Vê por que se é
chefe?
Com o livro “Os
homens são difíceis” arranjei um inimigo, um padre de Cuba que era meu colega
na Faculdade de Letras. Ofereci-lho. A acção tem como personagem um padre que
luta com as tentações. Ele zangou-se comigo. Anos mais tarde soube que tinha
casado. Compreendi então que ele devia estar zangado consigo próprio. Servi de
bode expiatório para as suas frustrações de momento. Não liguei, esqueci de
imediato que tinha tido um amigo, esqueci até o nome e só o recordo hoje para
mostrar como reagem as pessoas. Não podemos dar importância aquilo que a não
tem. São as indisposições do momento que nos fazem ser injustos ou rudes sem,
nós próprios, entendermos porquê.
Nunca fui político,
mesmo quando o fui de facto. Aquilo que me interessou sempre foi o bem dos
portugueses e o bem dos povos, agora que os socialistas, sociais democratas,
comunistas, centristas, bloco de esquerda ou outros os governem, desde que os
governem bem, todos têm o meu apoio, embora possa ter mais simpatia por um do
que pelos outros. Os homens são todos iguais e todos podem defender e proteger
os seus semelhantes seja qual for a camisola que enverguem. Já viste o
aborrecimento que era se andássemos todos de vermelho, de azul, de verde, de
amarelo, de preto? Cada um veste a camisola que lhe apetece, mas quem governa
despe a camisola, arregaça as mangas e governa todos, com equidade, amor e sabedoria. Se não fizer assim é um patife.
Voltemos a França.
O vice Cônsul tinha
ficado toda a Segunda Grande Guerra em Paris, tinha ajudado centenas de judeus
a fugir dando-lhes salvo condutos. Era um homem honesto e com os pés assentes
na terra.
Não fui aprender
russo, mas continuei a ver os filmes, e nunca mais falámos sobre o assunto que
ele não queria saber e eu não lhe devia dizer.
Como já te esclareci:
eu não sou comunista, mas penso que os comunistas não tinham que destruir o
regime, deviam-no adaptar às realidades das democracias ocidentais. Tanto uns
como outros têm muito que aprender e aproveitar o que é de bom, num lado e no
outro.
Hoje, as
independências dos países são mais virtuais que reais, todos os países estão
dependentes uns dos outros. A independência é mais uma questão psicológica, de
orgulho nacionalista e de ambições pessoais. Os pequenos governantes estão
sempre submetidos à vontade das grandes potências e dos seus dirigentes. Esta
dependência é mais visível em tempo de crise, por isso, os jovens, são a
charneira para alcançar todas as modificações..
Nas traseiras do
Consulado havia um grande pátio quadrado, às vezes ia até a uma das janelas, aí
entretinha-me a ver a miudagem brincar. Na janela em frente descubro uma jovem
muito elegante, a distância era grande. Voltou ali nos dias seguintes e à hora
em que normalmente eu também ali me encontrava. Na minha cabeça começaram a
correr fantasias. Comecei a fazer-lhe adeus. Não respondia e eu não tinha a
certeza se ela sorria. Um dia encontrámo-nos no elevador do prédio. Era o
prelúdio que eu ansiava:
- És a jovem da
janela em frente à minha.
- E tu és o maluco do
consulado.
Foi o principio de
uma fabulosa amizade.
Era muitíssimo bonita
e sempre bem disposta. Começámos a sair juntos. Um dia beijámo-nos com
voluptuosidade. Quando ela já regressava a casa eu não resisti:
- Michelle, tu beijas
tão bem.
E ela, com a maior
das naturalidades, respondeu-me com o seu melhor sorriso:
- Lá na escola, todos
os meus colegas dizem o mesmo.
Fiquei sem pinga de
sangue. Em Portugal, naquele tempo, roubar um beijo a uma rapariga era o
caminho mais directo para o casamento. Aquela resposta natural, se por um lado
me magoou, por outro libertou-me desse mal que dá pelo nome de ciúme. A partir
desse momento fiquei reciclado.
Para os jovens tudo
lhes serve para se divertirem. É raro fazerem-no por maldade.
Quando ouvimos dizer:
“já têm idade para saber o que fazem” - é porque esqueceram a juventude e os
erros cometidos ou então é gente muitíssimo infeliz que nunca viveu a vida.
Conto uma pequena
história passada comigo.
Ia de Santarém para
Tomar (1976), um jovem pede-me boleia para o Vale de Santarém. Durante o
trajecto pergunto-lhe:
- Que idade tens?
- Dezanove.
- Que fazes?
- Ensino a ler no
colégio.
- Muito bem, eu também
sou professor, escrevo livros. Aqui tens um, de poemas. Lê um poema para eu
ouvir a tua dicção.
- Mas eu não sei ler.
- Não sabes ler, e
ensinas a ler?
- É. Eu tomo conta
dos mais novos e digo lê, e eles lêem.
- Conheces, ao menos,
as letras?
- Assim, assim.
- Como é que sabes
que eles lêem bem?
- Por aquilo que me
soa. Se soa bem, está certo. Se não soa bem, está errado e mando ler até eu
entender. Já sei de cor quase todas as páginas do livro. Eles não me enganam.
A viagem tinha
terminado. Tinha encontrado o protótipo do génio português: desenrascado e
improvisador. Perante a surpresa das respostas não tive coragem de lhe dar
qualquer conselho, para o fazer teria de estar mais tempo com o rapaz, e
perceber aquele fenómeno que ensinava o que ele próprio não sabia, concluía
sim, que a vontade de aprender e de ensinar é inerente ao espírito português.
Quando publiquei a
“História de Portugal de 1097 a 1998”, lembrando-me deste encontro, logo nas
primeiras páginas, digo que os portugueses foram ensinar o que ainda estavam a
aprender.
Nenhum povo do mundo
nos pode acusar de não lhe termos ensinado o que sabíamos. O analfabetismo até
finais do século dezanove ultrapassava os 85% e só a partir de 1970 ele baixou
para os 35%, como podíamos ensinar? Ensinávamos como fazia o jovem: dávamos a
nossa boa vontade com mágoa de não saber mais.
Mas ainda continuamos
a fazer muita coisa sobre o joelho. Quando fui escolhido para ensinar
jornalismo na Escola de Santa Maria do Olival, no primeiro ano em que arrancou
o curso, foi marcado um seminário dirigido pelo professor Adriano Rodrigues.
Duas professoras não se inibiram de dizer que nunca tinham lido um jornal e
foram obrigadas a aceitar aquela tarefa para que não estavam minimamente
vocacionadas, nem interessadas.
