Nota prévia
Em Março de 1974 saiu a 1ª edição de "Os Homens são Difíceis". O Portugal daquele tempo, as suas falas, a simplicidade do povo e a complexidade da vida nos segredos de cada um resultaram na obra que, por não tencionar reeditar, coloco à disposição dos leitores.
OS HOMENS SÃO DIFÍCEIS
0 prazer do desconhecido é uma fonte deliciosa.
A carta indicou-me Penamaior.
Fiquei impressionado com a crueldade da palavra, soletrei-a mentalmente: Pe-na-ma-ior.
Este engano trágico quase ia estragando a minha boa disposição. Não sou supersticioso
ou pelo menos esforço-me por não o ser, mas chamar Penamaior
a uma terra é algo desgastante para uns nervos irritadiços como são os meus.
Só no carro consegui esquecer o incidente.
Os pensamentos, leves e inconstantes, aproveitaram esta
distracção e esgueiraram-se através do passado. 0 grilar
do motor e o barulhar das árvores fizeram o resto.
Aos doze anos dei conta da realidade dos seres à minha
volta e senti-me feliz por ter descoberto a vida e o gosto de a viver.
0 campo de
motivações alargava-se com o saltitar do tempo e todos os dias descobria algo
onde mergulhava maravilhado e me perdia durante horas. Sentia-me forte e capaz
de enriquecer as minhas possibilidades. Cedo compreendi o poder do raciocínio e
agucei a intuição como seu complemento. Cortei pedaço a pedaço todas as
profissões e saboreei-as sempre ávido de não perder uma pitada deste mundo
maravilhoso.
Hoje sou padre.
Padre! Só de ouvir a palavra sinto a nostalgia da Idade Média.
Padre! Eu que
nunca soube distinguir uns braços de mulher de uma oração. Padre!
0 binómio mulher-Deus tem-me acompanhado sempre; quando sai um entra
o outro. Serei capaz de desempenhar, com dignidade, este primeiro cargo ao
serviço de Deus? Terá o elemento feminino pesado no meu subconsciente para
explicar este novo ataque de misticismo?
Ah, o esquecimento
é um privilégio! Felizes aqueles que esquecem o dia de ontem e
Passam os anos tão
depressa! Como é fugaz o tempo da inconsciência-feliz!
Como vai longe a Terezinha das tranças loiras, de
olhos de anjo e de suspiros fundos...
A Maria Luisa, onde estará a Maria Luisa?
Como era ingénua!
Brincávamos aos médicos, ela descobriu o que eu nunca tinha notado, quase
esqueci a Elizabeth ardente e triste, tão sonhadora
como eu, tão necessitada do mundo...acreditando em Deus pelos homens e amando
cada homem como se fosse um Deus. Querida Elizabeth!
Tudo era prazer; um fogo lento, avassalador, terno, envolvente, infinito...
uns lábios... perdoa meu Deus... são as despedidas...
A dois passos do
futuro não tenho ninguém. Corro ao encontro de um lugar para cada ser e para
cada coisa e não vejo o sitio ideal onde colocar o Homem. Esse homem paradoxo;
misantropo e filantropo, pacifico e guerreiro, abstémio e lúbrico.
Esqueçamos as
desilusões e as ilusões e abracemos a nova vida com sofreguidão.
Antes de o fazer,
e sem Te magoar muito, lembras-Te dos meus dezoito
anos, meu Deus? Coberto de misticidade amei-Te como um pequeno déspota abandonei amigos e conhecidos.
Desconfiava deles e de mim. Aborreci os próprios pais. Tantos sacrifícios,
tantos sonhos desfeitos! Vinte anos de diferença representam uma grande distância...
nem eu os compreendia, nem me fazia compreender.
Como Te desejava
quando as minhas dúvidas sobre a Tua existência me assaltavam e como
tinha necessidade que não fosses uma indelicada ilusão para entreter meninos,
sofrear impulsos e servir de suporte a idealismos duvidosos.
Recordas-Te das minhas
crises? Como um louco procurava-Te por todos os
cantos. Se não vinhas, folheava a cidade. Hoje, sirvo-Te sem condições. Mas
o passado? Faz-me esquecer esse monstro de lascívia e podridão... De outro
modo serei incapaz de me perdoar tudo quanto fui e tudo quanto passei.
Ainda hoje fico aterrorizado
por ver a facilidade como conseguia arrastar os meus companheiros para o caminho
onde a minha imaginação irrequieta os levava. Cometia os erros mais graves,
os mais impuros, os mais escabrosos, com a desfaçatez e o engenho de pessoa
adulta. A seguir, lembras-Te como eu me atormentava, como de repente algo
de novo me possuía, como desejava tornar-me honesto, puro, bom... como desejava
que os outros acreditassem em mim, que eles me olhassem como modelo?
Como um histrião
rojava-me a Teus pés arrependido do lodaçal espalhado à minha volta,
pedia-Te humilde e sinceramente que me fizesses à Tua semelhança; Tu acedias.
Na mente dos que me rodeavam e conheciam os meus defeitos, os meus desencantos,
o meu erotismo doentio, as minhas fraquezas, voltava a ser o poeta do ideal,
o desbravador do futuro, dos caminhos do bem, da lealdade, da
simpatia cativante... tornava-me o símbolo do homem feliz. Eu! 0 indivíduo
mais
nojento, o mais infame, o mais ignóbil, o palhaço
Homem feliz!
Ninguém, a não ser Tu e eu sabia das minhas
Homem feliz!
Quantas personalidades tive? Vinte? Trinta? Não sei. Fui
aquelas que as circunstâncias me forçaram a ter.
Para onde vou espero ser natural, simples, sem orgulhos,
sem ressentimentos, sem hipocrisias, sem vaidades, sem recordações, só disposto
a amar e a ajudar aqueles que pela sua ignorância necessitem dos meus conselhos.
A carta era lacónica: «Siga urgentemente para Penamaior,
um grave acidente deixou a paróquia sem o seu pastor espiritual. A chave da
residência tem-na o sacristão. Ele é um velho e dedicado servidor que lhe
dará os primeiros esclarecimentos. Receberá, posteriormente, novas directivas."
Não precisava ler mais.
- Santas tardes.
- Que diz? Chó burro! Ai, o alma
do diabo que não está quedo nem um momento! Que diz Vossa senhoria? Onde é
a casa do senhor prior? Não tem qu’enganar: Vai
sempre a dirêto, quando vir a igreja, a casa anda
perto. Chó burro! Ele não está.
- Eu sou o novo prior.
- Homessa! Palavra d’ honra! É
o primeiro padre que não tem cara de padre. Veja lá como a gente s’ingana! Palavra d’honra! Desculpe
lá isto... a mim já me tinham dito c’agora os padres
se parecem ca gente, mas eu nunca me convenci que
fosse tanto. O senhor desculpe sim; esta falta sem reverência... compreenda...
eu sou o Serralho, sapateiro d’oficio há vinte e
três anos e lavrador, dos mais reles, está claro, nem outra coisa era de esperar
de um farrapilha como eu. Quando voltar da horta
levo-lhe lá umas couvinhas. Se desejar umas gáspeas é só falar.
Das couves nunca é nada. Vossa reverência sabe; a
gente até as dá aos porcos, com sua licença. As gáspeas é que lhe ficam um
bocadito mais caras, são quarenta e sete e quinhentos. Tiro-lhe vinte e cinco
tostões que eu sei o que custa a vida, e agora com a falta do pitrol,
as pessoas sempre andam mais à pata...
II
A primeira missa foi uma desilusão. A chegada do padre não
tinha despertado curiosidade e os assistentes podiam contar-se pelos dedos.
Depois do serviço religioso corri para casa. Estava bastante
alheio, ao que se passava à minha volta, quando uma voz fortíssima me gritou
à entrada do quarto:
- Bons dias, padre!
Apanhei um valentíssimo susto. Vi-me perante um velho amigo
ou conhecido, o que me era terrivelmente desagradável.
0 meu interlocutor pareceu compreender a minha aflição.
- 0 senhor está atrapalhado. Não descobre quem lhe
devassa a casa e lhe berra aos tímpanos, não é assim? Sou o médico Diogo Palhanca. Apague lá esses receios!
Senti o pensamento descontrair-se.
- Muito prazer doutor, muito prazer!
- Cheguei a pensar que não me tinha ouvido.
Não respondi para não ter que lhe mentir. Ele continuou,
indiferente às minhas congeminações:
- O seu colega nunca tirou as chaves da porta e o senhor seguiu-Ihe as pisadas.
Eu fizera aquilo por esquecimento, mas não resisti à tentação
de lhe dizer uma frivolidade. Frivolidade essa que me obrigou a conservar
sempre a chave na porta, embora muitas vezes me apetecesse arrancá-la dali.
- Os bons hábitos devem sobreviver à derrocada sistemática
de tudo o que é antigo e restabelecer a confiança entre os seres.
- Eu sou dos poucos que abusa do privilégio. O seu colega
ria-se de me ver aparecer nos sítios mais caricatos; por duas vezes o encontrei
na retrete lendo o breviário. Estou convencido que era o lugar das suas grandes
concentrações. Com o senhor sucede o mesmo, naturalmente. Os padres sempre
tiveram as suas manias...
- As circunstâncias levam-nos a proceder assim. 0
meu antecessor estava longe de imaginar que alguém se atreveria a meter o
nariz... naquele lugar.
- Enganava-se. Gosta da terra?
- É saudável.
- Não se deixe iludir... há ainda muita poluição mesmo depois
do embargo do petróleo. E a propósito, tem bicicleta? Se não tem empresto-lhe
a minha. Eu ando a pé, não aguento os solavancos.
- Agradeço-lhe a sua gentileza e aceito.
- Não agradeça. Para os amigos: mãos rotas. Vou mandar-lha
logo que chegue a casa. Venha. Vim buscá-lo para o apresentar à cidade e àqueles
que poucas ou nenhumas vezes põem os pés na igreja.
0 médico não parava um segundo, e aquele andar de um lado
para o outro, parecia o olhar do hipnotizador que me punha sonolento e predisposto
à divagação. Mas o médico não era homem para me deixar sonhar por muito tempo.
- Acorde! Estou a ver que o ar da serra é forte de mais
para o seu arcaboiço! Vista lá o casaco e abra-me esses olhos para eles não o
confundirem com um morcego!
Achei o médico demasiado expansivo e um pouco irreverente
para mim, seu pastor espiritual. Mas, como só na espontaneidade está
a amizade, concluí que tinha arranjado um bom amigo. Mesmo assim tentei
escusar-me à saída.
- Não posso ir. Não vê como tenho tudo em monte...
- Arruma quando voltar. Um padre é um homem de sacrifícios,
ou não é?
Olhei-o com agrado.
- Não tenho outro remédio?
- Não.
No café uma meia dúzia conversava em voz alta.
- 0 senhor todos os dias traz uma novidade. Hoje até um
padre Ihe serviu para mostrar que é diferente dos
outros.
Fiquei amachucado com esta falta de cortesia, e arrependi-me
imediatamente de ter acedido ao convite do médico. Este agarrou-me por um
braço e apresentou-mos um a um, como
se isso fosse uma grande honra para mim. Por mais esforços que fizesse não
consegui fazer boa cara nem fixar o nome de qualquer deles. Sei somente que
um era empreiteiro, outro comerciante, um outro, e aquele que me pareceu mais
amigo do médico, oficial não sei de quê. Os outros três nem mesmo isso
Ihes ouvi.
0 médico falou, falou, mas nem eu o ouvia nem os outros
lhe prestavam atenção. Depois de ter bebido um café, sem vontade nenhuma,
fiz menção de me retirar. Mas o médico era possessivo, e não permitiu que
arredasse pé daquele lugar. A sua ideia era apresentar-me a todos os que entravam
no café e a verdade é que fiquei a conhecer meia cidade. Já farto de
cumprimentos levantei-me decidido a mandar passear todos os tiranetes. O médico
levantou-se comigo.
- Vai jantar a minha casa.
- Nem pensar, doutor.
- A minha mulher terá imenso prazer em o receber.
- Também gostaria bastante de poder aceitar, mas não
posso. Veja que é tardíssimo!
- 0 que não fez hoje faz amanhã. 0 trabalho não se
estraga.
Mas não. Eu já não podia mais com aquele palrador inveterado.
Tinha a certeza que ou o deixava ali com uma boa desculpa ou, se tivesse a
pouca sorte de ir com ele, não resistiria a ser grosseiro. Depois de muitos
«vai, não vou», lá consegui partir depois de lhe ter prometido que num dos
próximos dias não faltaria ao jantar.
Já em casa senti-me o homem mais infeliz do Mundo. Recriminei-me
amargamente por ser um desadaptado apesar de todas as minhas experiências
e de uma vida de prazeres. Era padre porque queria, ninguém me tinha forçado
a sê-lo, e aos quarenta anos já não era criança nenhuma! Mas vá lá alguém
dizer que não se é criança em qualquer idade!
Passei a noite inteira dando-me conselhos, por ultimo ficou
assente que a minha vida estava definida e, quer quisesse quer não, tinha
de aguentar. Um dos factos era evidente: eu acreditava em Deus. Dizendo-me
ateu, descrente ou maldizente, no fundo, Deus vivia em mim. Já tinha gozado
a vida, por que não dar uma pequena ajuda para a melhoria do ser humano?!
E em que ocupação melhor do que a de padre o poderia fazer!? Deus ajudar-me-á,
eu farei o resto.
A afluência à igreja continuava a ser reduzida e eu assistia
diariamente à derrocada das minhas ilusões. Não tendo que fazer, pois em dois
meses de permanência nunca tinha realizado um baptizado ou um casamento, lia
livros sobre livros e chegava a comprar seis jornais diários.
A partir do terceiro mês tive duas visitantes inesperadas
ao serviço religioso; a mulher e a irmã do amigo do médico. As duas eram jovens
e só a sua presença alegraria o coração mais infeliz. Habituei-me de tal modo
a elas que as minhas preocupações cessaram.
Só bastante tarde dei por esta alucinação. Fiquei
apavorado com a profundidade destes sentimentos destinados ao malogro.
Conversei comigo o mais racionalmente possível, mas embora a razão me dissesse
que isso não era digno de um padre, o coração dizia-me que era próprio de um
homem. De qualquer maneira não podia proceder assim. É certo que nenhum outro
ser conhecia os meus pensamentos, mas, com a breca, eu era padre!
Andava nesta luta, Mulher-Deus-preconceito,
quando a irmã do amigo do médico entrou pela sacristia. Senti as faces
colorirem-se apesar do frio matinal e os olhos brilharem de alegria e de
emoção.
- Bons dias padre.
«Meu Deus, o irmão mata-me se me adivinha os pensamentos
e eu devia morrer de vergonha pelos meus pecados. Porque serei tão frágil
perante tudo o que é belo?»
- Bons dias - disse hesitante entre apertar-lhe a mão ou
beijá-la enquanto Ihe confessava quanto a
sua beleza me fazia bem. Rogar-lhe que fosse o meu anjo da guarda e que não
deixasse de vir à igreja todos os dias. Não lhe pediria mais: só a sua presença.
0 coração gritava-me frases, a razão tapava-me a boca. Apertei-lhe a mão tremendo
e ela rindo.
- Não tem frio?
- Morro de calor, sufoco - disseram as palavras sem minha
autorização. Ela pensou e com razão que eu dizia aquilo por ironia e continuou.
.
- Esta sacristia é desconfortável. Não tem um aquecedor?
- Não me devo prender demasiado a esses agasalhos que só prejudicam a saúde. Nestes
últimos dias não tenho parado um momento; entro e saio da
igreja quase de hora a hora.
- De qualquer maneira, precisa de sentir conforto. Não me
diga que também não tem aquecimento em casa.
- Também não tenho.
- Sou eu que Iho vou oferecer.
.
- Nem pense nisso!
- Irei eu própria entregar a oferta. Não quero perder um
padre simpático só porque não tem aquecimento. Gostou?
- Gostei muitíssimo. A senhora estraga-me com
amabilidades. Ainda não tenho aquecimento porque há grande dificuldade em
arranjar combustíveis...
- Esteja descansado que para si arranjam-se com certeza.
- Eu não desejo ser tratado de modo diferente das pessoas
que precisam muito mais desses mimos do que eu.
- Que faço então?
- Ofereça essa quantia, que vai gastar comigo, a outras
pessoas mais necessitadas.
- Estou de acordo. Vou fazer o que o senhor diz, mas isso
não impede que, um dia destes, eu Ihe apareça lá
em casa com o aquecedor.
Com todas as
minhas forças desejei que esse aquecedor nunca lá aparecesse. 0 meu tempo de
consciência parou enquanto duas correntes de campos magnéticos diferentes
lutavam por uma tomada de posição.
Em que pensa, padre?
- Penso que a beleza de alma anda de mãos dadas com a beleza
física. - As palavras saíram-me espontâneas e só dei por elas
- Ah, ah! Galanteador. Mas ficam-lhe bem
- Peço-lhe perdão. Disse-lhe o que sentia e não o
que as conveniências ordenam.
- Ainda bem que me falou francamente.
- A senhora não faz o mesmo?
- Eu sou uma atrasada, o preconceito tem-me dominado,
evito o que desejo e faço o que não quero. Consigo não sucede o mesmo?
- Todos procedemos assim. De outra maneira os nossos
impulsos arrastar-nos-iam para situações bastante... infelizes.
- Pois qualquer dia fujo da minha prisão e não sei o que isso irá dar.
- Não diga isso. A senhora tem tudo; juventude, dinheiro,
liberdade, porquê pensar que está dominada por quem quer que seja?
- Cuidado padre. Não julgue que os meus pensamentos se
parecem com as minhas faces, eles... bem, não lhe digo mais nada. Este não é o
melhor lugar para falar destes assuntos. Até qualquer dia. Chega de
lamentações.
- Com tudo quanto a senhora possui e com toda a harmonia
que respira é quase uma blasfémia sentir-se infeliz.
- Adeus, padre.
- Tive imenso prazer em a conhecer pessoalmente.
- 0 senhor, com essa cara de santo e esses olhitos azuis,
sabe dizer palavras bonitas de mais para um padre.
- Antes de ser padre fui tudo. Sou padre há pouco mais de
cinco meses e esta é a minha primeira missão.
- É um padre novo...
- Sim, pode dizer isso. Tenho é um pouco de uso, mas
acredito firmemente na minha missão.
- Não diga mais, padre, vejo agora bastante bem a sua falta
de adaptação ao novo oficio. Duvido mesmo que algum dia se chegue a adaptar.
Riu uma gargalhada alegre e correu pela igreja como uma
toutinegra inebriada de felicidade. Eu, se tivesse um lugar onde me esconder
tinha-o feito. Os meus pensamentos deviam sair pelas palavras que não queria
pronunciar. «Meu Deus, meu Deus!» gritei logo que ela desapareceu, como se
este chamamento aflitivo viesse resolver e apagar o que eu já tinha dito e
pensado. Senti, nesta altura, que o meu eu, escondido e atrofiado pelas minhas
recriminações, tentava a todo o custo levantar-se e forçar-me a uma revisão
de pontos de vista. A consciência mais ponderada e calma, como político que
sabe do serviço, apontou-me factos: «Até há sete anos serviste-te do mundo,
das suas fraquezas, da sua imbecilidade, usaste a inteligência em teu proveito.
Já tens a tua conta. Não esqueças os outros que necessitam de ti. Embora a
tua natureza seja fraca, tenta resistir. Não compliques o que não é complicado».
Alguns dias depois desta visita recebi um cartão do amigo
do médico para lá ir jantar a casa. Fiquei indeciso, mas acabei por aceitar.
De uma maneira ou de outra devia aprofundar os meus conhecimentos sobre as
pessoas e nada melhor para isso do que umas noites de convívio.
Diogo Palhanca, o médico, e Clemente,
o dono da casa, vieram receber-me à entrada.
- Pontualíssimo! - gritou o clínico.
- Entre, está um frio dos diabos.
As senhoras estavam distribuídas pela casa e cada uma
apareceu de seu canto para me cumprimentar.
- Não me diga que esteve contando as horas para vir tão
certinho. - Disse-me a mulher de Clemente.
- Não gosto de chegar atrasado.
- A expectativa cria emoção.
- As senhoras estavam
desejosas de o conhecer pessoalmente - disse o médico rindo.
- Todos para a mesa. Ai tem o seu lugar padre. Fica ao
lado de Leonor.
- Sinto-me muito honrado pela deferência.
- Pela confiança, Padre. Pela confiança! Leonor é a
rapariga mais requestada de todo o distrito e o senhor fica ao lado dessa
preciosidade.
- Não comece com as suas graças, doutor. 0 padre ainda não
o conhece suficientemente para ter a certeza se está a brincar ou a falar
a sério.
- Eu a brincar?
- D. Leonor não se aborreça pois qualquer pessoa fica
encantada com o seu trato e a sua simplicidade. 0 doutor, mesmo que estivesse a
brincar, não pode ter dito uma grande mentira.
- Ah, também o senhor! Só falta o meu cunhado. Também não
queres dizer um piropo à solteirona da casa?
- Recusas todos os pretendentes... vem aí a criada,
deixemo-nos destas brincadeiras em frente do pessoal. - Disse D. Matilde à
mulher de Clemente.
- Isto é uma festa? - perguntei, depois de saborear três
pratos diferentes.
- Festa? Este padre sai-se com cada uma!
- Tem razão, desculpe doutor esta pergunta fora de senso.
Clemente elucidou-me.
- Duas vezes por mês jantamos juntos. - Isto é: os quatro.
Hoje veio também a Leonor para manter o equilíbrio. Eu e o Clemente almoçamos
muitas vezes juntos. Fazemos isto par causa das mulheres. Até já pensámos
que o mais simples e... mais económico era trocarmos de mulheres dois dias
por mês e cada uma ia matar saudades a casa da outra.
Não sejas trapalhão! 0 padre não faça caso. 0 doutor Palhanca está sempre com palermices e eu nem sei como
a Matilde o atura, e o Clemente o deixa dizer essas barbaridades, disse D.
Madalena fingindo-se zangada.
- Por que os estás a envenenar, se eles não dizem nada?
Não podes negar que temos uma predilecção muito especial pela casa um do outro,
não é verdade sua gatinha assanhada?
- Vocês, lá sabem. Eu e a Matilde temos
a impressão que funcionamos como robots.
- Robots? Tu um robot? Nem pensar! Tu não és mulher que
possas ser comandada à distância e mesmo que o fosses nunca poderia
acreditar que o Clemente não deixasse pulso livre à mulher mais bela do país.
- E tu, deixas pulso livre à tua mulher? - perguntou D.
Madalena.
- Eu? Ela faz o que quer e ainda Ihe
sobra muito tempo.
- Por que representas sempre o papel de homem liberal,
Diogo?
0 médico olhou a mulher muito sério.
- Não me fixes assim que me fazes corar. - Disse-lhe esta.
- Todos riram e ela continuou:
- Embora os homens façam isso inconscientemente, não há
um só que acredite que as mulheres têm massa cinzenta igual à vossa.
- Se me permitem, - disse timidamente - eu não me queria
meter no assunto, mas se me calasse poderia parecer que estava de acordo com
essa ideia. Na verdade considero a mulher tão dotada como o homem e com os
mesmos deveres e direitos que este. E não só eu penso assim: os governos de
Ceilão, da Índia e de Israel estão entregues a mulheres como Sitimavo Bandaranaike, Indira Gandhi e Golda Meir.
- Isso passa-se no Oriente.
- Mais uma razão para demonstrar que o homem acredita na
mulher; é precisamente do Oriente que vem a lição para o género feminino, pois
aquelas que não sabem usar mais do que os atractivos físicos são postas em
haréns.
- Eu falo do nosso país - insistiu D. Madalena.
- No nosso país sucede o mesmo! As nossas universidades
estão cheias de professoras e os jornais têm os seus melhores colaboradores
entre o género feminino.
- Então qual é, para si, o remédio ou o que faz que a
mulher muitas vezes sinta um complexo
de inferioridade perante o homem? - retorquiu D. Madalena.
- A mulher deixa-se seduzir pelo espantalho
da moda, perde qualidades e muitas vezes personalidade. Por outro lado parece-me
que a mulher se sente mais feliz deixando correr os acontecimentos em vez
de chamar a si a responsabilidade das decisões.
- Não concordo. A
mulher tem um sentido tão grande de responsabilidade como tem o homem, simplesmente
a mulher entristece-se com «os brutos matadores» e volta-lhes as costas -
disse D. Madalena.
- Não devia voltar, querida - sussurrou Clemente.
- Eu disse: «volta-lhes as costas», mas não disse que
abandonava o papel e entregava os seus direitos ao macho pretensioso.
As senhoras riram e D. Madalena continuou:
- Como frisou o padre, existem três mulheres na chefia de
outros tantos países e as nossas universidades estão cheias com o elemento
feminino. .
- 0 ensino afunda-se! - gritou o médico.
- Tu é que te afundas se continuas a beber dessa maneira.
- Descansa querida Matilde. A Madalena e o Clemente
oferecem-me dormida ou então... tu levas o Clemente e eu fico com a Madalena.
Os suaves lares ficam de igual modo equilibrados.
Fez-se um silencio de morte. 0 médico exagerava.
Competia-me a mim quebrar aquele mutismo.
- Ainda não vi os vossos filhos!
- Esses monstros estão óptimos. - respondeu o médico - Nós
é que já não os entendemos de maneira nenhuma. Veja que o meu filho tem uma
cabeleira maior que a da mãe. Estes rapazes estão umas nódoas.
- Os homens já usaram cabelos compridos noutros séculos e
ninguém os achava nódoas - disse exaltada D. Matilde.
- Defende-os: são uns coitadinhos! Para mim esses
sujeitinhos além da falta de limpeza...
- 0 teu filho toma banho e lava a cabeça todos os dias...
- Meu filho ou não estes cavalheiros lembram-me sempre os
frangos de aviário.
- Não digas asneiras!
- Porquê, frangos de aviário? - perguntou Madalena.
- Ó filha, deixa-o. Quando ele começa com asneirite só diz disparates.
E D. Matilde olhou sintomaticamente para mim como a pedir-me
desculpa do meu cabelo, que havia bem uns nove meses não tinha cheirado tesoura
de barbeiro.
Mas D. Madalena insistiu:
- Sempre gostava de saber o que dali vai sair.
- Asneira, não esperes outra coisa.
- Eu faço-te a vontade minha querida amiga. Eles parecem-se
com frangos de aviário porque nem cantam nem galam.
- Tu, pelo menos, cantas - disse-lhe a mulher muito séria
enquanto todos lançámos uma gargalhada sonora, o médico não se deu
por achado, continuou defendendo as suas ideias baixando a pouco e pouco o
tom de voz até sair da conversa.
0 jantar foi agradável e D. Madalena mostrou-se uma excelente
dona de casa. De vez em quando, o médico metia-se com ela, as suas palavras
eram mais fortes do
Clemente, tal como a irmã, vagueava entre os presentes.
Todos o sentíamos, mas ele só se mostrava quando lhe dirigíamos qualquer
pergunta. Durante toda a noite manteve-se pensativo e distante: ou tinha algo
que o preocupava seriamente ou então as manifestações humanas obcecavam-no na
tentativa de as interpretar.
À meia noite despedimo-nos do dono da casa e de D.
Leonor. 0 médico falou durante todo o caminho exaltando as múltiplas qualidades
de D. Madalena. Eu não tinha respostas e D. Matilde também não.
v
0 Serralho era
o melhor sapateiro da região e o maior bêbado de todo país.
Com ele andavam sempre mais dois; o Zé Jacques, carvoeiro e homem simples, habituado a falar com
as estevas, o rosmaninho e a caruma dos pinhais; se não bebia tanto como o
Serralho, pequena devia ser a diferença. 0 outro, barbeiro e pescador, acompanhava-os
como um filósofo à procura de... nem sabia ele bem o quê. Par
vezes esquecia-se do seu papel de moderador e embebedava-se mais do que os
outros dois.
Estava à lareira lendo as ultimas quando aquelas três
«aves» me entraram em casa.
- Vossa reverência dá licença? - suspirou o Serralho
já no meio da casa.
Pelos vapores etílicos percebi logo quem era a minha
gente.
- Entrem, entrem.
- Eu não vos disse: o padre Francisco é assim.
- Eu não sou o padre Francisco.
- Não faz mal. É padre, não é? Vossa reverência não se
zanga e nós também não. Não é verdade ó Zé Jacques?
- E vens tu a casa do padre sem lhe saberes o nome, isso
é que tu és burro!
- Já vos disse: os senhores suas reverências são uns
gajos porreiros, não são? Eles até nem s’importam
pois não? Eu até fui o primeiro a indicar-lhe o caminho, não fui ó padre?
- É verdade. Se não fosse o Serralho tinha demorado mais
uns minutos a encontrar a casa. Sentem-se, sempre estão mais confortáveis
e mais quentes.
- Quentes? A escaldar já nós estamos. Se nos sentarmos ao
pé do lume rebentamos como o tojo verde. Este «alfabeto» trouxe-nos para vossa
re... para vossa re... para o senhor
prior resolver os nossos problemas, mas eu continuo na minha: ele é burro
chapado e nós estamos mais ensopados que uma esponja porque de outra maneira
não lhe daríamos ouvidos nem o viríamos incomodar. Mas ele teimou, teimou
e cá estamos. Para mais... eu não sou de missas, aquele também não é, este
vai lá quando o rei faz anos... está visto que o senhor está-se marimbando
para os nossos problemas e é justo que assim seja. Para mais, o senhor, não
é nenhuma tábua de fazer contas para resolver problemas.
Se calhar tomara o senhor que lhe resolvessem os seus e
está prá’qui a gente a chateá-lo. Já é mania;
este tipo bebe o vinho e os outros têm que cheirá-Io!
- E trouxe eu este desgraçado p'ra
falar cuma pessoa fina. Mal empregado tempo que
gasto contigo, ingrato do diabo! - disse o Serralho, apontando ameaçadoramente
para o barbeiro.
- Posso saber qual é o motivo da vossa visita a estas
horas?
- Vossa reverência nem adivinha nem percebe nada disto,
mas estes dois bêbados teimosos intuíram em o vir aborrecer e ninguém os convenceu
do contrário. Este alarve disse-nos que conhecia muito bem o senhor
e mais uma série de palermices e nós, como
estamos bêbados, viemos atrás dele.
- Não oiça este tipo, ele tá a
destilar. Não diz coisa com coisa. Enfim, habituaram-no a cortar cabelos,
e não a orar, depois mete-se em tudo, sabe tudo, e os outros é que são os
burros e ele é o esperto..
- Diga lá o Serralho em que os posso servir.
- Por mim bebo um tintol e estes
dois... deve ser a mesma dose. - Disse o Zé Jacques
esfregando as mãos e dando estalinhos com a boca.
- 0 senhor prior quer saber o que nós queremos e não o que
nós bebemos, - respondeu o barbeiro de sobrolho franzido.
- Posso-lhes oferecer café se assim o desejarem.
- Também aceitamos.
- Cala-te! Tem vergonha nos apetites!
- Nós vimos aqui - começou o Serralho - porque desejamos
"imigrar.
- Emigrar? Nesta altura? Vocês não estão bons! Não lêem
os jornais?
- Eu bem disse que era escusado. É tudo o mesmo! Os outros
dizem-nos que barbeiros, sapateiros e carvoeiros não são profissões para "imigrar."
Que lá fora já não se usa disto, que arranjemos outras profissões para fabricar
os papeis como manda a lei. Este diz-nos para ler jornais, bolas para os homens
e para os padres!
- Não me está a compreender...
- Estou. Então não estou!
- As vossas profissões são bastante dignas e... na hora
actual um carvoeiro é um elemento de muitíssima utilidade.
- Eu sou bom! - disse o Zé Jacques
entre duas goladas de café.
- Tu és bom e burro porque te deixas levar com duas
patranhas. 0 padre fala-nos da dignidade da nossa profissão porque não tem oito filhos a sustentar como tens tu,
dezasseis como o Serralho e cinco como eu! Damo-lhes
de comer com que dinheiro?
- Primeiro, parto do princípio que ainda vos sobra algum
para gastar em vinho, por isso, ele não pode ser assim tão pouco como fazem
crer; segundo, porque esta seria a pior altura para emigrar. Quando vos perguntei
se não liam os jornais era precisamente para vos mostrar o que se está a passar
em toda a Europa. Todos os países estão a despedir os trabalhadores estrangeiros
par falta de trabalho. Vocês sabem muito bem, que a falta de combustível afectou
quase todo o Mundo, nós mesmos sentimos essa falta. Agora se vocês quiserem
que eu contribua ainda mais para a vossa desgraça, tentarei arranjar-vos todos
os documentos, mas antes disso aconselho-vos a passar uma vista de olhos por
qualquer jornal. Não há um só que não fale sobre este assunto.
Com quase todos os jornais em cima da mesa desde o «Primeiro
de Janeiro» à «República» fui-lhes explicando pacientemente
o que se tinha passado nos últimos seis meses. Eles riam e comentavam a situação
como se aquilo não fosse mais do que uma brincadeira de crianças.
0 Zé Jacques não se cansava de
exclamar: - Ah, Árabes duma cana, que os faz andar a todos de rabo alçado! Era
o que ria mais.
Durante horas tive de os ouvir. Entraram perto das dez da
noite e saíram às cinco da manhã! Várias vezes tentei fazer-lhes
compreender que tinha de me levantar cedo. 0 Zé Jacques,
que ia pondo achas no lume, respondia-me em tom conselheiral:
- Passe as missas para as seis da tarde. Goze as manhãs
na cama e receba os amigos. Verá que assim a freguesia aumenta. Beba-lhe mais
um copo e coma uma isquinha de presunto que isso passa. Eu amanhã trago-lhe
mais lenha. Num tenha medo, caramba!
Tive de concordar, também não tinha outro remédio. Abri
mais três garrafas que eles beberam como verdadeiros apreciadores. Aquela
sem-cerimónia fez-me pensar no primitivismo da situação e ao que eu tinha
descido. Estava desolado pela minha impotência, e mais desolado fiquei quando
o Serralho, que até ali se tinha comportado mais ou menos bem, se voltou contra
mim, esquecido da razão da minha atitude.
- Estive cá a pinsar.
- Queres dizer: a destilar.
- A destilar ou a pinsar tudo é
igual. Eu cá digo aquilo que sinto e não aquilo que sei.
- Que é que tu estivestes a pinsar,
meu brutinho? Vê-se logo que na terra deste animal só há burros e carvoeiros e
logo por pouca sorte este não é carvoeiro.
Todos rimos da fala do Zé Jacques.
O Serralho continuou.
- Pois é, estes tipos foram capazes de inventar estas coisas
do pitrólio para nos tramarem e o padre ajuda-os:
entretém-nos com papas e bolos e come-nos a ideia. 0 que o senhor quer é
ca gente lhe aqueça a casa, lhe corte o cabelo e
lhe deite meias solas nos sapatos por uns míseros oitenta ou noventa escudos...
- Cala-te ingrato
malvado! Só a bebedeira te deixa falar assim.
- Fala o imbecil! e é bem certo o ditado:
- És um incivilizado que acreditas em tudo o que te dizem...
- Ó pá, não sejas malcriado. Já ofendeste o padre e agora
metes-te comigo? sempre gostaria de saber o que significa a palavra
incivilizado para ter a certeza que não estás a chuchar comigo.