É próprio do
português: anda séculos a ver os outros fazer e de repente quer alcançar tudo
sem ter a mínima preparação para o que pretende. Improvisa e nasce coxo o que
poderia ser copiado dos outros países mais avançados.
Somos assim...mas
temos de nos modificar. Eu conto contigo.
O jovem, raramente
pensa nas consequências daquilo que faz. Sente-se protegido pelo acaso e não dá
a devida importância aos seus actos.
Como entrei na
política? Em 1975 fui convidado, pelo PS, PPD e CDS, a aceitar ser candidato a
Deputado mas eu detestava a política mesmo tendo escrito o livro “Tu cá, Tu lá”
em 1962, que alguns classificaram como uma verdadeira lança no coração do
regime. Eu só o tinha escrito por amor ao povo sacrificado e explorado, o resto
não me interessava, nem as consequências que daí me poderiam advir. Não
considerei nada transcendente ter afrontado o Governo. Fi-lo sem pensar em
politica. E nem o Manuel Guimarães me convenceu a entrar numa lista vencedora.
Em 1976 só o CDS insistiu e eu recusei até ao último minuto, o Dr. Manuel dos
Santos Machado, esse é que não me largou, e eu tive de aceitar com a imposição
de ser o segundo da lista e como independente. No ano anterior, para a Constituinte, o CDS não
tinha eleito nenhum deputado, era natural que, o segundo, nunca entrasse por
melhor que fossem as previsões.
Depois de fazer parte
das listas tive uma revolução dentro de mim; senti que devia esforçar-me por
ganhar. Foi assim, que sozinho, delineei toda a estratégia.
Comprei uma máquina
duplicadora de stencil para fazer a campanha como eu entendesse. Desde o
primeiro dia não parei um segundo. Percorri, várias vezes, de lés a lés, o
distrito de Santarém, sem me importar se era a minha área de campanha ou se era
a dos outros, eu só tinha a certeza que aqueles votos me eram necessários para
ser eleito e não podia confiar em mais ninguém porque me apercebi que a
organização era muito frágil. Algo me dizia que devia proceder assim, esse algo
é a partícula divina que todos
transportamos e que eu, às vezes, aproveito na sua máxima força.
Foram dias
extremamente fatigantes, mas eu aguentava-me. O trabalho e o prazer de conhecer
outras variantes da vida nunca cansam.
Quando os meus alunos
souberam que eu era candidato pelo CDS, exclamaram: “mas ele é anarca!”.
Na verdade assinava
“A Batalha”, jornal anarquista que me começou a ser enviado talvez por
indicação de algum dos meus alunos. No fundo, todos somos anarcas. Todos
queremos fazer o que nos apetece sem ter de prestar contas seja a quem for.
Passados os dois
primeiros dias de distribuição de propaganda apareceu-me um dos dirigentes do
MRPP a pedir para lhe deixar imprimir uns panfletos, depois veio outro
dirigente da UDP a pedir o mesmo e foi assim, que até ao fim da campanha, na
mesma máquina, três partidos de ideais e critérios bastante diferentes
imprimiram, em minha casa, a propaganda que quiseram sem nunca nos importarmos
com as ideias expendidas por cada um dos Partidos. É a esta luta fraterna e
saudável que eu considero a luta por um país próspero e feliz. Quem ganha tem
de governar a favor de todos. Os “tachos” só devem ser distribuídos pelos mais
competentes sejam eles da oposição ou do Governo. Se são da oposição e vão para
o Governo não podem fazer obstrução ao vencedor, têm de ser mais uma força de
bem estar, a favor de todo o país.
O meu segundo
livro(publicado em1962) tem, como um dos personagens, um Cabo Verdiano e eu
descrevi Cabo Verde sem nunca lá ter ido.
Como disse atrás,
escrevi o livro falando de Cabo Verde sem nunca lá ter ido. Isso vai dar azo a
outro episódio curioso.
Passados poucos dias
de ser Deputado disse à Secretária do Partido que eu não estava interessado em
viajar para o estrangeiro, nessas visitas, comuns, que os deputados fazem a
outros países a convite dos respectivos Governos. Eu só estava interessado em
saber o que se passava em Portugal. Viajar, já tinha viajado o suficiente.
Assim se passou o primeiro e quase todo o segundo ano quando acontece o
seguinte: no final de uma reunião de trabalho que tinha metido almoço, o
saudoso Dr. Vasco da Gama Fernandes de quem eu era muito amigo, apesar dele,
como Presidente da Assembleia da República me chamar continuamente a atenção
para as palavras, às vezes, bastante ásperas como eu tratava os colegas das
outras bancadas sempre que sentia os interesses portugueses a serem preteridos
a favor de outros assuntos que eu não considerava próprios das nossas funções.
Ele dizia que eu era reincidente, eu estava-lhe grato por uma sua atitude. Ele
tinha-me querido salvar de um julgamento no tribunal de Tomar por causa do
artigo “Atrás dos Militares”.
Vamos à história. Eu
era caloiro, estava há cinco dias na Assembleia da República, ele disse-me: “o
colega esteja descansado, enquanto estiver nesta casa nunca será julgado. À
minha pergunta: se deseja dizer alguma coisa, responda não.” Eu desci a
escadaria, grato aquele homem que só queria o meu bem, mesmo não pertencendo ao
seu Partido. Mas eu sou da Beira. Não consigo dizer o que não sinto. À sua
pergunta respondi:
- Desejo sim.
Ainda hoje vejo, o
DR. Vasco da Gama Fernandes, encolher-se na cadeira da Presidência e de olhos
implorativos perguntar outra vez.
- Deseja dizer alguma
coisa sobre este assunto?
E eu.
- Desejo sim. Antes
do 25 de Abril publiquei cinco livros, escrevi o que quis e me apeteceu,
cortaram-me artigos em jornais mas nunca entrei num tribunal, depois do 25 de
Abril mandam-me a julgamento, os senhores deputados poderão votar como
entenderem que eu aceitarei o resultado.
Voltando ao almoço,
eu ouvia-o sempre com gosto; o Dr. Vasco da Gama Fernandes era um conversador
fabuloso e um homem com muita graça e saber. Nesse dia, depois de puxar umas
fumaças disse:
- Na próxima semana
vou à minha terra.
Eu tinha uma ideia
que o Dr. Vasco da Gama Fernandes era de Cabo Verde.
- O senhor Presidente
vai a Cabo Verde?
- Vou eu e uma
delegação da Assembleia da República. Do seu Partido vai o Dr. Narana Coissoró.