- Ó pá, não lhe ligues - disse o Zé Jacques
- este tipo tem a mania das inculturas, dos incivilizados
e do raio que o parta, com a licença aqui do senhor prior, que eu já estou
farto de vos aturar a todos sem ofender o dono da casa que me parece boa pessoa
e tem uma pinga de trás da orelha.
- Mas eu quero saber o que é incivilizado ou daqui num
saio até que isso se esclareça.
0 Zé Jacques pôs-lhe a mão no
ombro.
- Eu, noutras coisas sou negativo, mas na minha ideia...
civilizado é o animal que come bem todos os dias e toma banho dia sim, dia
não, e muda de camisa e de ceroulas. Incivilizado é aquele que só toma banho
quando nasceu, quando vai às sortes e quando morre.
- Ai o bruto que nos ofende! Olha que eu tomo banho todos
os meses, ouviste! Num ando pra’qui a eslavachar o corpo a toda a hora porque isto não é
nenhum bacalhau para estar de molho! E a água também tem de se poupar, pois
intão! Olha que estávamos bem arranjados; sem água e sem pitrol,
devia ser bonito!
- E se fossemos tomar um pouco de ar fresco? Não sei por
quê sinto dores de cabeça - disse eu conciliador.
- É este malvado que Ihe vende
carvão de azinho em vez de carvão de choca.
- Está calado! Tu é que me pareces uma bela choca! Isto
não é um fígaro é um carrasco! E querias
tu "imigrar"!
Saímos e lá os meti um a um em casa conforme pude, não queriam
ficar, mas convenci-os usando um pouco de manha e muita dialéctica, o Serralho
não ficou conformado. Senti que ele me lançava as culpas da sua situação.
Deitei-me e julguei que não pregava olho até dizer a missa
matinal. Os problemas daqueles homens eram demasiado grandes
VI
0 doutor Palhanca encontrava-se
invariavelmente no café. De manhã, pelas 10 horas, pedia a bica, lia o jornal
e dava consultas gratuitas a quem aparecesse e não o fizesse levantar. Da
parte da tarde, entre a uma e um quarto e as duas e meia, no mesmo local,
fazia uma sessão de acções e moedas. Eu, raramente por ali aparecia porque
não tinha dinheiro para gastar nestas doenças lucrativas. Ia juntando umas
moeditas que o Mário Gonçalves e o Mourato me ofereciam.
0 médico, o Juvenal e o Vítor Godinho insistiam comigo para entrar nas acções..
Como resposta lançava-lhes um sorrizito amarelo.
Sorriso de alguém que tinha largado tudo para com mais segurança se dedicar
a Deus. Devo dizer, porém, que esta adaptação me era extremamente difícil
e que eu fazia um sacrifício ainda maior para lhe resistir.
No dia 12 de Abril, o médico fazia anos e veio
visitar-me. A chave, como de costume, estava na porta. Ele entrou e percorreu a
casa sem me encontrar.
«Devia ter avisado - disse a meia voz, depois como entrasse
no quarto e o visse num pandemónio de livros, revistas e recortes de jornais
espalhados de tal maneira por todo o compartimento que ele não conseguiria
entrar se não os pisasse, meteu o pé no monte que lhe pareceu mais sólido
e atirou-o ao ar. Apanhou três recortes «Roda Livre de Francisco Mata», «Canal
de Crítica de Mário Castrim» e «Percursos,
crítica de cinema por Eduardo Prado Coelho». Leu algumas linhas de
cada um e devolveu-os à selva.
- Ah! - exclamou satisfeito, enquanto se dirigia para a
sala de estar que ainda se encontrava em pior estado. A única coisa de bom
que tem este desagradável casarão, sem uma alcatifa e sem aquecimento central,
são as vistas, os livros e os recortes dos jornais.
Que vejo eu? Este maroto Iê versos
e garatuja para aqui umas notas sobre alguns, deixa-me cá ver este:
«Não se perdeu teu sangue generoso,
Nem padeceste em vão, quem quer que toste
Plebeu antigo, que
amarrado ao poste
Morreste como vil e faccioso».
«Quem me dera voltar àinocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas
Despir o vão orgulho, a incoerência,
Mantas rotas de estátuas mutiladas!”
Oh, Florbela como me sentiria feliz por te ter conhecido
e olhado. Com quem terias aprendido a dizer as tuas desgraças, os teus sonhos
de ideais desfeitos, os teus amores sublimes, incompreendidos...
Sentou-se, o livro, pendente das mãos, caído entre as pernas.
Sentiu-se triste, hienamente triste, como ele diria,
apossara-se dele o desprendimento do mundo e com os olhos marejados de lágrimas,
a muito custo, leu mais alguns autores: Natália Correia, António Salvado,
João Palma Ferreira, Augusto Abelaira, Francisco
Rebelo, Natércia Freire, Bernardo Santareno, Maria Judite de Carvalho, Amândio
César, José Gomes Ferreira, José Valle de Figueiredo,
Fernando Namora, Virgílio Ferreira, Oliveira Martins, Filipe Neiva, Nuno Judice,
Maria Manuela Couto Viana, Manuel da Fonseca, Araújo Correia, Fernando Pessoa...
«Aos deuses peço só que me concedam
0 nada lhes pedir.
A dita é um jugo
E o ser feliz oprime
Porque é um certo estado»
Quando tentei acordar o médico ele olhou-me com ar de louco
e eu assustei-me pelo que dali saísse.
- Bem-disposto?
- Nota-se.
- A falar verdade nunca o vi pior.
- Pior que isto? Bem estava perdido! Mas que maluqueira é
esta de ter só autores portugueses em casa?
- 0 senhor só viu os Portugueses, na divisão ao lado
estão os estrangeiros, quer vê-los?
- Deus me livre! Já não leio um livro há uns bons seis
meses!
- Só pensa nas acções e nas moedas.!
- Nem só, embora aqui traga uma que me vendeu o Silvino
que é um pequeno tesouro.
- Ainda um dia lhe confisco as moeditas todas, as venda e
dou o produto aos pobres.
- Deixe-se de idealismos baratos. Hoje já não há pobres,
homem! Há os indivíduos que trabalham e aqueles que querem viver à
custa dos outros. Deixe-se disso! Pobre
sou eu que sei o que quero e não consigo alcançar o que desejo.
- Já me esquecia de lhe dar os parabéns! Conte muitos...
- Foi precisamente por isso que cá vim. Quer vir jantar
comigo?
- A sua mulher conta com mais este garfo?
- A minha mulher janta com os miúdos e nós vamos
sair desta pasmaceira. Vão connosco o Guterres de Carvalho e o Vaz
Antunes, mas também lhe digo: se não fossem eles já daqui não saía;
agarrava-me aos seus livros, comíamos qualquer coisa e ficávamos por aqui.
- Bem podia apertar a barriga. Tenho ali três pasteis com
cheirinho a bacalhau comprado por preço de lombo de vaca, que nem davam para o
senhor nem para mim. Deixe lá os livros para outra altura que eles
têm tempo...
- Devia ter vergonha de falar assim. Um padre! Um padre
sobrepor os prazeres da carne aos dos espirito,
parece mentira!
- Que oiço? Não é o padre com certeza. 0 homenzinho bom
que dá tudo aos pobrezinhos, coitadinhos...
- Sempre gostaria de lhe perguntar se com o estômago vazio
há boas ideias e pensamentos simpáticos?
-Quem é o padre, sou eu ou e o senhor?
- Sou eu, mas...
- Não preciso mais. Estou suficientemente elucidado.
Agarre lá no bibe e venha daí, vou empanturrá-lo com montanhas de comida e com toneis de vinho, talvez assim as ligações entre os altos e
os baixos fiquem normalizadas.
Com o médico pensativo, o Vaz Antunes sem inspiração, o
Guterres de Carvalho com dor de dentes e eu com uma fome macabra, o jantar
foi uma lição de indelicadeza e desinteresse para com o homenageado. Estava
nos doces, e ainda muito sôfrego, quando o doutor Palhanca
se me dirigiu:
- Os seus livros... fiz mal em lhes ter pegado. Fiquei
mal disposto.
- Porquê, não gosta de escritores contemporâneos?
- Não é nada disso. Tocaram-me a fibra sensível, foi o
que foi.
Notei que o médico estava muito mais corado que o normal
e pressenti que ia ter
- Sou um louco por Florbela Espanca e estou terrivelmente
apaixonado pela mulher do meu amigo.
Eu engasguei-me com o doce de amêndoa e aos solavancos
disse-lhe:
- N...ão pen..
.se em disparates.
- 0 senhor é o único a saber, tome isto como se fosse em
confissão.
- Mas a sua mulher, os seus filhos. Não gosta de sua
mulher?
- Não a posso aturar. Irrita-me, fala desnecessariamente.
- Não me diga que o senhor e D. Madalena mantêm relações?
- Só encontros de amizade. Queremo-nos muito!
- Doutor! Não pode fazer isso.. A sua mulher estima-o. Os
seus filhos estão numa idade difícil. Clemente é seu amigo...
- Cale-se! Não lhe pedi conselhos. Estou-lhe a contar o
que nunca contei a ninguém e o senhor interrompe-me? Tudo por causa dos seus
livros. Aquela Florbela desnorteia-me, põe-me exageradamente sensível e se não
tivéssemos vindo para este lugar a cinquenta quilómetros do meu pensamento,
tenho a certeza que hoje tinha de ser. Chegava ao pé de Clemente e dizia-lhe:
meu caro, tem paciência, gosto da tua mulher e ela vai comigo. Tu desculpa, sou
um chato!
- E, se ele não desculpasse?
- E D. Madalena está de acordo?
- Está. Ela está pronta a deixar tudo para vivermos uma
vida diferente em qualquer parte do mundo.
- Não posso acreditar. Uma mulher com a cultura de D.
Madalena não pode abandonar um filho amoroso que necessita dela e um marido que
a adora.
- Abandona tudo.
- Desculpe doutor, mas não percebo! Lá que o senhor queira
deixar a sua mulher porque ela fala demais... vá que não vá, ainda éuma
razão, fraquita sim, mas é uma razão! Agora D. Madalena abandonar o marido
e o filho... por sua causa... francamente... não vejo vantagens... descul...
- Vá para o diabo com as suas desculpas! Já lhe disse que
não preciso de conselhos, preciso de ajuda.
- Mas que ajuda?
- Sei lá!
- Então, o senhor que é o interessado, não sabe, e quer
que eu saiba?
- Padres! E são vocês padres! Não resolvem um pequeníssimo
problema do espírito e querem salvar o mundo!
Pff!
- Vejo mais um problema de carne do que de espírito.
- Espírito.
- Carne.
- Espírito.
- Carne.
A viagem de regresso pareceu-me interminável; o Guterres
e o Vaz Antunes ressonavam como duas debulhadoras e eu e o doutor incapazes
de dizer uma palavra.
VII
Diogo Palhanca teve um sobressalto.
A mulher olhou-o com firmeza, ele sentiu um pequeno calafrio e murmurou com
a voz mais suave que pôde arranjar:
- Ainda levantada?
- Ainda - respondeu secamente D. Matilde.
0 médico tirou o casaco.
- Espera - disse-lhe a mulher.
- Não me posso despir?
- Não. Estiveste vestido até estas horas, também podes
continuar por mais algum tempo.
- Mas a que propósito vem este despropósito? - perguntou
o médico tentado fazer graça sem sucesso.
- Foste ver algum doente?
Diogo Palhanca não respondeu e
D. Matilde, insistiu:
- Foste?
- Penso que não tenho que te dar satisfação dos meus
actos, ou tenho?
- Eis o senhor, o macho egocêntrico com todas as suas
prerrogativas ancestrais.
- Agradeço-te que não me aborreças. Estás mal disposta e
eu que te ature, não é assim? Enganas-te, não consegues irritar-me - o médico
atirou o casaco para cima de uma cadeira e dirigiu-se para o quarto de banho.
D. Matilde levantou-se e não o deixou passar.
- Tens de me ouvir, tens de saber por que estou mal disposta!
Diz-me a verdade, foste ver algum doente?
- Fui - respondeu o médico tentando passar.
- Mentes.
- Não tenho satisfações a dar-te. .
- Mas eu tenho. Tu, o homem, podes fazer o que quiseres,
teres os teus amiguinhos ou as tuas amiguinhas, podes vir a cheirar a vinho
ou a perfumes duvidosos, mas eu não. Está-me vedado, por ser mulher, a libertinagem.
E para mais... mulher casada não deve, sob pena de excomunhão e queimada
- Cala-te! Foi para me enervares, para dar cabo de mim e
da minha paciência, que ficaste aqui até estas horas?
- A estas horas? São as horas a que tu entras para casa.
- Não sejas idiota!
- Tens razão. Fui sempre uma enormíssima idiota! Idiota a
partir do momento em que acreditei em ti e me sujeitei a viver sob o despotismo
de um marido que aos olhos da sociedade passa por um santarrão!
Como se pode ser tão hipócrita?
- Não exageres. Par favor deixa-me passar...
- Tens de me ouvir. Não foi para me calar que estive até
estas horas à espera do meu senhor.
- Um dia és a nossa desgraça.. .
- Nas tuas mãos sempre fui desgraçada. Desde o primeiro
dia em que nos namorámos os teus ciúmes nunca mais me largaram. Desprezaste
sempre a minha dignidade e só o teu ponto de vista tem de prevalecer. Tu não
vês na mulher um ser pensante, vês um objecto que tem de ser tratado a chicote.
- Infelizmente nunca o usei...
- Usas sim, usa-lo todos os dias e mais assiduamente de
há um ano para cá. Usa-lo no teu olhar, nas tuas palavras, na tua revolta contida.
- Não estou para discussões a estas horas!
- Não te convém ouvir meia dúzia de verdades, não é assim?
Terás de ouvir.
- Não tenho! Sai da minha frente...
- Nem que eu acorde a casa toda hás-de
esta parva, esta rotineira, esta Maria vai com as
outras... estás muito enganado a meu respeito e a respeito das mulheres.
- Muito.
- E estás! Tu confundes a docilidade feminina, o carinho
que ela tem pelos pequenos nadas, com a estupidez, a subserviência. Como te enganas; qualquer mulher
vulgar tem muito mais para oferecer do que tu com a tua prosápia, a tua infalibilidade!
Tu sim, tu és um falso ignorante. Deram-te um canudo, chamam-te senhor doutor
e tu arrogas-te o direito de vexares a tua mulher, de criticares os teus filhos,
de vires às horas que te apetece, sem a mínima consideração pelos teus
lacaios...
- Já acabaste? - disse o médico, sentado na cama e com a
cara tapada pelas mãos.
- Não.
- Então vê se te apressas pois estou a cair de sono.
- Só uma coisa te agradeço durante estes anos em que
vivemos juntos...
- As noites de volúpia...
- Infeliz libidinoso! Quem te julgas tu? Agradeço-te o
teres-me aberto os olhos. Tenho a certeza que as minhas filhas...
- Nossas.
- Minhas. Tu não puseste, para isso mais do que um bárbaro
prazer... fizeste o mesmo que qualquer cão ou gato vadio faz. E ainda mais:
nem tu podes ter a certeza se elas são tuas filhas.. Toda essa arrogância,
essa vaidade ficaria desfeita em segundos se... eu quisesse.
- Matilde! Estas a ultrapassar todos os limites. Olha que
eu não sou...
- Está descansado que não és... embora não mereças,
escusas de ficar na dúvida. Mas as tuas filhas serão educadas de maneira
diferente do que eu fui. Não quero que os maridos façam delas gato sapato.
- Tu não sabes o que dizes.
- Sei muitíssimo bem. Elas hão-de ter o mesmo direito para
escolher o carrasco como, vocês têm para escolher a vítima. Pelo menos,
sempre terão mais algumas oportunidades. . .
- Tu deves estar doida! Queres que elas sejam tomadas
por...
- Preconceitos de mau julgador. Quero que elas sejam livres.
Percebe: livres! Ou toda a tua ciência, todos os teus livros, todo o teu inchaço
pseudo cientifico não te abriu os olhos? O instinto do homem macho prevalecerá
sobre o instinto do homem pai? Cego egoísta! Para ti, embora tenhas filhas,
elas terão de continuar a ser escravas, a esperar que os seus futuros donos
as escolham e lhes façam toda a casta de desconsiderações sem que elas possam
esboçar um simples gesto de autonomia! Para ti, elas têm uma importância subsidiária...
- Trato-as da mesma maneira como trato o rapaz. Sabes muito
bem que o crítico pelos seus exageros e que o castigo.
- Há sempre uma diferençazinha.
- Mas tu, não fazes o que queres?
- Se fizesse...
- Ter-me-ias trocado por outro - disse o médico
esforçando-se por rir.
- Estás enganado. Embora pareça, não sou mulher para novo
sacrifício. 0 teu vazio deve ser semelhante ao dos teus congéneres.
- Pronto. Já disseste tudo. Para terminar tu queres saber
se eu te amo, eu digo-te que te amo e vamos para a cama.
- Não vamos não. Tu não gostas de mim. .. tu gostas das
tuas comodidades, o teres a tua mulher quando te apetece, o satisfazer os teus
instintos. Conheço-te melhor do que pensas. Porque dizes tantos disparates à
Madalena?
0 médico, apanhado desprevenido sentiu encher-se de
calores. D. Matilde continuou;
- Estou farta! Não aguento mais! Não tenho mais paciência
para servir de reclamo, só de fachada. Para os outros somos um casal modelo,
para nós somos um inferno!
- Matilde, tu não estás bem.
-Tu é que não estás e cada ano pioras.
- Não exageres minha queridinha.
- Não sejas cínico! Não tens consideração por mim nem
pelos teus filhos. Não vieste... tens menos respeito por mim do que pela mulher
a dias. Rebaixas-me, fazes-me sentir uma intrusa na tua vida.
- Tu perdeste a cabeça. Amanhã...
- Hoje. Terás de me ouvir até ao fim; ainda tenho muito
a acrescentar já que me
- Não te posso louvar pelas asneiras que cometes!