Na minha cabeça pus
imediatamente. “Quem vai sou eu”
- Senhor Presidente,
eu é que vou a Cabo Verde.
- Não é possível. Já
está tudo programado, já assinei toda a papelada, o seu colega não vai querer
ser substituído e para mais o colega , ele tratava-nos assim, nem passaporte
Diplomático tem. Foi o único Deputado que não o requereu.
- O senhor Presidente
assina?
- Não vejo muita
viabilidade, mas estou sempre disponível para resolver questões que eu
considere justas.
Quando cheguei ao
Parlamento disse à Secretária que me preparasse toda a papelada para ir a Cabo
Verde.
- É impossível senhor
Deputado. Vai o senhor Deputado Narana Coissoró e com ele não tem hipóteses de
trocar.
Fiz que não ouvi.
- Diga-lhe que eu vou
na vez dele. A Mina, era a Secretária, comece a tratar-me de toda a
documentação.
Passado uns vinte
minutos apareceu o Narana, o Plenário abriria dentro de cinco ou seis minutos,
dirigiu-se a mim, com aquela agilidade que o caracteriza.
- O que é que tu
queres?
- Quero ir na tua vez
a Cabo Verde.
- Tu vais é...
(imagina o que ele disse)
Eu sempre considerei
o Narana um homem muito inteligente e com uma graça natural, nunca me ofendi
com as suas palavras embora ele, às vezes, não achasse graça aquilo que eu
fazia ou dizia.
O Narana voltou-me as
costas e dirigiu-se para o Plenário.
- Espera. Ouve o que
tenho para te dizer.
- Eu não oiço nada!
- É melhor que oiças.
- Diz lá!
- Mal abrir o
Plenário, vou pedir a palavra e dissertar sobre as viagens dos Deputados ao
estrangeiro.
- Diz, diz muitas
asneiras e vai, vai a Cabo Verde! ....(acrescentou umas diatribes
irreproduzíveis aqui mas que me deram muito gozo)
Eu quis ir a Cabo
Verde para verificar se o que tinha escrito no livro correspondia à realidade.
Cabo Verde é um sonho de fraternidade, de beleza, de simpatia. Ultrapassou tudo
quanto eu imaginava.
Como verificaste é
necessário querer para se alcançar. Quando queremos algo, com muita vontade,
nada resiste a esse desejo intenso. A história verídica que relato é bem mais
movimentada mas já te deu uma ideia do que representa uma vontade.
Conto outra história
passada com o Professor Narana Coissoró. Eu fazia parte da Comissão de
Educação, presidida pelo saudoso Engº. Nuno Abecasis. Discutia-se uma proposta
do Partido Comunista sobre questões relacionadas com o ensino e que eu
considerei correctíssima, o CDS e o PPD não concordavam. Segredei ao Nuno que o
PCP tinha razão e que devíamos aprovar o que eles propunham. O Nuno não tinha a
mesma opinião .- Eu disse-lhe:
- Vou-me embora. E
saí.
Passados uns vinte
minutos apareceu o Narana, afogueado, a perguntar-me:
- O que andas aqui a
fazer? anda imediatamente para a Comissão: estamos empatados oito a oito.
Eu disse-lhe que não
ia. O Narana, que é bem constituído, pegou-me por um braço e arrastou-me lá para dentro enquanto eu
insistia:
- Eu voto com os
comunistas, eu voto com os comunistas. - Ele não acreditou. Votei. O Nuno,
também não queria acreditar. O Narana presenteou-me com aquela linguagem
engraçada que em vez de me ofender me dava prazer e eu acabei por ser apelidado
de Comunista infiltrado no CDS e os comunistas, passados aqueles momentos e
esquecidos do meu apoio me qualificavam de fascista. Era-me indiferente. O bem
de Portugal está acima de qualquer palavra. Aqueles que o fazem progredir têm
sempre o meu apoio.
Votei com os vários
Partidos e às vezes contra o meu próprio. O saudoso Presidente da Assembleia da
República, Teófilo Carvalho do Santos, que mandou fechar a Assembleia por minha
causa, mas que eu sempre considerei um homem inteligente e honestíssimo, tinha
o hábito de contar as minhas infracções e os meus desvios partidários. Um dia,
ouvi feliz, que eu estava certíssimo.
Ele contava ao Presidente
de uma delegação Suiça, que nos visitava, o sentido das minhas votações
contrárias ao do meu próprio Partido, ao que o outro respondeu:
- O senhor deputado
tem razão. É a maneira de manter o eleitorado. Muitos pensam como ele e ficarão
fiéis ao Partido. - Fiquei muito feliz.
Até que enfim, aparecia alguém que me compreendia. Eu quando votava contra, ou
me abstinha, era porque estava certo que tinha razão, seria incapaz de o fazer
por qualquer outro motivo. O bem de todos os portugueses sempre esteve acima
dos meus interesses ou daquilo que possam pensar de mim.
O grande objectivo:
prosperidade e felicidade para todo e qualquer português. Temos de atingir esse
objectivo.
Não resisto a ensinar
um ignorante mesmo que ele depois venha a utilizar esse conhecimento contra
mim.
Na Assembleia da
República encontrei outro homem que fazia o mesmo: o Adelino Amaro da Costa.
No jornal “A
Província” escrevi, em editorial, o artigo: “Amaro da Costa versus Nobre da
dita”, artigo em que defendia o Engenheiro Nobre da Costa, indigitado Primeiro
Ministro, contra as posições do Engenheiro Amaro da Costa.
Chego à sala do Grupo
Parlamentar e vejo que o Adelino lê, atentamente, o meu artigo. Fico feliz
porque a mensagem estava nas mãos do visado, e pela reacção que ele iria ter em
cima do acontecimento.
O Adelino estava
encostado à secretária. Quando acabou a leitura e me viu, olhou para mim com ar
de reprovação:
- Ó Cunha Simões,
você não tem razão nenhuma naquilo que diz!
A seguir o Adelino
desmonta, período a período, os meus argumentos, enquanto eu faço uma defesa
débil perante aquele colosso de inteligência e monumento de saber. Ele
utilizava a inteligência, eu utilizava a intuição e alguns conhecimentos.
Aquilo que me deslumbrava era o seu poder de argumentação e a maneira como ele
conseguia demonstrar que estava certo, naquilo que eu considerava errado.
Este assunto tem um
desenvolvimento dramático, uns dias mais tarde, quando Nobre da Costa é
injustamente derrotado no Parlamento. Conto os contos proibidos num livro sobre política, que já está escrito,
mas que o vou deixar amadurecer.
Voltando ao Adelino.
Estava zangadíssimo comigo. No fim diz-me:
- Além dos erros que
cometeu neste artigo, todo o jornal está mal feito e mal paginado. - E o
Adelino, página a página, foi-me apontando as faltas e como se deviam emendar.
Durante, bem mais de 30 minutos, deu-me uma fabulosa lição sobre o conteúdo e a
paginação do jornal.
O Adelino Amaro da
Costa foi o Homem mais inteligente e o mais justo que até hoje conheci. Não
passa um dia que não O recorde com saudade e admiração.
Utilizando a
inteligência, o estudo e a honestidade para com a vida nós podemos fazer tudo.
Conto-te algo que te pode parecer estranho ou caricato:
Eu fiz um santo.
É um santo de carne e
osso e poderia ter feito dois se o segundo, depois de ter escrito um livro
sobre ele, não cegasse pelo dinheiro.
Vamos aos factos para
que os cépticos entendam o assunto e sem que tenham necessidade de uma exegese
contraditória dos textos Bíblicos.
Todos nós temos forças
que nos caracterizam e diferenciam dos restantes animais. Todos nós
transportamos connosco uma partícula
de Deus. Consoante a sua dimensão, assim somos mais ou menos competentes. Essa partícula faz que sejamos capazes de
realizar aquilo que o comum dos mortais chama o milagre.
Nós somos a fusão
daquilo que os filósofos teimam em separar: o idealismo e o materialismo. Os
dois procedem do mesmo Ser que ao explodir dá origem a biliões de biliões de
partículas e elas, por sua vez, as maiores, dão origem aos diferentes astros, e
as pequeníssimas, se quisermos, os neutrões, irão impressionar os seres. Por
isso afirmo que todos somos capazes de nos curar ou ajudar uns aos outros, eu
explico isso no livro “Saúde e Destino”.
Vamos ao santo.
Como Deputado
preocupei-me em servir o país. Corri Portugal de Norte a Sul para conhecer
carências, levantar questões e propor soluções. Por causa da barragem da
Fenosa, em Tourém, fui bastante violento com o saudoso Dr. Sá Carneiro. Os
donos das terras acusavam-no de os ter prejudicado em favor dos espanhóis.
Tourém é um dedo que entra por terras de Espanha no norte de Portugal. Eu falei
com o Dr. Sá Carneiro. A sua resposta não me agradou. Passado pouco tempo, numa
entrevista para a RDP com o notável jornalista Pedro Cid, eu declarei,
indelicadamente, que o Dr. Sá Carneiro não tinha altura suficiente para ser
primeiro ministro. Altura, funcionava como palavra bivalente: altura do homem e
altura em competência. O Dr. Sá Carneiro veio ter comigo, bastante magoado.
Disse-me que havia de provar que tinha altura mais que suficiente para ser
primeiro ministro. E foi.
Numa dessas viagens
fui até ao Meimão, naquela época com estradas péssimas, metida numa cova funda e
com mais de 95% de analfabetos. No meio da aldeia, numa casa velhíssima e muito
desconfortável vivia o padre Miguel, o santo desta conversa. Na aldeia tinha
fama de tonto, para os de fora tinha fama de curandeiro. Fui vê-lo. Relato o
encontro no livro “Os mistérios do padre Miguel” e por isso não vou repetir
muitos dos conceitos ali expendidos e o carácter peculiar do padre. Era um
padre de aldeia, de palavra insólita, rude mas cativante pela sua franqueza. Só
à despedida é que fiquei com a ideia que ele não regulava bem da cabeça.
Pediu-me um abraço bem apertado e disse-me o dia e o mês em que o CDS iria para
o Governo. Impossível. O CDS era enxovalhado, acusado de fascista, defensor de
capitalistas etc.etc.etc.
Não havia qualquer
possibilidade de o CDS fazer parte do Governo. A verdade é que fomos no dia e
mês que ele indicou. Fiquei a pensar no assunto mas não o achei relevante. Era
uma coincidência, e uma presciência, um pouco fora do comum, mas aceitável. Já
depois de ter saído da Assembleia da República acontece outro caso. Relatei o
facto no livro antes referido. Em traços gerais resume-se no seguinte: a filha
de um amigo meu tinha uma leucemia em estado terminal, vai ao padre Miguel, ele
recebe-os grosseiramente, por fim, dá três pancadas, com força, na cabeça, toda
calva, da jovem, e ela cura-se. Eu sigo este processo porque esse meu amigo se
encontra comigo em Tomar com a mulher e a filha no dia seguinte à visita ao
padre. Esse tira-me o sono. Começo a juntar as peças e a procurar tudo sobre
fenómenos semelhantes. Passado um mês começo a faltar às aulas, coisa que nunca
tinha acontecido. Dirigia-me ao Meimão para estudar o fenómeno. Quando me
convenci que o Homem poderia ajudar muita gente, comecei a divulgá-lo, de
repente são multidões que o procuram.
Eu não divulguei uma
mentira. Divulguei uma força que as pessoas depois transformam em milagres.
O que se passa? O
padre Miguel, ele até podia não ser padre, tem uma partícula divina, um pouco maior que a dos outros mortais, vive
isolado entre terras que lhe recarregam as baterias e completamente
desinteressado dos bens terrestres. Está cheio de energia. Essa energia pode
actuar em todos os campos, basta ele querer. Eu estudei-o profundamente e se
contasse todos os casos que verifiquei diriam que eu sou o maior charlatão do
mundo, mas eu vi, assisti, verifiquei: desde a cura de doenças consideradas
incuráveis, de portas de automóveis que não abrem e ele, só com o pensamento,
fazia abrir, de casais que não tinham filhos e ele tornava férteis. Fenómenos
de tão absurdos que eu, se não assistisse a eles, mais do que uma vez, diria
que os tinha sonhado. Inacreditável para quem não tenha visto com os seus
próprios olhos.
Certo de que o homem
não é nenhum santo: as suas palavras eram irreverentes, as suas atitudes eram
desabridas e as suas tendências, perante alguns aspectos íntimos da vida, não
eram próprios e até reprováveis, como é que este homem conseguia estes
prodígios? Como é que pode virar santo?
Tu respondes-me. “É
um dos enigmas da vida.”
É e não é. Como te
disse, nós podemos fazer tudo a favor dos outros. Podemos utilizar a nossa
energia, simplesmente não acreditamos nela, não acreditamos em nós, não a
conhecemos.
Eu fiz o santo apesar
de lhe conhecer os defeitos porque as suas capacidades são muitíssimo
superiores às falhas que lhe possamos apontar. Tirei partido dessa força a bem
de milhares de pessoas que o procurassem, que pensassem nele ou até que lessem
os livros onde se falava nele. Tive centenas de cartas a confirmarem o que
acabo de dizer.