- E tu? Nunca erras?
- Raramente.
- Coitado, infeliz.. De hoje em
diante vais viver à tua vontade. Vais tu mostrar os teus predicados
de homem sabedor. Deixo-te com os teus amigos, com os teus parasitas, com
todos aqueles que aceitam os teus sorrisos amáveis, as tuas boas palavras,
as tuas anedotas... São tão engraçadinhas as tuas anedotas! Tenho pena que
tu próprio não as oiças...
- Matilde!
- Pensando bem... és um homem estranho, uma espécie de
homem camaleão.
- Matilde. Tenta compreender a minha posição...
- A tua fachada, queres dizer. Como ela é hedionda a tua fachadazinha; muito perfeita, muito limpinha...
- Estou a cair de sono.
- Só para tua mulher ou para os teus fllhos
não tens sorrisos ou palavras amáveis; entras e sais como se eles não existissem
ou fossem o menor dos teus trabalhos neste mundo.. .
- Alguém tem de ser sacrificado...
- E por que não tu? Ou a mulher terá de ser sempre uma
mercadoria que está sujeita à lei da oferta e da procura? Que terá de se
subjugar a códigos que vocês homens, homenzinhos, nunca respeitam?
- Eu tenho uma missão a cumprir...
- Criança inconsciente! Tu identificas-te com todos os grandes
pensadores que, como tu, relegam a mulher para um pIano
secundarissimo depois de terem arranjado uma série
de sofismas; como sexo fraco, menor capacidade mental...
- Mas eu te...
- Já sei. Mas para teu sossego; todos temos uma missão a
cumprir. Contudo, para a cumprires não precisas de calcar os que te rodeiam.
Nunca tens uma palavra amável...
- Eu penso em vós... simplesmente... detesto falar, dizer
vulgaridades...
- Não gostas de falar, tens de pensar nos teus doentes enquanto
comes, enquanto estás junto da tua família... mas logo que sais de casa nunca
mais paras as conversas, nunca mais
te lembras dos teus queridos doentinhos e da tua estranha missão! Como é flexível
esse teu caracter, esse teu altruísmo... esse teu
«faz» esse teu «podes fazer» sabendo, que eu não faço. Essa imposição diluída,
mas sistemática, sobre a mulher pressionando-a sempre a fazer o que vocês
desejam.
- Estou a ver que tens seguido as palestras do Fernando
Patrocínio sobre a defesa dos direitos da mulher.
- Tenho-o ouvido tanto como tu.
- Como vês, sempre há alguém que toma o vosso partido,
vocês é que não sabem aproveitar as oportunidades... e a propósito, de
oportunidades, aproveito esta para me ir deitar.
- Não, na minha carna!
- Deito-me onde sempre me deitei.
- Saio eu.
- Matilde, por favor, não me faças perder a paciência.
- Podes perdê-la. Já não é a primeira vez,
conheço bem o conteúdo das tuas salutares palavras, das amáveis frases para
com tua mulher, para com os teus filhos. Embora tenhas melhorado um pouco,
de vez em quando descarrilas... não consegues ter nível.
- Deixa lá, tens tu por mim.
- As tuas respostas vêm do berço; a camada de verniz colada
no liceu e na faculdade salta imediatamente ao veres-te atacado... a tua cultura
assenta em utópicas quimeras que tu criaste para deleite pessoal, sonhas o
endeusamento. Tu, na realidade, és um narcisista, um cobarde e um boçal...
- Tu queres causar a nossa desgraça e eu não sei o que me
contém.
- Escusas de aparentar esse ar de crocodilo furioso.
Aquilo que tenho para te dizer tens de ouvir: és narcisista porque só te vês a
ti, os outros são simples sombras que tu fazes desaparecer ou que tu compras.
És cobarde porque só atacas de frente a tua mulher e os teus filhos. És
boçal...
0 médico, muito pálido, agarrou fortemente a mulher pelos
braços.
- Deixa-me! És um bruto! Não me calo, não, não e não!
- Ou te calas... Não me chateies! Ouviste!? Não me chateies!
- Não me tens o mínimo respeito! Oh, meu Deus, meu Deus!
Já não consigo suportar mais esta pantomina! Não tens o mais leve decoro e
ameaças usar a força bruta. Pois usa, tens-me à tua disposição. Dá
saída aos teus instintos bestiais! Dá lugar à tua sofisticada educação!
Para mim não tens que fingir. . . os teus rasgos de pretenso e efémero cavalheirismo
ficam-te agarrados aos nastros das cintas de algumas das tuas clientes.. .
- Pretendes irritar-me? Não consegues mais do que ensonares-me, se é isso que desejas... atinges plenamente
os teus fins...
D. Matilde continuou:
- Mal entras em casa tudo muda; não mais camada de verniz,
não mais simples resíduos da mais leve educação... Tudo desaparece como por
encanto, tudo fica à entrada da porta.
- Vai-te deitar. Estás cansada.
- Sonhei felicidade, imaginei um mundo novo, um mundo de
luta, de luta honesta, onde tu entrasses, onde eu entrasse... enganei-me.
- Deixa-te de pieguices sem nexo.
- Sou uma parva.
- Belo! Agora choras.
- Sim, choro. - respondeu D. Matilde tirando o braço que
o marido lhe pusera sobre o ombro. Continuou entre soluços:
- Choro, porque já não sei se te amo ou se te odeio... porque
já nem sei o que tu representas para mim. 0 meu espírito
está desfeito. Completamente desfeito! E foste tu! Tu que me transformaste!
Tu que apregoas a liberdade, a compreensão, o amor!... Hoje foi o último
dia em que a tua mulher te aturou mais esta falta de respeito... esta obstinação
com que tentas reduzir-me a um simples nada.
- Matilde, por que és precipitada? Por que vês só por um
lado?
- Talvez... talvez tenhas razão e só veja por um lado.
Assim é: tu tens sempre razão. No dia dos teus anos afadigo-me a preparar-te
uns mimos, alguns carinhos... os teus filhos trazem-te presentes, ensaiam uma
pequenina canção com todo o amor e tu... esse tu egocentrista,
esse coração bondoso que tanta gente admira... não apareces, não dizes uma
palavra.
- Matilde!
- Não consigo mais. A peça teatral, o drama a... tragédia, a comédia
que vimos representando há quase dezasseis anos tem os dias contados... a
figura secundária deixa o papel e abandona o palco!
VIII
Encontrei o médico quando me dirigia para a aldeia.
- Madrugou!
Ele olhou para mim e eu reparei em duas rugas profundas
que Ihe marcavam a fronte e lhe davam aparência de
mais velho. Como ele não me respondesse,
continuei:
- Venha daí à missa.
- Só se eu estivesse xé xé.
- Não sei porquê! Tratar do espírito
nunca fez mal a ninguém.
- 0 melhor é calar-se. Eu sei muito bem qual é o tratamento
que o senhor dá ao espírito. Acabe lá o,
servicinho e vá ter ao café.
0 Serralho aproximou-se de nós e com o chapéu na mão
dirigiu-se ao médico.
- Eu desejava dar uma palavrinha a Vossa Excelência.
- Não me digas que o fígado te pregou alguma partida?
- Antes isso. É a minha irmã, coitada.
- Está cheia? - e o médico fez o gesto com as mãos.
- Não senhor! Também era melhor. Já está viúva há mais de três anos! Havia de ser bonito!
- Maleitas?
- A minha irmã está com os espíritos, senhor doutor.
- Então bateste à porta errada, homem! 0 que trabalha
com espíritos não sou eu, é aí o senhor prior. Esse é especialista...
0 Serralho olhou-me indeciso. Eu disse para o médico:
- Vá lá ver o que se passa que eu espero-o no café.
0 medico olhou-o de alto a baixo.
- Vamos embora, assim como assim, sempre é preferível aturar
um doido do que esperar por um padre. Não se esqueça; o mais tardar às
dez, no café.
Já no carro o médico perguntou ao Serralho:
- Conta lá isso, mas deixa-te de parvoíces.
- Eu não posso contar mais do que sei, senhor doutor! Entraram
os espíritos há dois dias e ela não faz mais do que berrar que nem uma cabra:
uumm...aaa...uu... aa.. .eee.
Levanta os braços, arranha a cara, arranca os cabelos, rebola-se pelo chão...
não há duvida! É o que diz a ti Maria Mijona, é o que diz toda a gente:
são os espíritos!
A casa onde
Serralho, a irmã, a mãe e os filhos viviam era um tugúrio de uns oito
por dez metros onde as camas se misturavam com os tachos da cozinha. De um
canto escuro vários gemidos conduziram o médico até à mulher.
- Há aí mais um candeeiro?
- Não serve uma candeia senhor doutor?
- Traz o que houver.
0 médico apertou ligeiramente as faces da rapariga e esta
lançou gritos aflitivos.
- Tragam-me uma toalha.
Ao fim de algum tempo um dos filhos do Serralho trouxe um pano lavado, mas cheio de
buracos.
- Isto serve, senhor doutor?
0 médico não Ihe respondeu, agarrou
no pano e disse para a doente:
- Abra a boca. Não tenha receio. Isso mesmo. Abra mais.
0 médico meteu-lhe os dois dedos polegares na boca e deu
um pequeníssimo esticão. A rapariga deu um grito medonho, atirou com a roupa da
cama e sentou-se no leito. Os assistentes, que eram muitos, saíram porta fora
atropelando-se uns aos outro, e gritando para o médico:
- Fuja, senhor doutor, qu’ela
estrafega-o!
A rapariga olhou o médico com as lágrimas a correrem-lhe
pelas faces.
- Oh senhor doutor! Oh senhor doutor! 0 senhor é o meu
salvador! Cem anos que viva nunca mais o hei-de esquecer! Ah, senhor doutor,
pensava que nunca mais tornaria a falar, e estes burros... estas bestas...
- Pronto, pronto - dizia-lhe o médico tentando apagar-lhe
o ódio que os olhos da doente expeliam. Mas a sua chama era superior aos bons
conselhos.
- Estes grandessíssimos animais julgavam que eu estava possuída
do demónio, grandes burros! Por isso é que a gente há-de trazer sempre a canga
em cima?! Ainda acreditamos nestas patranhas, e é o que se vê! Deixavam-me aqui morrer esganada,
os malditos! Eu, nem tenho nada que lhe possa pagar tão grande favor, senhor
doutor, mas... sirva-se de mim pró que quiser.
- Esta bem, está bem, mas escusa de me beijar as mãos.
- Eu devia beijar o chão que o senhor pisa!
0 médico desprendeu-se da rapariga, deu-lhe uma palmadita
nas faces bem desenhadas e disse-lhe já ao sair da porta:
- Quando precisar de alguma coisa apareça pelo
consultório.
Eram precisamente dez horas quando o médico chegou ao café.
0 empregado trouxe-lhe a bica e o jornal, eu não me contive:
- 0 que tinha ela? .
- Uma luxação dos maxilares.
- É grave?
- É sobretudo doloroso. 0 doutor Gomes da Silva contou-me
que na sua região isto é frequentíssimo. Alguns pacientes chegam a rebolar-se
nos excrementos dos animais e ficam ali até que o médico apareça.
- Hoje a sua mulher não foi à missa. Não me diga que a proibiu?
- Você está doido! Quem é que hoje em dia consegue fazer alguma coisa desses
vaidosos animaizinhos que se enfeitam e se pavoneiam em frente dos homens,
para terem a reforma aos vinte e poucos anos e nós, os escravos, os burros
de trabalho, temos ainda que lhes suportar todas as más disposições e andar
muito direitinhos porque senão chovem as ameaças do faço isto ou faço aquilo!.
Sabe o que lhe digo: nunca me devia ter casado!
- Mas o senhor, ontem...
- Esqueça o dia de ontem. A Madalena confunde-me: gosto de a abraçar, de
lhe beijar as mãos de a ter junto de mim, penso nela constantemente., mas
quando fazemos as nossas escapadas e nos encontramos a sós e a posso possuir...
não consigo. Perco a força... sei lá! Arranjo mil subterfúgios como um
impotente envergonhado e ela regressa sempre de mãos vazias. Meu Deus! Tenho
tanta necessidade de a sentir junto de mim e há uma força estranha que impede
que isso aconteça. Eu sei que ela me deseja!
0 médico tapou a
cara com as mãos e eu vi nele toda a angústia do momento por que estava
a passar. Só uma grande necessidade lhe faria invocar o nome de Deus. Vi-o
tão abatido que me deu pena. Tentei animá-lo, embora o fizesse desajeitadamente:
- Não deve pensar em D. Madalena. Para quê destruir dois
lares? Essa força que o impede de consumar o último acto chama-se razão...
- Não arranje paleativos para
aquilo que nem eu próprio compreendo. Os padres sempre tiveram o hábito de
dar sentenças sobre assuntos de que não fazem a menor ideia, o senhor enferma
do mesmo mal! Pensam-se enviados do Senhor e como enviados... naturalmente
e por acréscimo investem-se na categoria de inspirados!
- Mau, mau! Eu só o queria ajudar!
- 0 senhor não ajuda nada. 0 senhor só baralha. Ajuda
tive da miséria que rodeia o Serralho. Essa sim, vai-me fazer magicar durante
uns dias.
0 médico levantou-se, pagou os cafés e foi-se embora.
Durante uns momentos fiquei a olhar a porta por onde ele saíra, depois disse
para mim: Mas que ligação poderá existir entre a miséria em que vive o Serralho
e os amores furtivos entre D. Madalena e o médico?
IX
Às sete da manhã começou o alvoroço; os foguetes
sucediam-se num ritmo metronómico e a população
acompanhava-os. Os autocarros da «Rodarte» pareciam
formigas no seu vai e vem, apressados em ligar a cidade ao local da festa
situado a quatro quilómetros. 0 administrador da empresa, senhor Quirino viera ele próprio ver como as coisas corriam.
Viu-me por detrás dos vidros.
- Ainda aí?
Abri a janela e respondi-lhe com outra pergunta.
- E o senhor, por cá?
- Vim à festa. Quer ir comigo de carro?
- Não, obrigado.
- Depois não tem transporte! Na cidade só ficam os muito
velhos e os doentes.
- Tenho de lá estar para a missa do meio dia.
- Se quiser que o mande buscar...
- Obrigado, não vale a pena incomodar-se?
- Não incomoda. Até logo.
- Até já.
As ruas principiaram a ficar desertas e quem passava
fazia-o enlatado, só alguns miúdos corriam atrás das canas dos foguetes. Aquilo
preocupava-me. Da janela gritei-Ihes:
- Vocês, não vão à festa?
Os rapazes pararam um instante, olharam para mim, e correram
de novo sobre as canas sem dizer palavra. 0 Serralho e a mulher vinham a passar.
- Chó burro! Então o senhor
prior não vem? Olhe que levamos aqui merenda que ainda chega para mais um!
- Lá irei. Não são os vossos filhos que
aí andam?
- Esses almas...
- Vê lá que dizes, homem! Hoje é dia de festa.
Olhei, para a mulher do Serralho pequenina e gorda ela parecia
um açafate. 0 burro, luzidio e bem tratado
zurrou o seu parecer.
0 SerraIho coçou a cabeça,
abriu os braços: - Que lhes hei-de fazer!
- Podem-se desgraçar.
- Que hei-de fazer, senhor Prior? Brinquedos não lhe posso
dar, prendê-los não sou capaz... entrego aqueles valdevinos ao Deus dará.
Eles lá se vão criando. Se eu "imigrasse..." o Coxo foi para França
ainda não há um ano e aí está num belo espada. Quando foi nem dinheiro
tinha para fósforos!
- Teve sorte.
- Teve coragem. Eu é que não sou capaz
- Pedes à Senhora do Incenso. - Disse-lhe a mulher.
- Santos!
- Eu bem digo. Ele não vai porque não tem Fé, não é
assim, senhor Prior?
- Isto há-de melhorar... Com dezasseis filhos..., e agora
com o abono de família...
Ainda não tinha acabado a frase quando chegou o Zé Jacques.
- Bom dia rapaziada! Ai o senhor prior estava aí? Nem o
tinha vislumbrado.
- Bem se vê que é dia de festa. Este animal vem a falar
caro.
- Cala-te meu basbaque. Ainda não sabes que ando em lições!
Quando chegar às Francias e trouxer um espada
daqueles que dão cem à hora até te desbarretas.
- Não digas asneiras! Vamos à festa. Tu
- Que diz o senhor prior?
- Digo que os vossos filhos nunca mais param
de apanhar canas. Levem-nos convosco.
- Esteja descansado. Isto vai tudo a toque de caixa. Mas
não se esqueça, tem de dar uma ajudinha para alcançarmos os papéis.
Fiquei a olhar as pessoas e os burros. Deus me perdoe, mas
as afinidades entre uns e outros eram flagrantes. A mesma passividade, a mesma tristeza, o mesmo olhar dócil e resignado.
Abanei o espírito e compreendi que estes
eram os restos do passado. Dentro em pouco, tal como o médico afirmava, ou
aquilo se transformava numa coutada ou a civilização entrava em catadupas
e nivelaria a tristeza e a alegria dos povos. Perdia-se a beleza da simplicidade,
do viver ingénuo e sem preconceitos para o viver sofisticado.
- Viu passar o Serralho? - perguntou-me o barbeiro.
- Vai aí à frente com o Zé Jacques.
- Não pode andar o «Roque sem a amiga». 0 senhor não vem?
- Ainda tenho tempo.
- Nós combinámos merendar os três. - Achei interessante
aquele «três» dimensional. Os três homens representavam as famílias num conjunto
de trinta e sete seres incluindo os burros, pois eu tinha a certeza que estes
eram tratados com tantos ou mais cuidados que qualquer das pessoas.
0 barbeiro, olhou para os lados.
- Não diga a ninguém. Amanhã vou a salto para a França.
- Amanhã?
- Não queria faltar à festa. A gente nunca sabe se
volta. Acha que faço bem?
- Tudo depende...
- Até já sei algum francês: “Bon-jour,
merci”...
- Quem é o passador?
- 0 Serralho vai comigo até à fronteira.
- Ele não vai?
- Não. Aquele só tem garganta. Não diga nada a ninguém.
Fiz-lhe sinal que podia contar comigo.
- Vai a pé para a festa? - Perguntei-lhe.
- Tive de vender a bicicleta. É a vida. Se aquilo der para o torto... é a minha desgraça. Mas,
assim como assim, a fartura nunca foi muita... hei-de vencer.
Olhei-o com simpatia.
- Divirta-se na festa.
- Vai ser difícil. Está-me o coração a chorar. Nem queira
saber o que isto me custa! Deixar 0 país, a mulher, os filhos... é
certo que nós somos gente em todo o lado e que o mundo pertence a todos...
mas a nossa terra é sempre a nossa terra. Se fosse para o Brasil, para Angola
ou Moçambique sempre era diferente. A língua éa mesma! Agora para ali!
Bem, eu já sei dizer «Bon-jour e merci»,
mas conheço alguns que nem isso sabiam dizer quando para lá foram e hoje tem
bons carros e compraram boas propriedades. Eu não sei como eles se arranjam.
Também devo aprender. No corte de cabelo sempre fui dos primeiros... aquilo
não deve ser mais difícil.
- Se precisar alguma coisa conte comigo.
- Bem-haja
senhor prior. E, disto...
- Esteja descansado.
Fiquei a olhar os miúdos apanhar canas. Senti que alguns
dos petardos não rebentavam completamente. Aquilo começou a enervar-me, avisei-os
mais duas vezes. Como não me quisessem ouvir, desci as escadas, corri atrás
deles, dei dois bofetões no mais velho e terminou ali a caça. Depois fui à
festa e não mais me lembrei do que tinha feito.
Com tanto desejar esquecer o passado, tinha a sensação de
que vivia só o momento presente e até era verdade.
X
Estava a dizer a missa e a observar o Clemente.
Fora do circuito religioso ele devia ouvir-me através dos
altifalantes e seguir as minhas palavras com o olhar. Falei do «Filho Pródigo»
e fiz as comparações que achei necessárias sobre a saída, sem método, que
todos os dias se fazia para outros países.
- O senhor parecia o Velho do Restelo. - disse-me ele quando
o fui convidar para merendar comigo.
- E não tenho razão?
- Por que havia de pensar que o senhor tinha razão?
- O país esvai-se; isto é o nosso sangue que corre para
outras veias.
- Não seja ingénuo, padre. Cada um procura defender-se,
melhorar o seu nível de vida. Se estivesse nas mesmas condições tentaria fazer
o mesmo.
- Não fazia.
- Com o seu feitio? O senhor é um irrequieto. Não tente
enganar-me... e enganar os outros, o que é mais grave.
Olhei o Clemente como se o visse pela primeira vez. Nunca
o pensara tão combativo e muito menos interessado pelos problemas alheios.
- Nós somos um povo caseiro - continuou ele - mas não pense que somos mais estúpidos
que os outros. Vamos deixando correr o marfim mas sabemos muito bem em que
águas navegamos. Por isso, escusa de lhes acenar com a bandeira Nacional que
eles não vão ao que o senhor quer. Estou convencido que estamos na altura
de lavrarmos os continentes depois de termos lavrado os mares. Sofremos o
mal dos ciclos.
- Então é um povo de formigas?
- Chame-lhe o que o senhor quiser. Eu digo que é um povo
que não quer morrer.
- Mas quem olha para o senhor e o vê
- Diga, não tenha receio. Não me ofendo
- Nunca o vi sorrir.
- Quer dizer que eu sou um homem triste?
- Talvez.
- Bem. Sou mais pensativo do que triste. É verdade que não
rio por dá cá aquela palha, mas gosto de uma boa piada. Por outro lado tenho
razão, ou melhor todos devíamos ter razão para observarmos um ar mais sério
do que normalmente adoptamos.
- Ainda mais sério?
- Veja esta alegria, esta boa disposição que reina aqui
no arraial.
- Sim. Isto não lhe agrada?
- Pelo contrário, sinto-me feliz com a felicidade dos
outros, mas se esta gente tivesse
consciência do mundo em que vivemos não se comportaria
deste modo.
- Parece-me que o senhor estaria mais indicado para padre
do que eu.
- Não! Há demasiados inúteis para que isso me agradasse.
- Estou a estranhá-lo, Clemente.
- Está-me a conhecer. O senhor veio ao meu encontro
porque estava interessado em mim. Eu faço-lhe a vontade... e depois merendo
consigo. É uma maneira de lhe pagar o seu convite!
- Mas eu não exigi nada em troca.
- Li nos seus olhos.
- É muito perspicaz.
- Se o senhor pensasse que neste momento em que estas cinco
ou seis mil pessoas riem, comem e dizem chalaças, muitos milhões vivem na
miséria mais ignóbil e nunca conheceram o esboçar de um sorriso, o senhor
não vinha sondar a causa da minha tristeza.
- Como se engana, Clemente. Penso em todos eles e sou padre para que a minha contribuição possa ser mais eficaz nessa ajuda. Pode acreditar que não me julgo um inútil, antes pelo contrário. Do senhor eu podia dizer que é um indiferente embora me tivesse enganado.
- Não se enganou. Eu sou indiferente, porém, a minha indiferença é perante o quotidiano, o mesquinho, aquilo que não tem qualquer importância e as pessoas tomam como ofensas.
A conversa levou o assunto para o médico. Clemente não se alargou em considerações.
- Somos bastante diferentes um do outro, contudo, isso não quer dizer que não sejamos bastante amigos. Ele tem o seu feitio, eu o meu e não nos damos mal.
O barbeiro veio despedir-se, eu dei-lhe um abraço e desejei-lhe felicidades. Quando ele abalou o Clemente disse-me:
- Mais um.
Não lhe dei resposta, tentando cumprir a minha promessa.
- Evita calar-se. Toda a gente sabe e ninguém fala. O passador é o Serralho
- Isso todos nós podemos fazer sem sermos padres.
- Mais uma vez lhe digo: desconheço-o.
- Por lhe ser franco? Não tenho nada
- Há dias em que não aceita.
- Prefiro pensar a dizer meia dúzia de
- Nem todos podem ser intelectuais
- Mas todos podem ser coerentes com a sua força anímica.
Pensar que somos seres capazes de transformar o universo e gastarmos o tempo
discutindo frioleiras, não está no meu feitio.
- Olhe, estão a chamar-nos.
- Daqui não distingo quem seja.
- Parece-me o Serralho.
- Não, esse não se atreveria.
- Por que não?
- Por que não tem confiança com o senhor e muito menos comigo.
- É a separação por castas?
- Não. É a distância entre a ignorância e o conhecimento.
Se todos os Serralhos do mundo soubessem ler,
escrever e interpretar o mais simples dos pensamentos abalavam os complexos.
Nem eles teriam vergonha de falar connosco, nem nós desprezaríamos a sua
companhia.
- Admite um «Eles» e um «Nós» ?
- Admito. É a diferença entre o analfabeto e o indivíduo
culto. Mas isso não quer dizer que aprove. Estudo, penso a maneira como se
deveria debelar esta desigualdade entre os seres humanos. E é por isso que
- Acha-se superior aos outros.
- Não me compreende! Vê, porque não gosto de falar.
Acho-me igualzinho a cada um, simplesmente não converso só pelo prazer de
falar.
- É um «snob».
- Não. Sou um ser humano que me prezo de ter cabeça.
Quando todos os homens e mulheres souberem o lugar que devem ocupar neste
mundo, quando todos agirem segundo a razão e não como animais selvagens
ver-me-á rir, falar e dizer uma ou outra baboseira, mas enquanto o ódio cegar o
entendimento humano e só os mais fortes receberem protecção, não conte comigo.
Tinha razão. Vem aí o Serralho. Deixo-o com ele, até logo.
- O senhor prior não me viu chamar?
- Que queres?
- É a minha mulher.
- Está doente?
- Não senhor. Teve uma menina mesmo ao pé da capela.
- Então e agora, que queres que faça?
- Quero que a baptize.
- Não pode ser, homem. Estas coisas têm as suas regras.
- Oh senhor padre! - Disse-me ele com cara de poucos amigos
- Não me venha com tretas! Agora pode-se tudo. Só não se pode, o que não se
quer. Agradeço-lhe que me baptize a miúda.
Não tive outro remédio.
E ali, perante quase seis mil pessoas, abençoei e baptizei para os prazeres
e as alegrias do mundo a Maria do Incenso Neves da Conceição Serralho e como
padrinhos arrastei o Clemente e
a Senhora do Incenso, padroeira da cidade. No fim o Serralho inchado como
um balão disse-me:
- Acabaram-se as Francias. Já
botei as contas: dezassete filhos. Só de abono são três mil e oitenta escudos
por mês. Os sapatos dão-me outro tanto. Tenho cinco filhos já a trabalhar.
São mais sete mil e quinhentos
em que isso acontecer sou o homem mais feliz do mundo!
Já em casa voltei a pensar no Clemente: seria possível
que ele já soubesse da ligação entre a mulher e o médico? Não havia dúvidas que
estava excitado. Não.. Não podia ser. Se desconfiasse de alguma coisa, a sua
atitude seria diferente. A sua tristeza seria mais acentuada. Mas... Também não
consigo explicar por que motivo me falou
tão sem cerimónia e mesmo com alguma irreverência. Difícil, muito
difícil, este bicho homem.
XI
Estávamos na Primavera. Sentia o cheiro da terra fresca
penetrar-me as narinas e
pensava: é bem verdade que a Primavera e o Outono nos
convidam a ler e a escrever, o Verão aperfeiçoa o estudo que fazemos uns dos
outros e o Inverno amadurece os conceitos.
Respirava-se alegria, felicidade e amor. Agarrei num
livrito de poemas que tinha publicado na juventude. De repente, senti mexer na
porta. «Quem será»? Ainda o pensamento estava no ar e já ouvia uma voz
saltitante gritar:
- Pode-se entrar?
Corri à porta.
- D. Leonor! Não olhe para isto: Os livros estão desarrumadíssimos como... toda a casa. Sente-se...
- Obrigado padre... não se incomode.
- Vou procurar outra cadeira
- Não se preocupe comigo.
D. Leonor lançou os olhos pelo compartimento. Por todo o
lado nada mais que livros, jornais, revistas e esferográficas. Pegou no livro
que eu tinha aberto. No poema algumas palavras manuscritas chamaram-lhe a
«Não temas querido, o meu amor será eterno como o
infinito. Beijo-te intensamente sempre tua...» .
Da cozinha perguntei-lhe:
- Toma chá?
- Só uma gota, se isso não vier causar-lhe transtorno.
- Não é transtorno, é prazer.
- Fuma ?
- Raras vezes. Se quiser tabaco encontra-o na primeira
gaveta do lado direito.
- Posso tirar?
- A casa é sua.
D.Leonor acendeu o cigarro e leu a poesia sobre
a qual estava a dedicatória:
«Possuir-te, querer-te num desejo louco
De ter o teu corpo colado ao meu
Esquecer que sou católico e ser ateu
Neste momento, para mim, é bem pouco. .
Gritar bem alto até ficar rouco
Que esse corpo que era há pouco teu
Me pertence. Que não sou mouro ou judeu
Mas por te amar, de loucura me touco.
Desfazer-te em meus braços, entrar em ti,
Possuir-te como nunca ninguém possuí
E amar como jamais se amou.
Mas sei que não me queres, ou que me queres,
Sei lá! Tudo são caprichos de mulheres,
E por caprichos a minha fé se apagou.»
Leonor ficou pensativa.
- Dá-me licença?
- Ui, padre!
- Desculpe...
- Não me diga! Barbeou-se por minha causa? Oh, padre!
Isso é de uma extrema delicadeza... não o julgava...
- Um certo ar de asseio nunca fez mal a ninguém...
- Mas estava muito bem assim... agora, compreendo. .. um padre poeta tem de ser por força um padre galante
- E quando as poesias foram escritas há tanto tempo que
nada mais ficou do seu conteúdo que um pequeno livro?
- Não acredito que nada mais ficasse.
Esta vida é tão curta que o ontem e o hoje
Fiquei sem saber encontrar a melhor resposta. Esta sua teoria
sobre a possibilidade do esquecimento,
vinha atormentar-me e desiludir-me «Que virá fazer a minha casa?»
- Venho comunicar-lhe que tudo está em ordem. Aqui tem o
seu aquecedor que vem um bocado atrasado. Tenho imensas coisas para oferecer.
Nunca pensei arranjar tanto com tão pouco trabalho. Veja este cheque de oitenta
mil escudos.
- A senhora é genial! - Ao dizer-lhe esta banalidade,
para completar com gestos a minha falta de expressão, agarrei-lhe as duas mãos
que se me estendiam, levei-as aos lábios e beijei-lhas reconhecidamente. Nessa
altura, não sei o que se passou, mas tenho a certeza que durante trinta ou
quarenta segundos perdi consciência do meu estado e quando despertei D. Leonor
beijava-me e dizia-me frases que ao princípio não entendi.
«Meu Deus, que faço?!» Senti as forças abandonarem-me. O
livrito desprendeu-se da mesa onde estava e caiu no chão. Um frio desagradável
percorreu-me o corpo. Tinha a certeza que toda a cidade desejava D. Leonor
e não compreendia por que ainda não estava casada. A única vez que a ouvira
em confissão ela dissera-me: Padre, eu ardo, ando a arder. O desejo cega-me.
O pensamento, arrasta-me! Diga-me o que devo fazer?» Não sei qual foi a minha
resposta. Sei que a minha sensatez mais uma vez me desapontou. Se ela a ouvisse,
ela ter-lhe-ia dito mais ou menos isto: «O amor não se evita. Nessa idade
e com esse corpo é um sacrilégio fazer sofrer o mundo». Foi a primeira vez
depois da minha ordenação que senti desejos de lançar fora todo o peso que
carrego
- Padre!
- D. Leonor!
Os dedos esguios de Leonor eram ferros que me dilaceravam
gostosamente a carne, eles penetravam-me, sentia-os por todo o corpo, não tinha
forças para os arrancar. A consciência repetia-me, segundo a segundo: «Não
resistes, não resistes, não resistes... és um caso perdido... perdido...
perdido...» A minha excitação era por de mais evidente para a negar... por
entre carícias de sabor divino, Deus me perdoe, ouvi:
Padre, amo-o tanto...
«Não, Leonor, não!» Disse mentalmente,
- Meu querido...
- Não! Leonor...
- Gosta de mim...
- Leonor, eu... eu...
- Vê, nem sabe mentir. Para quê mentir?
- Que loucura, Leonor!
- Pouco importa que seja loucura. Quero-o
- Eu?!
- Mas isso é ... valha-me Deus!
- Nem com um suporte consegue negar o que é evidente. Os
seus olhos não enganam. O senhor sim, quer negar, quer fugir de si próprio,
do seu verdadeiro eu, quer destruir-se...
- Eu?
- Sim, o senhor.
- Não... não me beije as mãos! Por que
me tenta se conhece a minha fraqueza? Por que me quer desviar do último caminho
que decidi e jurei percorrer até ao fim dos meus dias? - Ela pareceu não me
ouvir.
- Tem-me em sua casa, à sua disposição;
sabendo que o senhor me quer, sabendo quanto eu o quero... sabendo que farei
tudo quanto me pedir.
- Mas eu... eu não peço nada... não quero
coisíssima nenhuma, D. Leonor!... Foi por isso... que ofereceu...,- D. Leonor
pôs-me a mão na boca.
- Não seja patetinha! Dei-lhe o que tinha
- Leonor; a sua família; que diria a sua família?
- Que me importa a família!
- As... as pessoas. Que diriam as outras pessoas?
- Ninguém mais me importa a não ser o senhor. Sou livre,
sou maior, pertenço-lhe!
- Sim! Tenho
grande necessidade de si! Porque só a si amo! Só a si! Acredita. Nunca na minha
vida eu pensei noutro homem, como pensei em ti; com paixão.
- Leonor!
A custo
segurei-lhe os braços.
- Fujamos padre!
deixo tudo por si.
- Que loucura, meu
Deus!
- Diga que me quer, que gosta de mim!
- Cuidado, pode entrar alguém. A chave
está na porta.
- Não se preocupe.
- Leonor! As suas intenções...
- Venha comigo.
- Não posso...
- Venha, nunca mais terá necessidade de
- Nem que isso fosse verdade... não
posso, não posso!
- Pode. Eu cuidarei de si, dar-lhe-ei
todo
- Não vê que é
impossível! Os meus paroquianos, esta gente que acredita em mim... eu quis ser
padre, compreenda isso! É difícil explicar... mas já não era garoto quando isso
sucedeu... eu não fui empurrado...
Ela, mais uma vez
não me ouviu.
- Outro ocupará o seu lugar. Há tantos!
- Não, Leonor. Nunca!
Há pouco falou-me
Leonor, ao
princípio olhou-me a sério, depois deu uma gargalhada tão azul e tão quente
como o próprio céu e gritou-me rindo até às lágrimas.
- Tu estás cheio
de personalidade.
- Leonor. Não
conseguirá demover-me.
- Deixa-te de
hesitações meu querido, vem... meu amor:
Eu segurei-a pelos
ombros e afastei-a, ela conseguiu envolver-me e olhou-me ternamente, desprendi-lhe
as mãos e disse-lhe enquanto a forçava a sentar-se.
- Conversemos como
amigos, Leonor.
- As conversas
ficarão para mais tarde. Tem de me dizer que gosta de mim, que me deseja tanto
quanto eu o desejo!