Aqui tens mais um
dado. O livro é um veículo de força. Ele pode ser o despoletar do conhecimento,
de uma cura, de o despertar de uma ideia, de um abrir de novos horizontes.
Como te disse, no
Meimão, havia mais de 95% de analfabetos. Quando escrevi o primeiro livro sobre
o padre Miguel, toda a gente, na aldeia, se recusou a vendê-lo.
- Quem é que lê isso?
O padre é tolo e mais tolo quem acredita nele. - Eram as palavras que ouvia das
gentes com quem ele convivia.
Eu não desisto às
primeiras e tanto insisti, tanto insisti que lá arranjei uma mulher de 68 anos
que os começou a vender. Foi um sucesso. Um dia que lá fui entregar livros, ela
não estava. Perguntei ao homem:
- A sua mulher?
- Está na escola.
- Na escola? - Pensei
para mim: “esta desgraçada, a ganhar o que ela nunca tinha ganho na vida com os
livros, ainda vai limpar a escola?”
- Ela é doida.
Perante esta frase
fiquei com os neurónios atentos.
A mulher, tinha ido
para a escola aprender a ler, para saber o que diziam os livros, que atraíam
tanta gente.
Claro que há os
descrentes. Aqueles que não acreditam nestes “milagres”. Um deles, era o reitor
do convento de Tomar, com quem às vezes trocava impressões sobre o assunto. Ao
relatar-lhe o que sucintamente acabo de descrever, o reitor disse-me com a
sabedoria que brota da solidão dos claustros:
- Aí tem o verdadeiro
milagre. A mulher despertou para o conhecimento.
Conto contigo.
Nunca desistas do que
pretendes, usa a inteligência e a calma e verás que tiras um prazer da vida
como nunca imaginaste e consegues viver feliz num mundo que faz tudo para se
auto mutilar.
Muitas vezes, os
altos cargos que ocupamos cortam-nos os pequenos prazeres ou obrigam-nos a
evitar determinadas tarefas por não serem consentâneas com o nosso estatuto.
Nunca consegui obedecer a estas regras.
Na Assembleia da
República, raramente andava de casaco e gravata, só em cerimónias muito
especiais. Lisboa é uma cidade de clima temperado mediterrânico, eu sou da
Beira onde o frio, quando aperta, não é para brincadeiras. Em Lisboa ando
sempre acalorado.
Numa recepção de
deputados da Coreia do Norte à Assembleia e posterior visita ao sul do país, em
Agosto, calor infernal, eu fui informado que tinha de os acompanhar em
representação do CDS. O primeiro encontro foi num almoço na “Cozinha Velha”,
Palácio de Queluz. Quando cheguei já lá estava o chefe da representação
portuguesa; o simpático e inteligente Dr. António Arnaut, que foi Ministro da
Saúde, a quem os portugueses devem o Serviço Nacional de Saúde. Quando me viu,
todo fresquinho, de camisa branca de meia manga e calças creme, olhou para mim
e perguntou-me:
- Ó Cunha Simões,
você vem assim?
- Assim com? -
Disse-lhe eu gozando o espanto.
- De camisinha, sem
casaco, gravata...
- Ó Arnaut, deixe-se
dessas coisas. O senhor é socialista, até devia apoiar os descamisados...
- Você é impossível.
Um verdadeiro anarca. Como deve sofrer o seu Partido. Eu...que hei-de fazer!
Começaram a chegar os
outros Deputados e por fim os coreanos, vinham todos encasacados, engravatados
e todos muito suados. Só eu, fresco e feliz me encontrava em conjunção com a
natureza.
Começa o almoço; um
calor insuportável, todos afogueados, à minha frente está o Deputado Manuel
Alegre que me repete constantemente:
- Você é que teve
juízo. Eu morro neste braseiro.
- Tire o casaco, tire
a gravata. - Insistia eu.
- O Arnaut
aborrece-se.
- Faça-lhe sinal e
dispa o casaco.
Assim fez. Passado
meio minuto estava tudo em mangas de camisa e gravata desapertada.
Até ao fim da visita
dos Deputados Coreanos nunca mais ninguém andou de casaco e gravata, salvo o
dia em que fomos recebidos pelo Presidente da República e aí, até eu primei. À
vontade sim, mas regras estritas, são regras.
Quando ia à
Presidência da República só com os deputados portugueses embora fosse de casaco
e gravata tratava sempre o Presidente da República Ramalho Eanes com muito à vontade.
Um dia que fui com uma delegação de comunistas e o Ramalho Eanes me tratou por
tu, eu respondi-lhe com igual tratamento. Nos dias seguintes os comunistas
olhavam-me como se fosse um animal raro, eu dei por ela mas fiz de conta, até
que na semana seguinte, o Deputado Jorge Lemos, veio ter comigo.
- Ó Cunha Simões, é
verdade que você tratou o Presidente da República por tu?
Eu fiz-me pateta.
- Eu?
- Sim, você. Você é
inacreditável, tratar o Presidente da República por tu.
- Se calhar foi ele o
primeiro a tratar-me assim.
- Mas ele é o
Presidente da República.
- E eu sou o cidadão
Cunha Simões.
- Você é
impossível...você é impossível...
Para os comunistas,
naquele tempo, não sei se os comunistas de hoje ainda pensam assim, o
Presidente era o deus, para mim, ele era meu conhecido, sempre nos tínhamos
tratado por tu, o que o Deputado Jorge Lemos desconhecia e que eu, para me
divertir, não lhe disse.
As greves portuguesas
sempre me motivaram muitas dúvidas.
Numa daquelas, muitas
greves, quase selvagens, que se fizeram durante os primeiros anos depois do 25
de Abril, irritado com a irresponsabilidade dos sindicatos, resolvi contestar a
greve dos padeiros actuando. Já tinha escrito contra as greves não por as não
considerar justas, mas sim, porque punham em risco a sobrevivência dos
trabalhadores. Muitos suicidaram-se, outros entraram na miséria de onde nunca
mais conseguiram sair.
Se os trabalhadores,
em greve, fossem pagos pelos sindicatos como acontece em outros países, até
concordaria com elas, agora não esgotar o dialogo e fazer greves, de perna
traçada, enquanto os trabalhadores são consumidos na insensatez, nunca contem
comigo.
Já era Deputado e há
uma greve de padeiros, eu tento convencer o senhor Joaquim Dias Santos, um
homem de coração largo, bondade extrema e dono da padaria “Combatente, em
Tomar, a vender pão nesse dia.