Como ela me apertasse
as mãos com mais força, disse-lhe:
- D. Leonor, a
natureza humana é fraca. Eu sou homem... peço-lhe pelos restos de beleza que
ainda brilham no seu coração que se retire. O prazer é um sorriso, cristalino,
leve... passageiro, fugaz. Em poucos minutos é a saturação... o arrependimento.
- És um poeta, meu
amor! És um poetazinho idealista. Eu direi de outra
maneira: contigo será o prazer eterno, será o nosso dia infinito! Verás meu
amor tudo o que há de mais belo, de mais puro e de mais verdadeiro que existe sobre a Terra!
- Peço-lhe D. Leonor...
acredito, tenho a certeza de que seria assim, mas sou padre... esses devaneios...
essas fugas... estão-me vedadas... não me abrace, peço-lhe! As situações de
compromisso estão-me proibidas
- O homem não pode estar sujeito a
-D. Leonor... eu não lhe queria dizer...
- Eu sei-o. A sua finalidade... sou eu que
- Não posso.
- O senhor! é livre...
- Porquê?
- Sou padre. Tenho de ser intransigente
perante as minhas fraquezas... . Sirvo Deus. . .
- Não acredito num Deus egoísta que o
queira para Seu exclusivo prazer, para Seu deleite...
- Deus não é egoísta, não me deseja só
para O servir, deseja-me para O representar e para amar, com amor casto, todos
os meus semelhantes. . .
- Eu sou o teu semelhante...
- Estou destinado a servir mais que um
- Arranjaremos filhos, tantos quantos
- Não graceje com assuntos sérios, Leonor.
- Não seja vulgar. Hoje em dia cada homem
- Leonor!
- Sim, gostarias de abarcar o mundo com
ambas as mãos e não és capaz, meu pobre!
- Mas, eu estou cá, a tua Leonor, ela ajudar-te-á a te
encontrares... os dois seremos capazes... verás que seremos...
- Não.! Não quero a sua ajuda! Por favor
- Somos dois teimosos...
- Leonor... Deixe-me! Não me beije... largue-me!
- Magoaste-me, querido...
- Saia!
- Não.
- Por amor de
Deus! Pela graça infinita, por tudo quanto lhe for mais querido...
- Tu és o que eu
tenho de mais querido. Tu és o meu Deus e eu sou o infinito... que
desesperadamente procuras...
- Largue-me. Não
a quero! Não a desejo! A senhora é... é... Deus me perdoe, o Diabo!
-Tenho a certeza que não acreditas em
- Hoje a caricatura tomou forma! Não
- Eu acredito em Deus...
- Se acredita em Deus, peço-lhe pelo Seu
- Não lhe posso fazer a vontade. Acredito em Deus pelo amor.
Ele é amor e eu venho dele sou amor, tu és amor, todos somos amor! Por que
não caminhas para
- Le... o... nor não me beije eu... eu... di...
go... lhe... eu... estou a di...
zer... lhe,..
- Os teus lábios são fogo, querido!
- Por favor!
- Gostas de mim, querido?
- É um devaneio impossível, Leonor! Afaste-se de mim,
peço-lhe...
- Senti os teus lábios...
- Não dei razão que a tivesse beijado, ordeno-lhe que saia!
- Eu amo-te! Compreende isso, eu amo-
-Leooooonor!
- Bateste-me! Tu bateste-me?
- Desculpe Leonor, peço-lhe perdão!
- Odeio-te! Nunca mais te poderei ver! Nunca mais! Tu...
és falso! Tu consegues mentir a ti próprio!
- Perdoe-me Leonor...
- Sim, o senhor mente a si próprio, o senhor é um
recalcado, um fingido, um covarde! Por que me olha provocadoramente?
- Leo...
- Cale-se! Tenha vergonha! Seu tonto!
- A sua educação, D. Leonor...
- Que me importa a minha educação, os
- Devemos dominar os impulsos...
- O senhor domina-os? Aparentemente... só aparentemente.
Pois os seus pensamentos são bem outros...
- Faço o melhor que sei...
- Que vulgar me saiu!
- Acredite-me, D. Leonor...
- Padre.
- Eu estimo-a muito, creia.
- E eu amo-o tanto!
- Por favor não recomece. Agradeço-lhe que saia.
- Tem a certeza de que esse é o seu último desejo?
- Assim eu tivesse
o céu..
- Oxalá não se
arrependa...
Saiu batendo a porta violentamente. Limpei
o suor que me corria pela cara, fui para o meu quarto e doido de... recalcamento...
como Leonor lhe teria chamado, rebolei-me na cama gritando e blasfemando.
A todo o momento invectivava Deus dizendo-lhe: «Por que permites? Por que
o permites? Mais um momento... mais uns beijos, mais umas carícias, mais umas
palavras e tudo, tudo iria por terra! Nunca mais permitas semelhante provocação!
Em criança sonhei que o sol brilharia no coração de cada
homem sonhei que os Homens acreditavam uns nos outros... sonhei que todos,
os povos seriam uma grande família... uma família de amor! Esta mulher veio
dizer-me cara a cara a verdade despida de finas roupagens: como quero que
os Homens acreditem uns nos outros se eu mesmo, não acredito em mim próprio.
Oh Leonor, como foi cruel! Como foi capaz de me dizer semelhante
coisa! talvez tenha razão., talvez seja tudo o que diz! Mas a minha esperança
no homem é infinita! Talvez, sim, talvez eu minta a mim próprio, por insistir
ser aquilo que não sou».
Quando Clemente entrou foi procurar o filho, colocou-o aos ombros
e percorreu a casa à procura da mulher. D. Madalena encontrava-se no quarto
e tentava disfarçar pela pintura algumas lágrimas. Clemente notou que a esposa
não estava bem, poisou o pequenito, disse-lhe para ir brincar, agarrou a mulher
pelos braços e beijou-a.
- Que tens?
- Estou fatigada.
- Sentes-te bem? Há uns dias que te noto diferente.
D. Madalena não resistiu: as lágrimas inundaram-lhe as
faces.
- Então, Madalena?
O marido abraçou-a ternamente.
- Tens de ir ao médico. Encontro-te pálida...
Clemente levantou-se e foi até à janela.
Durante alguns momentos o silêncio envolveu-os e parecia eternizar-se quando
apareceu o pequenito.
- Papá, papá vem ver o meu comboio.
- Agora não, vai brincar com ele.
O pequerrucho levantou os bracitos para
dar um beijo ao pai. Depois de o ter largado foi ter com D. Madalena e beijou
a mãe no pescoço. Grossas lágrimas rolaram-lhe pelas faces. - O pequerrucho
correu feliz para fora do quarto. O marido veio para junto dela, pôs a mão
esquerda sobre as da mulher e ficou a olhá-la. Esta não resistiu; choro convulso
batia-lhe o peito e Clemente encostou-a a si.
- Não te mereço, Clemente -. Não; te
mereço! Tu és bom de mais para mim. Não, te mereço!
- Não digas isso.. Tu és a mulher mais
adorável que até hoje encontrei. Compreendo os teus problemas.
- Sou muita fraca, Clemente...
- Todos somos.
- Não me perdoas
o...
Clemente pôs-lhe a
mão na boca..
- Não tens que me contar... eu amo-te
tal como és... não quero a tua infelicidade.
- Mas eu não sou digna de ti! Não te
quero enganar Clemente!
- Madalena. Peço-te. Sabes que tudo se
pode resolver, não tens que te culpar. Quando casámos eu aceitei o risco...
eras a mulher
Clemente agarrou as duas mãos da mulher,
com elas segurou a sua própria cara e ajoelhou-se como um supliciado feliz
pela
Dona Madalena de pé olhava-o confusa.
Durante alguns segundos ficaram assim até que ela o puxou um pouco, ele levantou-se
- Clemente...
O marido, não a deixou falar. Nem um nem
outro tinham palavras certas. Clemente compreendia que aquela não era a melhor
altura para divagar sobre o que quer que fosse. Pensou nas férias, num passeio
de fim-de-semana. De uma saltada a Espanha, coisas que D. Madalena apreciava,
mas viu que todas estas tentações não tinham o momento
- Eu necessitava tanto de falar contigo.
- Hoje não, guarda para outro, dia os
teus
- Queria dizer-te
que estás enganado...
- Não digas. .. deixa
que eu tenha os meus
- Mas...
- Nada me interessa. Sei que gosto muito de ti e que a
única coisa que me poderia magoar mais que todas seria... perder-te, saber-te
longe, infeliz... Madalena... sê como és. Confio em ti.
- Não con...
O marido beijou-a de maneira a ela não acabar a frase.
- Olha que me sufocas - disse D. Madalena, afastando-o.
O filhito entrou no quarto.
- Anda brincar, papá, anda!
Clemente passou a mão pela cara da mulher, mandou-lhe um
beijo da porta e desapareceu com o filho. D. Madalena deitou-se na cama.
«Sou infame! Tenho um marido... o melhor marido do Mundo,
faço o que quero,
- Andava à sua procura - disse-me ele.
- Aqui não é fácil escondermo-nos por muito tempo..
- Concorda com o divórcio?
- Oh, doutor, isso não é atirar à queima roupa?
- Deixe-se de ganhar tempo para arquitectar uma resposta!
Concorda ou não?
- Que pressa, santo Deus!
- Ou responde ou vou-me embora.
- Concordo.
- Concorda. O senhor é padre e concorda. Bem, então assim,
isto fica mais. simplificado. O divórcio à face da igreja não é permitido
e o senhor concorda... hum... conhece
alguém nos jornais?
- Só estamos aqui os dois. Conhece ou não?
- Sim, uns quantos, não muitos.
- Precisava de alguém que ventilasse o problema, alguém
que apoiasse esta ideia.
- Ideia... apoiar... mas que trapalhada é esta, doutor?
- Eu, também tenho uns conhecimentozitos...
encostado a um padre isto vai.
- Mais devagar, o que é que eu vou apoiar?
- O divórcio, que havia de ser?
- Mau! Eu disse-lhe que concordava, não disse que apoiava!
- Padres são... todos iguais, todos falsos como Judas!
- Venha cá. Não se precipite nem seja inconveniente.
- Não estou aqui nem mais um segundo!
- Venha cá. Vamos falar com calma. Eu
-
Por que concorda o senhor e não apoia?
- Na verdade, do divórcio adviriam
muitos bens e a solução para casos que estão, irremediavelmente perdidos,
casais que nunca mais se unem e que estragam o viver um do outro. Sobre este
ponto o meu apoio é total.
- O pior é que depois por «dá cá aquela palha» todo o mundo começa a trocar de esposa ou de,
marido de seis em seis, meses.
- E que tem isso?
- O viver em comum requer habituação e a juventude ferve
em pouca água. Se tem possibilidade de se separar fá-Io
imediatamente ainda que mais tarde se arrependa.
- Não diga asneiras! Com a mulher sucede o mesmo, claro!
- Não. A mulher começa a ser adulta aos dezassete e aos
vinte anos é mulher. Posso mesmo afirmar-lhe que ela é muito mais adulta aos
dezoito, do que nós somos aos vinte e cinco.
- Isso não tem pés nem cabeça, mas já que assim quer,
para haver divórcio, tem de haver consentimento, entre os dois, por isso, não
me parece grande perigo que ele seja oficializado, se a mulher é assim tão
adulta.
- Temos de contar com o orgulho e a paciência feminina
que faz com que ela não perdoe muitas grosserias ao marido.
- Mas afinal ela é adulta ou não é adulta, sabe o que quer,
perdoa, não perdoa, onde
- A mulher perdoa, mas cansa-se de lutar e acaba por
ceder. Por esse motivo deve haver um travão para certos deslizes.
- Qual travão! só a liberdade pode consciencializar
a Humanidade. Os seres humanos com freio nos dentes parecem-me símios numa
grande jaula!
- Não diga isso, doutor! O excesso de
liberdade vai perder o homem. Há menos de cinquenta anos tudo parecia mal,
hoje, rouba-se, mata-se, viola-se e tudo isso parece bem. Basta colocar-lhe
o rótulo de que foi a favor da liberdade e o gatuno, o assassino e o violentador
só não é aclamado como herói porque existe ainda nos seres humanos um décimo
milésimo grama de bom-senso!
- Não me diga que me está a colocar no
mesmo plano!
- Pelo amor de Deus! Estou a tentar dizer-lhe que sei o
que o faz correr.
- O que me faz correr é a vida insuportável que tenho com minha mulher.
- De quem é a culpa?
- Minha e dela.
- D. Matilde parece-me uma excelente
dona de casa, uma mãe extremosa... uma senhora gentilíssima com todos os
predicados...
- Para fazer um marido feliz - concluiu
o médico. - O pior é que todos pensamos assim quando estamos de fora.
- Não me queixo da beleza. O seu feitio choca-se com o meu
e as disputas e o mal-estar lá em casa são constantes.
- Pode dar-se o caso de... querer sair de um sarilho e... meter-se noutro.
- Não tente dizer tolices. Amo a Madalena há muitos anos
e com essa não me posso enganar.
- Engana o marido, pelo menos.
- Não seja chato, padre!
- E dona Madalena?
- Quê, D. Madalena?
- Ela quer?
- Sei que ela me deseja.,. sei que só estima o marido...
é uma ligação fria!
- Ele é seu amigo...
- Eu também o sou dele.
- Ele adora a mulher. Tem a certeza que D. Madalena...
- Oh, homem, não se preocupe! Faça aquilo que eu lhe
digo, e o resto é comigo! Depois do divórcio oficializado tudo se arranjará.
Você sabe que a mulher precisa de sentir segurança, nem que a segurança seja um
papelucho qualquer que lhe afirme que aquilo está consoante a lei. A Madalena
gosta de mim. Ajude-me o senhor e verá como eu dou um piparote na vida.
- Desculpe doutor... mas não consigo ver a sua felicidade
reconstruída sem os seus três filhos. Já reparou que eles estão a erguer-se,
eles são como um edifício... se as
- Para o diabo a
sociedade! Estou farto de me sacrificar pela sociedade!
- Ela tem-lhe pago
esse sacrifício.
- Como? Fazendo-me
levantar às tantas da madrugada para curar uma histérica ou ir esconjurar o
diabo a casa de uns labregos encharcando-me de pulgas e de...
- Eles pagam-lhe
com amor. Todos o respeitam, todos desejam servi-lo.
- Estou farto!
- Mas, que sucederá aos filhos?
- Volta ao mesmo? Não me interessam! Ela que fique com
eles se quiser.
- Não os ama?
- Naturalmente que sim! Bolas, padre! Onde quer chegar
com tudo isso? Ajuda-me ou não?
- E o filho de D. Madalena?
- Os filhos são seus? Deixe-se de protelações inúteis. A
minha resolução está tomada!
- Para lhe ser franco, doutor... custa-me, imenso colaborar
num acto com o qual não concordo.
- Mas que diabo de homem é o senhor! Primeiro concorda,
depois não concorda! Ainda me faz perder a paciência e... bom, passe muito bem,
não estou para o aturar...
Voltei sobre mim os pensamentos e compreendi que o meu raciocínio
fora derrotado
Mais uma vez comecei as costumadas lamúrias como o
impotente à procura da mézinha.
XIV
rebate. Soergui-me para ouvir bem que
não me enganava. Tentei acender a luz, mas não havia e compreendi o motivo
daquele alarme àquelas horas: acontecera algum desastre.
Levantei-me bastante ensonado. Às
apalpadelas fui até à cozinha procurar o candeeiro a petróleo. Quando saí de
casa senti o cheiro a queimado, e esfreguei os olhos. Ouvia-se gritar por todo
o lado:
- É na casa do médico! É na casa do médico!
Olhei nessa direcção e grossos rolos de
fumo elevavam-se sob a força das agulhetas e da neve carbónica. Em segundos
desci as escadas e corri para o local. A Polícia tinha vedado o acesso a curiosos,
mas deixaram-me passar.
Os bombeiros atacavam com fúria as chamas. O fogo parecia
desafiá-los e aqueles homens, abnegados e simples, com lágrimas de raiva nos
olhos, viam-se impotentes para suster o vulcão.
A casa era uma vivenda antiga. As madeiras eram de
castanho secular e as paredes de granito. O fogo parecia brincar com umas e com
outras. De tempos a tempos sentia-se uma viga cair seguida de uma derrocada no
interior. O comandante dos bombeiros encharcado em suor disse-me:
- Fiz a guerra, sou comandante dos bombeiros há muitos anos,
e nunca vi o fogo resistir a um ataque destes. Olhe que temos vinte e três
agulhetas montadas! Parece algodão!
- O doutor e a esposa?
- Não estão. Não havia ninguém em casa. Não posso
explicar como isto sucedeu, tinha acabado de apagar a luz quando ouvi o sino.
- Nem criados?
- Nada.
- Consegue salvar-se alguma coisa, senhor Jorge?
- Quem lá pode entrar, padre? Os homens estão exaustos. .
.
- O médico está onde?
- Saiu há dias para o sul.
Estive ali três horas. Da vivenda nada mais restou que as
paredes exteriores e as telhas calcinadas. Rios de espuma e água saltavam pela
estrada e os bombeiros tentavam desimpedir o melhor que podiam aquela via.
- É triste ver desaparecer uma pessoa,
mas quando assistimos à lenta agonia de uma casa é espectáculo para toda a
vida!
Admirei-me que fosse Clemente a falar e
a expressar-se daquela maneira. Sem me ocorrer outro assunto perguntei-lhe:
- O recheio era valioso?
- Alguns milhares. Toda a vivenda era uma obra de arte.
Espalhados pela casa havia quadros de Vieira Portuense, Amadeu de Sousa
Cardoso, Almada Negreiros, Ângelo de Sousa, Nadir
Afonso, António Lapa, Carlos Calvet, Fernando Lemos,
António Sena, Nikias Skapinakis.
Lembras-te de quem mais Madalena?