- Como? Não tenho
padeiros, não tenho quem venda o pão.
- O senhor e a D.
Sílvia, a esposa, fazem o pão e eu vendo-o. - Depois de muita hesitação e da
minha teimosia lá o convenci e foi assim, que mesmo Deputado eleito, eu passei
o dia a vender pão com todos a gritar:
- Senhor Deputado,
senhor professor: seis carcaças, um pão de quilo, uma forma...
Todos foram servidos,
o pão esgotou e a mim não me caíram os parentes na lama.
Não há que ter
vergonha de trabalhar, de ajudar. Se não o pudermos fazer na nossa profissão
procuremos outra até atingir o que na verdade nos convém. Nunca devemos ficar
de braços cruzados.
Outro episódio.
O Dr. Manuel
Guimarães passou de professor na Escola Industrial de Tomar para gerente do
Hotel dos Templários. Num Domingo que não tinha viva alma no hotel,
telefona-me.
- Anda conversar um
bocado, estou sem ninguém.
Aí fui, as conversas
com o Manuel começavam sempre com umas historietas e acabávamos em assuntos de
muitíssimo interesse. Falávamos de política, religião, filosofia ou outro
qualquer assunto actual. Isso apaixonava-me. Com ele ou com o Dr. Anselmo
Borges aparecia o lado sério da vida, aquele que obriga a pensar e que me
atrai.
Estava em conversa
com o Guimarães no bar do hotel quando aparece o Sr. Galvão, muito aflito.
- Chegaram dois
autocarros de turistas italianos, o Sr. Dr. mandou dispensar o cozinheiro, o
empregado do bar e mais de metade do pessoal, agora só tenho o ajudante do
cozinheiro, mais um miúdo e o jardineiro. Digo que a estas horas não há
serviço?
O Manuel era incapaz
de perder uma oportunidade de fazer dinheiro para o patrão.
- O hotel está
aberto. Eu vou servir às mesas, o ajudante de cozinheiro passa a cozinheiro,
você ajuda e tu, - olhou para mim, riu-se - o italiano é o teu forte... servir
café e bebidas para ti é mato... riu-se de novo e foi direito à porta.
- Eu?
- Tu sim, de
malandragem já basta o tempo que passas no Parlamento. Tens a lista de
preços...segue-a.
Nem tempo me deu para
negociar o contrato.
Passado 40 ou 45
minutos apareceram os italianos, muito faladores e dispostos a beber e a
repousar no bar e no jardim contíguo. Eu servia com rapidez e eficiência,
dava-me gozo. Era diferente. Eles e elas admiravam-se como um empregado falava
tão bem italiano e eu nunca me desmanchei, só que passado mais algum tempo,
começaram a aparecer os tomarenses que conhecendo-me, e achando estranho o meu
trabalho, pediam, com mil desculpas, o café e uma ou outra aguardente enquanto
os italianos bebiam do fino.
No final tinha de
gorjetas: dois mil trezentos e cinquenta e sete escudos. Só dos italianos. Os
tomarenses não ousaram ofender o Sr. Deputado.
O Manuel, depois de
tudo despachado e com os italianos a caminho de Santarém, perguntou-me.
- Que tal?
- Foi bom. Tens a
caixa cheia. Estes italianos valeram a pena.
- Gorjetas?
- Estão aqui neste
cesto.
- Conta.
Eu já tinha contado.
Peguei no dinheiro, meti-o no bolso e disse-lhe: são dois mil trezentos e
cinquenta e sete escudos.
- Metade para a casa,
metade para o trabalhador.
- Nem um tostão para
a casa. Metade para o trabalhador e metade para a vergonha que passei. Nunca
tiveste tantos tomarenses a beber café, eles passavam palavra e só para serem
servidos por um Deputado iam estoirando com o servidor. Esses não deram um
tostão.
O Manuel bem
argumentou. Mas fui inflexível. Dinheiro de trabalho suado é sagrado. Se
tivesse feito contrato teria pago mais.
O Manuel, durante um
mês, encheu-me de impropérios: “trabalhador explorador” “trabalhador sem
vergonha” e outros menos dignos para a classe dos mal pagos. Eu sentia-me feliz
todas as vezes que ele me insultava. Tinha experimentado mais uma profissão e
tinha sido pago à gorjeta. Era o que muitos cafés pagavam aos seus empregados.
Como vês o trabalho
só envergonha os inchados, aqueles que se julgam tão importantes que qualquer
trabalho os incomoda.
Tanto o trabalho
braçal como o mental são importantes. Sou apologista que vendas trabalho
mental, mas nunca desprezes o braçal sempre que mais ninguém o faça e tenha de
ser feito. Quando isso acontecer inventa sempre maneira de o desempenhares de
maneira fácil. Inventa. Vais ver que dá muito gozo resolver em duas horas
aquilo que outros levam dez.
Experimentar o peso
da vida para a explicar sempre me atraiu. Ao ver carregar, às costas, sacas de
farinha para a padaria, que já referi, um dia, depois das aulas na Escola de
Santa Maria do Olival, antigo Liceu de Tomar, pedi aos dois homens que
descarregavam uma camioneta de farinha:
- Posso experimentar?
- Vai-se sujar todo.
Tirei o casaco,
enfiei uma saca vazia na cabeça e costas e até ao fim da carga acompanhei um
dos homens enquanto o outro passou a levantar as sacas.
No final paguei-lhes
umas cervejas e agradeci-lhes.
Minha mulher é que
não achava graça às minhas experiências nem às minhas aprendizagens.
Entre os nossos
amigos contava-se uma japonesa, muito bonita, a Hiromi. Eu resolvi aprender
japonês. Um dia, depois de acabar a lição, a minha mulher disse-me
diplomaticamente:
- Já sabes línguas
demais. Acabaram-se as lições de japonês.
Eu podia contestar.
Para quê? Contrariar mulher? Nem pensar.
A Hiromi separava os
pintos machos das fêmeas numa das empresas da firma “Mendes Godinho”, deixou de
lá ir a casa. Um dia encontrei-a e convidei-a a assistir a uma aula do 10 ou
11º anos na Escola de Santa Maria do Olival. Passados dois meses voltei a
encontrá-la na tabacaria do Sr. Calado e perguntei-lhe:
- Então Hiromi, ainda
não foi assistir a uma das minhas aulas? Está zangada comigo?
E ela:
- Não estou zangada.
Eu fui a escola, perguntei: Dr. Cunhal está? O Sr. da porta disse não, e eu
voltei para trás.