- Deixa ver... de Medina, Eduardo Malta, Maly de Brito, Manuel Cargaleiro, Ana Maria Botelho, Nuno
Sequeira, Luís Gonçalves, Malagantana; Eleutério Sanches, Maluda, Espiga Pinto, sei lá! Havia muitíssimos
mais, mas estes, são os que me lembram.
- O médico é um coleccionador e tem um gosto tremendo! A
biblioteca era fabulosa! Mas vê, aí predominavam autores estrangeiros. Só
começou a corrida aos escritores portugueses depois de ter ido a sua casa.
Tinha uma colecção de pratas fabulosa. As moedas devia-as ter deixado no banco,
mas não tem menos de quatro mil contos em moedas antigas.. Enfim, Diogo Palhanca e
Matilde perderam uma bela parte da sua vida e dos seus
passatempos.
Como se fizesse outra vez silêncio, de novo atingi o fundo
mesquinho, da vulgaridade.
- Está coberto pelo seguro?
- Sim, o médico tem seguros de todos os géneros. Eu
próprio me meto com ele por causa disso e ele responde-me invariavelmente com a
propaganda televisiva.
«Quanto mais seguro mais futuro». Neste caso ele tinha
razão. Do que o seguro os não pode compensar é das recordações de uma vida
inteira. Eles terão de reconstruir tudo. Espero que durante estes meses eles
aceitem viver em nossa casa.
- Em nossa casa? - Exclamou D. Madalena.
- É o único local onde poderão ficar...
se estivéssemos nas mesmas circunstâncias...
- A Matilde é
capaz de não querer.
- E a ti também não te agrada muito,
não é minha querida?
- Preferia que encontrassem outra solução.
- Oferecia-lhes a minha casa... - disse eu.
- O médico nunca aceitaria!... Nem pense
- Como quiseres.
- Venha daí tomar café connosco -
disse-me Clemente.
Hesitei entre o aceitar e a recusa, mas
no meu espírito esta poderia ser tomada como ressentimento e aceitei mostrando
o maior
xv
Diogo Palhanca chegou no dia
seguinte e durante muito tempo ele e Clemente
percorreram as ruínas da vivenda e o
jardim que a envolvia o qual estava irreconhecível.
- Não, Clemente, não volto a
reconstruir o que o fogo destruiu. O fogo é uma forma de purificação. Eu tenho
de aceitar o destino.
- Não diga isso doutor! O senhor nunca
acreditou no destino e agora vem com essa ideia para cruzar os braços! O local
é o melhor da cidade e não vai desperdiçar aquilo que todos cobiçam!
- O senhor também?
- Também o quê?
- Também cobiça?
- Quem não deseja viver num sítio destes
- Ofereço-lho!
- Não diga disparates doutor! Nem eu lho aceito, nem o
senhor pode proceder assim.
- Você conhece-me bem. Nunca voltei com a palavra atrás.
Ou você o aceita ou eu saio já de sua casa.
- Não diga disparates, doutor! De momento não tem para
onde ir e a nós não nos causa qualquer transtorno. Pelo contrário, a minha
mulher e a sua passam um tempo bastante agradável e entreajudam-se..
- Quer dizer: conversam sobre a vida
- Que hão-de elas
fazer?
A pergunta ficou sem resposta e os
pensamentos substituíram as palavras. Diogo Palhanca
viu que o fogo representava a separação entre o presente e o passado. A sua
mulher estava perdida para ele como a mulher de Clemente estava a aproximar-se
do seu primeiro amor e a perder o marido.. A vida lá em casa só era suportável
por causa dela..
Clemente interrompeu-lhe as divagações.
- Vem aí chuva. Apressemo-nos se não
- Por mim é-me indiferente. Prefiro uma
boa rega a ouvir seja quem for.
- Desculpe. Hoje tenho estado a
conversar mais do que devia.
- Não disse isto por sua causa. Sinto-me
- Que tal acha minha mulher?
Clemente não esperava a pergunta e fez-se muito vermelho.
Ele, o homem ponderado e tão sério que muitos eram levados a pensar que era
ingénuo, olhou o céu como a procurar
resposta e disse:
- Vai mesmo chover.
O médico olhou-o e alargou o passo em direcção a casa. D.
Madalena abriu-lhes a porta.
- Livraram-se por pouco!
Clemente beijou a mulher e o médico sorriu-lhe
satisfeito. D. Madalena gracejou:
- Foste ver se os trabalhos começam por
- Dei a casa a teu marido.
- Deixa-o falar.
- Não te esqueças que a tua mulher tem uma palavra a
dizer.
- Está tudo dito.
- Se fosse comigo não estava. A tua mulher tem tantos
direitos como tu.
- Julgava-te mais compreensiva.
- Sempre fui assim e... não mudo. Clemente saiu da sala e
ficaram só o médico e D. Madalena. Diogo Palhanca
olhou para ela.
- Estava convencido que ainda gostavas de mim.
D. Madalena olhou para ele e sorriu, o médico continuou:
- Era extraordinário que o teu marido
- Tu és completamente doido!
Diogo. Palhanca aproximou-se e
agarrou-a pela cintura.
- Cuidado. - Disse D. Madalena afastando-se.
- Não era maravilhoso? Ele ficava com minha mulher e eu
ficava contigo!
- Tu deves estar parvinho! O fogo deu-te volta à cabeça.
Falas de mim e de tua mulher como se estivéssemos à venda e fossemos objectos
de fácil aquisição. Não te iludas; tens de contar com os sentimentos dos outros
se quiseres que compreendam os teus.
- Mas...
Neste momento entrou Clemente e D. Ma tilde.
- Mas - continuou o médico - a Matilde
- Não me importo de quê?
- Ele é tontinho, não faças caso.
- Penso isto de muita importância para tu o minimizares
Madalena.
- Continuo na minha; tu não tens juízo e estás aqui estás
no «Júlio de Matos».
- De que falavam vocês afinal?
- Da casa, do que havia de ser - disse o médico com o
maior à vontade.
D. Madalena deu uma gargalhada e fez o gesto de quem está
louco. Clemente retorquiu:
- Nem pensar nisso, doutor.
- O Doutor quer oferecer-nos o local onde vocês tinham a
vivenda...
- Isso é com ele! Se o quiser oferecer eu não me oponho.
O Diogo sabe o que faz e o que quer. Para mim, viver ali ou noutro lado é-me
indiferente.
Olharam todos uns para os outros como se aquilo fosse uma
conversa de garotos e demasiado incrível para se lhe dar importância.
- Bem, que fazemos? - perguntou Clemente.
- Vamos tomar o chá e guardamos isto para outro dia -
disse D. Matilde.
- Não, não! - Opôs-se o médico - Vamos celebrar esta
doação...
- Mas a que propósito? - Gritou D. Madalena.
- Basta, eu gostar muito de ti... e estar grato a teu
marido por nos aceitar aqui em casa.
- Está bem, concordo disse Clemente,
O médico não queria, mas ao fim de algum
tempo e como D. Madalena lhe pedisse ele aceitou esperando desse modo mostrar
à mulher que amava que ele também sabia
XVI
Olhava distraidamente um velho espelho quando o médico
apareceu.
- Viva o luxo!
- Ainda me arranja alguma doença de coração, doutor!
- Segundo ouvi dizer o senhor está vacinado contra esse
mal.
Notei que o médico me olhava intencionalmente.
Quis falar, mas pressentindo que gaguejaria, fiz-lhe sinal que estava atrapalhado
com a vestimenta.
- Aperte-me o
cabeção, doutor.
- E não receia que lhe aperte o pescoço?
- Por que havia de apertar? Nem eu sou
- Ponhamos cartas na mesa: que se passa entre si e a
Leonor?
- Deixe-se de artifícios e responda ao que lhe perguntei.
- Entre mim e D Leonor não há nada.
- Passa-se qualquer coisa. Madalena anda agitada. A
última vez que lhe pedi para sair recusou-se dizendo que a cunhada estava com
uma depressão nervosa muito grande. Ela pensa que há alguma coisa entre vocês.
Desta vez fiquei sem pinga de sangue. A minha cor devia
ser o espelho dos meus receios porque Diogo Palhanca
continuou:
- Tal é a verdade! Nem forças tem para negar.
Francamente! Um padre!
Esta forma de dissociar o padre do homem exasperou-me e,
em vez de suavizar aquela acusação, respondi com outra acusação.
- Toda a gente poderia falar menos o senhor. O senhor que
tenta passar sobre um amigo, sobre sua mulher, sobre os seus filhos, o senhor
acusa-me de leviandades!
Diogo Palhanca riu sombriamente.
- Chama-se a isto vir buscar lã e ficar tosquiado. Já nem
num padre se pode confiar! O mundo está perdido! Agora, até os padres se servem
dos nossos segredos para fazerem chantagem! Aonde isto chegou!
A minha vontade foi desancar o médico. Dominei-me o
melhor que soube, mas mesmo assim não evitei dizer-lhe:
- Não me interessa
que o senhor goste ou não goste! Ofereci esta casa, não sei se sabe que fui
eu...
Não o deixei
acabar.
- Se é pela casa...
eu saio. Não sei em que condições ela foi doada, mas... não faço
- Logo vi. Era muita sorte ter um padre
- É uma pena doutor, os homens terem
-
E não o esqueceu totalmente.
- E devia?
- O senhor diz tudo isso, com ar de gozo,
- Não se passa coisíssima nenhuma! E, se passasse...
antes de o senhor falar estava o Clemente que é irmão.
- O Clemente é um trouxa!
- É seu amigo.
- Isso não invalida que seja trouxa.
- De qualquer maneira é irmão.
- Vê, insiste em defender-se...
- A defesa é um acto natural... instintivo...
- Então é animal de instintos?
- Todos nós somos. Ou julga que o Homem admitiria que o
tratassem como tratam se a sua animalidade, se a sua incompleta evolução não
lhe cerceasse as faculdades?
- Pobre mundo que entrega a salvação dos seus elementos
mais nobres a indivíduos como o senhor.
Eu olhei-o muito sério e disse-lhe:
- O doutor está a brincar ou sente mesmo o que está a dizer?
Para mais, o senhor seria o menos indicado para defender um direito
- Lá volta o senhor ao mesmo! Já lhe
respondi o que tinha a responder. O senhor é padre! Tem obrigações a cumprir,
cumpra-as!
- E quem lhe afirma que não as cumpro!
- Tem! O senhor não pode receber quem quer, dentro desta
casa! O senhor necessita de um mínimo de compostura.
- Não dramatize doutor! Primeiro tenho
- Está visto. O senhor é o espertalhão do sítio. Mal
chega apalpa o terreno e deita mão ao melhor que encontra.
- E o melhor é... D. Leonor... não é assim?
- O senhor o disse.
- Parece-me, doutor, que estamos a resvalar para um campo
bastante desagradável. Confesso que não adivinho qual o motivo de tanto
interesse pelos actos desse senhora e pelos meus.
- O povo murmura!
- E o senhor também. Pois fique sabendo que comete uma
calúnia!
- O senhor chama-me caluniador! A mim! Diz-me isso a mim?
.
O doutor avançou na minha direcção furibundo. Por sorte
não perdi a calma.
- Ei! ei!
Temos um novo Ferrabrás! Pois a quem havia eu de
chamar caluniador se não a si que me ofende?
- Doutor! Doutor!
O médico não quis ouvir mais razões, deixou a minha casa
cego de ira e de desespero. Continuei a paramentar-me sozinho enquanto pensava:
Revolto-me porque os homens não vivem amor.. Revolto-me
porque são ignorantes.. Revolto-me porque vivem como carneiros à espera que
a erva cresça para a tosarem pachorrentamente. Revolto-me porque a par e passo
e no mesmo mundo existem animais com forma de seres humanos que rastejam num
primitivismo pré-histórico enquanto outros se gastam nas mais desregradas
das opulências. Revolto-me quando vejo espaços
de milhões e milhões de hectares de terras
Revolto-me quando
se matam milhões de seres em guerras idiotas, num desconhecimento total pela
dignidade humana.
Perdoe-me doutor
Diogo Palhanca; eu não podia calar-me, eu sou a
ave ferida que
esbraceja o último
alento.
Perdoe-me doutor!
Eu vivo numa extrema confusão neste mundo e foi por isso que lhe respondi
assim. Eu podia ter-lhe dito a verdade: D. Leonor não significa nada... não
é mais do que uma alma errante... que nada quero dela, que nada mais tenho
a ver com ela do que umas esmolas que vão minorar umas carências, onde não
deviam existir.
Tem razão doutor.
Para se vencer nesta vida temos de nos moldar às circunstâncias. Temos de
nos curvar sorridentes perante o mais forte mesmo quando ele nos arranca o
pão da boca e... agradecermos a Deus o nos ter poupado a vida».
Dirigi-me para a
igreja desfeito por tão tristes pensamentos, e mais tristes eles se tornaram
por pressentir que tinha perdido um bom amigo.
No altar elevei o
pensamento ao Senhor, pedi-lhe perdão das minhas muitas faltas, tão graves
que punham a descoberto as faltas dos outros seres meus semelhantes.
XVII
Os ramos da cerejeira batiam nos vidros. Abri a janela de
par em par.
Estava triste e piegas, uma nostalgia
imensa enchia-me o coração.
O sonho e a retrospectiva do passado
gritavam-me blasfémias e eu ouvia-os indiferente. Só a imagem de D. Leonor me
perturbava sem saber porquê, pois não a desejava.
Aborrecido com as pessoas que não compreendiam
os meus sentimentos dizia-me a cada momento: terei de me voltar para os irracionais
e para o reino vegetal, talvez para eles eu seja o guia que os arranque das
ignomínias por que passam às mãos dos Homens. Na adolescência o meu amor por
tudo o que me rodeava era obcecante. Desde a cadeira onde me sentava até à
minúscula formiga tudo me merecia respeito. Nunca desligava o rádio: sem pedir
mentalmente
Aparentemente era uma criança fútil,
normal, irrequieta, mas como eu sofria com os males alheios!
Quando o Cabaço Neves morreu, morri durante
quatro ou cinco anos. Tinha morrido um Homem honesto. Odiei a morte, a vida,
a Humanidade. Mas tudo passa e, quando me encontrei depois dos anos loucos,
pensei de novo nos seres inanimados e nos irracionais. Tinha mesmo um plano
para fazer falar os cães. Quanto é difícil conviver com o ser humano! Esse
ser humano: Homem-Mulher, esse sublime transformador
da Natureza, contraditório e difícil...
O ser humano que foi gerado pela força
criadora que faz tudo o que é amor, paz, suavidade, graça, beleza, saiu hipócrita,
ladrão, devasso, assassino, cobarde.
Tenho medo. Antigamente podia lutar sem
preconceitos. Hoje, não. As boas intenções nem sempre são bem aceites por todos
estes seres compósitos: minero-vegetais.
O homem, apesar dos milhares de anos que
lhe passaram por cima, continua a ser a eterna criança de instinto animal
a que não consegue furtar-se airosamente.
Quando? Quando Senhor poderemos ser os
Teus semelhantes em toda a extensão do termo? Ou... mas não! Tu existes! Eu tenho
Vê aquelas árvores que correm pelo outeiro em direcção ao
vale. A quem estão elas submetidas? Ao poder discricionário do homem ou às
tuas leis? Vê como elas são elegantes e simples. Por que terias entregue esta
Terra imensa a arrendatários sem finalidade,
a indivíduos, de todas as espécies e condições! Tu...
- Senhor prior, senhor prior! Oh, senhor
- Que queres, rapaz?
- 0 senhor prior não sabe as horas!
- Valha-me Deus! Que horas são ?
- Passam cinco do meio-dia. A igreja está cheia. Cheínha! - A igreja...
- Cheínha
- Anda lá rapaz! Oh, Santo Deus! A igreja cheia! Os homens...
os seres humanos são
- Quem
ajuda? - perguntou o rapaz.
- Quem ajuda?
O sacristão. Quem havia de ser?!
- Esse, já
eu lhe digo que não.
- Porquê?
- Então o senhor
prior não sabe? Mas o melhor é despachar-se. As pessoas começam a murmurar.
Com o outro senhor prior mal se ouviam as doze badaladas do relógio da sacristia:
piu; piu; piu...
- Chegam de
badaladas, rapaz! Avia-te, avia-te!
- Era
verdade. O senhor prior entrava pela igreja dentro, a passo direito e a missa
começava imediatamente. Todos sabíamos que ao meio-dia e trinta ou meio-dia e
trinta e cinco a missa estava acabada. Sim, porque era de poucas conversas.
Aviava aquilo enquanto o diabo esfrega um olho. Com certeza hoje só enxergamos
o almoço...
- Tu sabes
ajudar à missa?
- No tempo
do...
- Sabes ou não?
- Como um
papagaio! Até me regalo todo.
No tempo...
- Mexe-te!
Mexe-te! Hoje vais ajudar.
- Ai, Nossa Senhora! Logo hoje que tenho os sapatos rotos!
- Isso é o
mesmo.
- Ai é! As
outras pes...
- Pois é, mas tenho os sapatos rotos e toda...
- Mexe-te! Mexe-te! E deixa-te de palavreado se queres
ganhar dois santinhos.
Eu não corria, voava. O coração teimava em arrancar-me a
camisa, em rasgar a batina, mas eu corria, corria sempre.
«A igreja está cheia! Bem hajas, meu Deus,
bem hajas!» - Murmurei entre dentes, enquanto o coração andava de um lado
para o outro e um vermelho carregado me subia às faces.
No dia 15 de Outubro dirigi-me para a
residência do médico. A temperatura estava agradável, o Sol mostrava as suas
últimas franjas e os passaritos lembravam-me que a Natureza estava comigo.
Apesar de todos estes envolventes ia cabisbaixo, amarelento.
O médico estava à janela. Desde o dia
em que tínhamos discutido nunca mais o tornara a ver. Eu ia apreensivo não
só pelo estado em que me encontrava como também pela reacção do médico.
Quando passei a ombreira da porta, Diogo
Palhanca devia ter reparado como eu emagrecera.