Todos, na tabacaria,
riram enquanto Hiromi, de olho muito aberto se perguntava o que estava a
acontecer. Lá tive de explicar à Hiromi que o porteiro era novo e que Cunhal
não era o mesmo que Cunha. O outro era um político bem conhecido e o porteiro
não teve o discernimento rápido, perante uma estrangeira, para se aperceber do
engano.
Depois de todos os
trabalhos principais que tive; no colégio, no consulado, no turismo, no liceu,
nas lições particulares, muitas vezes me deitei às duas da manhã e me levantei
às sete; o trabalho dá-me prazer, era natural que fosse amealhando algum
pecúlio. Chega o 25 de Abril e por eu ver os erros dos exageros revolucionários
e os denunciar no “Templário”, um amigo meu, que se dizia de esquerda, resolveu
atacar-me. Arranjou um jornal e pespegou na primeira página um artigo contra o
“Cunha dos cifrões”, ele sabia da minha vida. Avisei-o de que ele estava a ser
injusto e demagogo, não me ouviu. Contra ataquei com as minhas armas. Dois
artigos demolidores: “O cavaleiro da confusão” e “O osso”. No primeiro
insinuava que apesar de ele ter estado preso pela Pide devia ser informador
pois saiu do recolhimento gordo, anafado e bem vestido; no segundo afirmava que
ele o que desejava era um tacho graúdo na empresa onde trabalhava o que mais
tarde aconteceu de facto. Como vês, não sou santo nenhum, não dou a outra face
às pessoas cultas, os ignorantes ou os ignoro ou os ensino. Se alguém inteligente
me ataca ou actua incorrectamente para comigo e se insiste não resisto a uma
resposta condigna. É assim o ser humano. Eu e tu fazemos parte deste mundo e
tentamos aperfeiçoar-nos sempre.
Eu tinha poupado, a
seguir fui Deputado e desiludido e desacreditando no caminho que seguíamos,
resolvi comprar tudo o que fossem manuscritos e outros papeis de valor desde o
século XV até aos nossos dias para os voltar a vender com a colaboração do meu
amigo Manuel Guimarães. Excedi-me embora pensasse sempre que o investimento
seria seguro. Ajudei ainda dois políticos. Por causa de um, perdi, além do
tempo e dinheiro, a grande maioria dos assinantes do semanário “A Província” e
ao outro publiquei-lhe dois livros de graça e paguei-lhe os telefones do
Partido num mês em que as contas estavam muito em baixo. Conto-te tudo isto
para veres que a fortuna ou a desgraça nunca podem desviar o ser humano do seu
objectivo: viver feliz com a felicidade de todos.
Divorciei-me e a
partir daí a minha partícula
ofuscou-se durante uns meses, os suficientes para uma cheia do rio Nabão entrar
no cofre onde estavam os meus tesouros e transformar tudo em pasta de papel.
Perdi muito mais do que as minhas economias. Os dois amigos a quem recorri para
me apresentarem pessoas sobre quem escrevesse foram sempre adiando as
apresentações. Um, já morreu de repente e outro aí continua como símbolo da
ingratidão. Outros ainda usufruíram de altos juros enquanto eu fui sempre
incapaz de levar 1% fosse a quem fosse nos tempos em que podia dar ou emprestar.
Continuo a contar-te isto para saberes que tens de orientar bem a tua vida para
não contares só com a clarividência da partícula
que te ilumina mas para que também estejas com atenção aos desaires
inesperados. Podia servir-me do património paterno mas preferi que as aves de
rapina o farejassem, assim conheceria todo o ciclo das aves rapaces para depois
reconstruir todo o próprio património para o voltar a distribuir por aqueles
que necessitam dele. Tenho a certeza de que não levarei nada mais para o outro
mundo, do que a partícula que me
voltará a ligar a este ou a qualquer outro planeta.
Sintetizando:
Como já aludi: bati
no fundo. Entendi a vida. Vou fazer a recuperação no século XXI só para
compensar quem acreditou em mim e para escrever a todos os Governantes do mundo
e teimar na eliminação dos exércitos e no desenvolvimento da educação.
Corrige sempre os
erros. Nunca faças deles uma tragédia. Ou penses que as situações são
irreversíveis. Há tempo para tudo, neste pouco tempo que vivemos sobre a terra.
Estou certo que os
pais, neste século XXI, compreenderão melhor os jovens. Repreender sim, chamar
a atenção sim, e nunca facilitar nos estudos como faziam os meus pais. O amor
exagerado só revela impericia sobre a finalidade da vida.
A educação é a
condição essencial para o entendimento e prosperidade dos povos. Quando 100% da
população mundial souber escrever, ler, contar, e entender que as únicas armas
permitidas são as da convivência, as do amor e da inteligência, tudo ou quase
tudo está resolvido.
O homem é o animal em
que tudo se aproveita. Enquanto aos irracionais se pode aproveitar a carne, o
sangue, os ossos. O homem entrega toda essa parte material à terra para a
continuar a alimentar e ainda se lhe aproveita o pensamento que, tal como o
sopro da criação, cria, ele próprio, novas formas de vida.
Tenta moderar as
tentações. Oscar Wild dizia não conseguir resistir a uma tentação. Isso
trouxe-lhe gravíssimos dissabores. Moderar as tentações é a maneira mais
correcta para domar este potro bravo que é o corpo. Dominados os apetites
violentos e irresistíveis, o raciocínio clarifica-se e os segredos da vida
são-nos esclarecidos
Enquanto há poucos
anos atrás seria difícil pensar em alfabetizações em massa e em efectivas
mudanças de comportamento, hoje, com a televisão,
a Internet, a rádio e os telefones
celulares conseguem-se verdadeiros milagres; é só substituir as armas por
estes equipamentos. Não posso
compreender como é possível que os países mais desenvolvidos, industrializados
e cultos continuem a vender armas a países paupérrimos, cujo subsolo é
riquíssimo mas onde os seus naturais morrem de fome por causa da sua
ignorância.
Pobres e ricos todos
têm de passar pelas escolas: estudar, brincar e serem muito competentes. Ser competente dá o mesmo trabalho que ser
incompetente e rende muito mais.
É a hipocrisia do ser
humano que o deixa cego perante a iminência da sua própria destruição.
Contei-te histórias
verídicas, levantei-te problemas, desafio-te a utilizar a inteligência a bem da
humanidade, a descobrir os porquês desta angustiante incerteza da finalidade do
ser humano.
Que solução propões?
Escreve, estuda,
experimenta, actua. Quem sabe até onde poderás chegar. Lê e relê o que
escreveste, depois conversa com alguém com quem tenhas confiança e ouve a sua
opinião. Se possível, 5 opiniões diferentes são o ideal. Nunca te aborreças se
a opinião, dele ou dela, não for coincidente com a tua. Afinal, ele ou ela vão
funcionar como críticos que têm a sua própria visão sobre o assunto. A decisão
final é tua.
Como vês, ou como
lês, a minha história envolve outras histórias.
A vida é uma história
constante. Só fica nela quem a souber contar, ou seja, quem fizer obras
notáveis, os outros, nunca passarão de baratas, que do mundo pouco mais tiveram
do que os problemas do dia a dia. Agora, quando todos ficarem inscritos na
memória do mundo, teremos a compreensão humana, porque estaremos solidários uns
com os outros. Todos participámos, de uma maneira positiva, na sua evolução.
A tua cabeça é uma fonte
criadora e inesgotável. Aproveita-a. Serve-te dela e de todos os meios à tua
disposição para a rentabilizares: livros, Internet, rádio, televisão, jornais,
faxes. Tudo te pode servir, para fixares o trabalho do teu estudo, a bem de
Portugal e do mundo. Utiliza a “agressividade com sabedoria” para defenderes as
tuas ideias e os teus negócios e depois sabe valorizá-los a favor dos
outros.
Estás no século XXI,
pensa com a visão do século XXII, aproveitando e melhorando tudo o que foi o
último quartel do século XX.
Luta para que toda a
população do mundo tenha acesso à Escola. Peço o teu contributo. O ser humano
não se pode transformar em abcesso humano. Em aborto humano.
Tu fazes parte de
todo o mundo. Ensina, divulga, utiliza todos os meios áudio visuais para
obrigares os Governos a actuarem rapidamente na educação dos povos.
O futuro e a
felicidade de todos os seres estão nas tuas mãos.
Insisto: devemos
vender inteligência para a rentabilizarmos a favor da humanidade. Já que os
outros países não são capazes de o fazer que o faça Portugal. É o Quinto
Império, é o Império da inteligência sonhado por António Vieira, Fernando Pessoa e Agostinho
da Silva. É óbvio que para isso terás de utilizar todas as tuas capacidades.
Para o fazer tens de mergulhar no mais fundo do pensamento e daí arrancares a
ideia. É inegável que o convívio, o empenho e a influência das outras pessoas é
fundamental para o estudo e divulgação das ideias para concretizar o Quinto
Império: é o Império da Inteligência, do deslumbramento, da ideia que ninguém
teve. O Quinto Império é o Império que conquista a sabedoria, a paz, a harmonia
e a prosperidade de todos os povos. Há uma maneira de o fazer: através de todos
os meios audio visuais que dispomos.
Pensa bem neste
assunto.
As conversas e a
escrita são como as cerejas. Eu insisto para que escrevas, melhor que eu, muito
melhor, de maneira a deslumbrares o mundo, a tocares a inteligência e o coração
daqueles que podem compartilhar ensinando, empregando, criando riqueza para a
fazer reproduzir a bem de todos.
Isto não é ser
lamechas, nunca o fui. Sou um revoltado por amor, se quiseres, por amor a um
mundo hipócrita, infame e que se mata, esfaqueia ou destrói como se tudo fosse
natural, e não é: ou então não somos racionais, ou então caminhamos para a
destruição a curto prazo e certamente é o que vai acontecer, como já aconteceu
de outras vezes.
O mundo tem mais de
550 milhões de anos. Foram encontrados antropoides com 40 milhões de anos. Nós
só temos material escrito desde há pouco mais de cinco mil anos. O que
aconteceu antes?
Apesar da juventude
portuguesa ser irreverente, os portugueses começam a perder o seu valor
combativo e aventureiro poucos anos depois de o Tribunal da Inquisição ter sido
introduzido em Portugal em 23 de Maio de 1536.
O reinado de D. João
III privilegia a cultura e a religião em deterimento da aventura ultramarina:
cerceia a ambição, relaxa o corpo e as mentes. Por outro lado a Inquisição
oprime todos. Há o desinteresse por aquilo que acicata o homem e o torna combativo.
D. Sebastião tenta
fazer o retorno à gesta antiga e arrasta com ele todos os homens válidos e os
de valor para o desastre de Álcacer Quibir.
O rei Filipe II de
Espanha reclama o trono, que era seu por direito de sucessão, poucos se lhe
opuseram. Quebrado o ânimo tanto lhes fazia ser independentes como pertencerem
a uma Espanha forte e unida. Mas os Filipes fizeram tantos erros que os
Portugueses mesmo sem armas, nem dinheiro, nem aliados conseguiram reunir toda
a força que lhes restava e expulsaram o familiar que tão canhestramente
pretendia unir a Península Ibérica.
Com os Filipes a
Inquisição não parou, continuou a ceifar consciências, a aterrorizar quem não
seguia a religião católica ou quem não respeitava o rei. Expulsos os Filipes,
os reis portugueses continuaram a agradecer-lhes os favores e assim continuou
com D. João IV, D. Afonso VI, D. Pedro II, D. João V, D. José e D. Maria.
Foi tempo a mais de sofrimento e recalcamento. Quando estavam na recuperação
vieram as Invasões Francesas e as guerras entre Liberais e Miguelistas. Na
primeira República, como não tinham mais mundo a descobrir nem com quem
combater voltaram a matar-se uns aos outros. Em 1928, na Segunda República,
também conhecida por Estado Novo, apareceu um homem, Oiveira Salazar, que
disse: chega de confusão, quem fizer desordem é responsabilizado e punido pelos
actos que cometer. A parttir deste momento os portugueses acharam que o melhor
era aproveitar o Sol e as praias e deixar Governar quem governa e quem não lhes
desse cabo da cabeça.
Aventuras? Só em
países estrangeiros onde pudessem ganhar dinheiro comprar carro e ter a certeza
que os Governantes do seu país não mandavam neles.
Os portugueses podem
ser mandados por todos menos pelos seus conterrâneos. Eles gostam de chegar a Portugal
e ser eles a mandar nem que o tempo de mando seja de dois ou três anos que é o
tempo da chegada e o tempo em que abandonam este mundo depois de terem gasto as
energias por outras terras onde foram porteiros, empreiteiros ou gestores de
grandes companhias multinacionais.
É por isto que os
portugueses continuam a viver num país envelhecido e mais atrasado que os
outros. Os portugueses perderam a ambição. Agora tanto lhes faz ser pobres ou
ricos desde que não passem fome e tenham um tecto onde viver.
Repetindo: depois
de Portugal ter sido ocupado por Espanha durante sessenta anos, entre 1580
e 1640