O meu aspecto, sobre todos os pontos, não era famoso; capa desbotada, calças
ponteadas, batina a esfarelar-se nos virados, sapatos escalavrados. Os tempos
não me iam de feição e a disposição para melhorar
- Boa tarde, doutor.
- Boa tarde.
- Desculpe incomodá-Io.
O médico não respondeu.
- Eu não vinha tão tarde nem mesmo viria incomodá-lo, se
não fosse a necessidade:
está escrito que precisamos uns dos outros... Hoje estava
a ver que teria de abandonar o Mundo, deixar os meus paroquianos, deixar esta
vida sem me ter realizado e reabilitado...
- De que se queixa? - cortou seco o
médico.
- De nada, eu não me queixo de nada; as
outras pessoas é que podem ter algo contra mim, ter-lhes desagradado, por
qualquer motivo... qualquer falta involuntária... de dia para dia as pessoas
tornam-se diferentes...
- Fale-me da sua doença - disse
rudemente o médico.
- É o coração. Este coração cheira o Outono,
ele sabe que é a melhor época para adubar a terra... ele sente o imperioso
dever de ser útil. Hoje, por exemplo, parece querer saltar, um aperto enorme
sufoca-me, sinto-me viver entre Céu e Terra.. As mãos e os pés tenho-os gelados,
os suores inundam-me o rosto.
- Tem feito algum
tratamento?
- Logo de manhã, quando pensei ser a minha
última hora, quis aparecer limpo de corpo e alma diante do Senhor. Amornei
um pouco de água e deixei-a correr sobre as poeiras do mundo.
Agora que me senti um pouco melhor dei cá uma saltada.
- O banho fê-Io reagir. Há quanto
tempo sente essa impressão?
- Deixe ver... o meu coração, nunca regulou bem... nunca
lhe contei... mas antes de ser padre fui homem do mundo...
Pareceu-me ver que o interesse do médico, pela minha
doença, tinha aumentado.
- Talvez isso possa ajudar o diagnóstico, Lembra-se de
alguns pormenores desse tempo?
- As recordações da juventude são imperecíveis. Os nossos melhores tempos! - Disse
eu, como se uma necessidade imperiosa
me forçasse a falar sobre aquilo que eu há muito tinha enterrado e pretendera
esquecer. O médico fez-me sinal para continuar e eu, pressionado pela
inconstância e, talvez, porque pensasse ter os dias contados e quisesse assim
penitenciar-me ou, sei lá, talvez por uns restos de vaidade e estupidez que não
conseguira sacudir, desfiei a largos passos alguns segredos da minha vida.
- Desde bastante novo fiz grossas
partidas a este coração. Enervava-me frequentemente, comecei a fumar desde
miúdo, sempre bebi sem regra. As noitadas sucediam-se e os amores passavam como
vendavais.
- Amores!
- Devia ter namoriscado uma centena de raparigas! E, coisa
estranha; amei-as a todas
- Essas recordações são-lhe salutares..
Está com outra cor. Conte-me tudo. Não compreendo como foi possível amá-Ias todas de igual maneira!
- Procurava-me destemperadamente,
doutor.
- Seria mais lógico procurar-se entre
os homens - Disse o médico rindo e talvez já esquecido dos velhos
ressentimentos.
- Não, não! Só a mulher e o homem
unidos podem atingir a felicidade e a partir dos quinze ou dezasseis anos eles
iniciam a dança do futuro...
- Casasse!
- Eu casei. Sim, casei, e só depois de minha mulher ter
dado vários passos em falso, me decidi pelo sacerdócio.
O médico não resistiu a me dizer:
- Foi a melhor maneira que o senhor arranjou para se
vingar.
- Julgo não ter sido esse o meu pensamento.
- O quê, a sua mulher engana-o e não se vinga? Não a mata
como quem esfarela um cão raivoso!
- Não. Abandonei-a muito simplesmente até ela desaparecer
na lama e no tempo. Só depois disso entrei para o seminário...
- À procura do homem, à procura de si mesmo.
O médico veio até junto de mim.
- Não se canse mais. O senhor tem necessidade de se
fundir, de agarrar, de ter perto uma mulher que o complete.
- Nunca!
- A sua doença é psicofisiológica.
E... essa força fisiológica pesa muito sobre o psíquico. Ou o senhor sai de
padre... ou bem podem, pais e maridos, acautelar as filhas e as esposas.
- Nunca! Preferia
acabar com os meus dias! Nunca trairei a minha missão de padre!
O médico olhou-me
de maneira desagradável.
- Já o auscultei,
não vejo mais nada que lhe possa causar esses suores frios e essas indisposições.
- Quer dizer...
- Quero dizer que
o senhor é um insatisfeito.
- Eu sei, eu sei. Sei que nasci para amar
- Então o casamento...
- Foi uma nova tentativa para a explicação do mundo onde
entrei sem ter sido consultado.
- Se fosse... recusava.
- Para lhe falar francamente... julgo que sim. Este mundo
é uma triste desilusão para os seres que detêm o raciocínio. Se não tenho ido
para o seminário, estava um farrapo.
- Não se pode dizer
que esteja muito melhor...
- É. .. a doença.
Tira-nos a vontade de, cuidar do corpo.
O médico
perguntou-me insidiosamente:
- Como conduz as
suas excitações.? Está claro que se excita .
- Reprimo-as.
- E onde deixa o
sémen? Guarda-o em tubos de ensaio para moldar o homem ideal?
- O ser humano bem
precisa de uns retoques.
- Vê. O senhor é
o próprio a não acreditar em Deus! Se acreditasse, sabia que nada mais há
a fazer! Deus criou o homem na sua perfeição máxima!Não pode modificar o que
Deus assim desejou! Deixe esta profissão ou então... escolha uma confessada
e...
- Nunca!
- Eu não lhe posso
fazer mais nada.
- Nem receitar uns comprimidos.?..
- Nem receitar comprimidos. Aquilo que
- Peço-lhe,
doutor: nunca mais me torne a falar nisso. Não sei se sabe o que faz um cão que
teve o azar de cair na lama e consegue salvar-se depois de um esforço imenso.
- Deixe-se de contestações inúteis; não
- O senhor é teimoso! Não me interessam os cães! Para rebater
essa teoria, mal equilibrada, bastava dizer-lhe que há indivíduos que são
presos seis e sete vezes pelo mesmo delito! O senhor só tem um caminho a seguir.
Se quer, quer, se não quer...
- Prefiro um estimulante...
- Estimulantes tem o senhor a mais. Vou
receitar-lhe um tónico neuromuscular e vitamina B1.
- Obrigado, doutor.
- Escusava de gastar dinheiro na farmácia. Eu
aconselhava-o...
- Bem haja, doutor. Quanto lhe devo?
- Cento e cinquenta escudos.
A resposta deixou-me perplexo.
- O o... do... doutor desculpe,
mas a falar francamente... neste momento não tenho dinheiro.
- Nós os médicos, não temos o supremo bem de poder
subsistir do ar e de boas palavras...
- Eu lhe pagarei, doutor, esteja descansado.
- Aconselhava-o a voltar ao tempo...
- Nunca!
- Não falo do que está a pensar. Falo da côngrua, dos baptizados, dos casamentos que o senhor deixou
de receber.
- A minha palavra não tem retrocesso.
- Os cento e cinquenta escudos cá lhe virão ter.
Afastei-me rapidamente. Os pensamentos sobre a conversa
que tinha tido fizeram-me esquecer que estava doente; avancei até à igreja.
O silêncio daqueles muros, a quietude das imagens influenciou o meu espírito
e o meu corpo, ambos caíram no suave nirvana e voltearam pelo infinito até
à saciedade.
Encontrava-me no
patamar da casa, olhando nem sei bem o quê, quando tive a sensação de que
alguém me observava. Voltei-me e dei com D. Matilde.
- Despertei-o padre? - disse-me ela sorrindo.
- Não... não... - murmurei num tom de voz imperceptível.
- Não vale a pena atrapalhar-se. Toda a gente sabe que
temos um poeta no meio destas serras...
Fiquei aterrado com
a afirmativa. Um padre poeta nunca foi visto com olhos muito sérios pelos
seus paroquianos. Sentia já o primeiro rasgão na minha capa santificadora.
Fora sem dúvida o médico ou D. Leonor quem espalhara a notícia pois só eles
conheciam aquele pequeno segredo.
- Escusa de se preocupar: com estas insignificâncias
A figura do médico
entrou-me no espírito e susteve as minhas regras de cortesia. Dona Matilde
agarrou-me suavemente pelo braço
A mulher do médico, elegantíssima no seu
- Corto à direita? - perguntou D. Matilde.
- Sim, sim! Faz favor.
Olhei a mulher do
médico. Um arrepio impertinente percorreu-me o corpo e eu, mais uma vez, como
tantas e tantas outras, senti
"Porque não fui gerado
À medida do meu pensamento?!»
Também eu pensava
que todas as minhas faltas eram fruto
de um corpo mal equilibrado. No meu
pensamento sempre desejei ser puro, bom, generoso e sempre fiz, sem nunca
compreender porquê, precisamente o contrário.
- Não esperava uma importuna logo de manhã!
- A senhora nunca é importuna. Desde que lhe possa ser
útil...
- Um padre é sempre útil.
- Há quem discorde.
- Não admira. Estamos no século das máquinas.
Daqui a pouco elas substituirão tudo... até mesmos os padres e, quando tivermos
necessidade de arejar o espírito... falaremos para a máquina e ela terá uma
solução para cada caso...até para os mais difíceis, não concorda? Se elas,
já agora,
- Sim, de certo
modo...
Eu não tinha a certeza de coisa alguma.
D. Matilde metia-me medo, sentia que qualquer indício de solicitude para com
ela lhe faria mal, a ela... ou a mim... por esse motivo não desejava que aquela
conversa fosse além de perguntas e respostas rápidas: todo eu tremia e no
rosto concentrava toda a tensão.
- Está aborrecido?
- Não, não! De
modo algum!
- Encontro-lhe um ar triste... não se
D. Matilde poisou a mão esquerda sobre
o meu braço. Tive uma leve tontura e deixei escapar um sussurro ininteligível.
- Meu Deus! Que
pálido está!
- Estou bem, estou bem! - respondi
apressadamente.
- Não está nada! Vou-lhe fazer um pouco
de chá - disse D. Matilde encaminhando-se para a cozinha.
- Não! Não! - exclamei tentando impedi-la,
porém, como não lhe queria tocar, não tive outra alternativa senão aceder
à sua vontade. Os dois preparámos as bebidas.
- Conversamos aqui - disse a esposa do
médico poisando a chávena sobre a mesa da cozinha.
- Mas...
- Não diga nada. Aqui estamos mais
confortáveis. Esta parte da casa é a mais quente, não acha?
- Isto é... rudimentaríssimo!
- Sinto-me bem, é o essencial.
Não respondi, todos os meus pensamentos estavam sufocados
por orações, muitas orações que se atropelavam a esmo, numa confusão
indisciplinada.
- Padre! Não me ouve? O senhor é sempre assim quando recebe
visitas? - disse D. Matilde rindo. - A sua cor é cada vez mais pálida... um
pálido terroso, não, o
- O quê? Como? Meu
Deus! Meu Deus, tem misericórdia de mim! - gritei desvairado caindo de joelhos
e implorando piedade
- Que é isso padre? Não vim num dia razoável. Sossegue.
- Não me toque, D. Matilde!
- Não me diga, padre! Coitado. Só agora
- Perdoe-me D.
Matilde. Estou num dia horrível! A senhora não faz a mínima ideia. Ah, este corpo! Este corpo!
- Venha cá.
Eu fui tremendo. D. Matilde agarrou-me por um braço e
levou-me para a salinha de estar. Depois de nos sentarmos um em frente do
outro, a mulher do médico disse-me:
- Olhe-me bem de
frente, padre.
Olhei-a fixamente e D. Matilde ficou paralisada;
eu sentia os meus olhos expelirem chamas e vi, pela primeira vez, a mulher
do médico vacilar. Era isso de que eu tinha medo, eu, era a cobra nojenta
e vil que absorve os encantos de quem a rodeia. Os meus desejos eram transmitidos
ao objecto desejado e perdiamo-nos num amor breve,
passageiro... que em mim se transformava
- Tem razão, padre, disse D.. Matilde sacudindo
violentamente a cabeça, o senhor é
muito perigoso ...é...tentador... é... poeta...
- Perdoe-me, D.
Matilde!
- Por que se fez padre?
Contei-lhe toda a verdade. Quando
acabei D. Matilde disse-me:
- Foi um grave erro que o senhor cometeu.
Desculpe desiludi-lo, mas deve deixar esta profissão. Eu vinha para lhe falar
de mim, dos meus erros, dos meus pensamentos, para que me ajudasse, mas, o
senhor, precisa de muito mais ajuda do que eu. Quando me viu...
- Não diga mais...
- O senhor não pensou
em mim como uma ovelha do seu rebanho, uma ovelhinha
que precisa de ajuda e lhe pede os seus conselhos, a sua amizade
desinteressada...
- Pelo amor de Deus...
A mulher do médico prosseguiu a sua ideia, indiferente à
minha súplica.
- O senhor viu sim, uma ovelha que se apresentava à tosquia!
Uma ovelhinha tresmalhada a quem o dono não trata
com as devidas atenções e recorre a estranhos para
- Por favor! - gritei escondendo a cara entre as mãos...
- Os homens, padre, mesmo os mais santos são animais interesseiros.
Bateram à porta.
D. Matilde e eu ouvimos, olhámos um para o outro, mas não fizemos um único
movimento. Quem era conhecia a casa e entrou. Tanto eu como ela aconchegámos
as roupas. Os passos vinham em direcção à sala. Eu quis falar, abri a boca,
mas não me saiu qualquer som. Reconhecera o andar do visitante e empalidecera.
No meu espírito as ideias não se coordenavam. Diogo Palhanca
apareceu à entrada. Eu não me consegui levantar e apontei imediatamente a
cadeira onde se encontrava sua mulher. Este ficou lívido.
Durante alguns segundos um silêncio agressivo
pairou sobre a sala. Depois o médico, voltando-se para a mulher, com evidente
animosidade gritou-lhe sem o querer mostrar.
- Que fazes aqui?
D. Matilde tinha-se recomposto do susto.
- E tu, que fazes
aqui?
- Não tens nada com isso! Responde ao
- Chegou o senhor inquisidor... quer uma vítima e...
- Não quero vítima nenhuma! Quero a verdade! - gritou desesperado
o médico, enquanto eu não conseguia encontrar uma ideia lúcida. Só D. Matilde
aparentava calma.
- Já sei a que vieste. Vieste pedir conselhos, não foi?
Tivemos os dois a mesma ideia. O padre é de opinião que devemos separar-nos
quanto antes.
- Eu!?
- Estava a brincar, padre. Mas o senhor ficou tão
encolhido que meu marido havia de pensar...
- Não sejas...
- Idiota. Já sei - disse a mulher do médico acabando a
frase.
- Doutor...
- Não, não, padre! - interrompeu D. Matilde, vou dizer
toda a verdade a meu marido.
- Não preciso. O que vi, basta-me. - Respondeu o médico
com os olhos a quererem-lhe saltar das órbitas.
- Não viste coisíssima nenhuma! E se imaginas que viste
desengana-te, porque a única coisa que vim fazer a casa do padre foi saber
qual a melhor solução para o nosso caso. E ele...
- Um advogado parecer-me-ia mais conveniente e com menos
riscos...
- Eu preferi o padre. Ele conhece-te,
- Já abriu. E tu... o melhor é ires andando.
- Não queres saber
a sua opinião.
- Desaparece! - gritou-lhe
o médico. Depois dirigindo-se a mim, cujo peso moral não me deixava sair da
cadeira, agarrou-me pela camisa, levantou-me dois palmos, disse-me duas obscenidades
e atirou-me desamparado sobre o meu suporte que se desconjuntou e me fez estatelar
no chão. O médico nem para trás se dignou olhar e saiu furioso. Naquele ridículo,
estado eu pensei desapiedadamente:
«Este tipo é
doido! Fica transtornado por ver sua mulher em minha casa e acha muito
natural ele sair com a mulher do amigo!
Bolas! Bolas! Eu sou padre! Ele devia compreender isso! Não podia suceder nada
de mal a D. Matilde! Foi injusto, foi injusto!» Depois, mais cheio de coragem
gritei enraivecido, mas infelizmente pouco convencido:
«O médico não tinha
razão! Não tinha
xx
Ia junto às tílias que bordejavam a estrada quando Clemente me falou.
- Também posso participar no monólogo?
-.Desculpe, não o tinha visto.
- Vai para baixo?
- Vou.
- Acompanho-o se não lhe fizer diferença.
- Terei até muito prazer.
- Como deve ter
notado, sempre fui contra o “diz-se e o fez-se” a tudo o que corra sem
consistência, mas ontem o próprio doutor Palhanca
falou comigo acerca do senhor...
Eu continuei calado e ele prosseguiu:
- Parece-me que encontrou a Matilde em sua casa...
Não ia jurar, mas tive a sensação que Clemente
- Que mal há
nisso? Eu sou padre...
- Não é costume um padre receber em sua
casa senhoras. E o padre é a segunda vez que assim procede... o povo começa
a murmurar.
Pensei na irmã de Clemente e sucedeu-me
o que eu nunca acreditaria: argumentei atacando quem desejava defender:
- Oh, o povo! O povo é uma grande cabeça
cheia de vento.
- Não diga isso! O povo não se pode menosprezar.
É uma força. Se ele fala é preciso prestar-lhe atenção.
Sem saber porquê, sentia necessidade de
me defender e tinha de o fazer nem que para isso tivesse de amesquinhar o
mundo.
- O povo continua a ser um rebanho de
carneiros: ele vai para onde o tocam.
- Desconheço-o, padre, o senhor não tem
razão de falar assim. O povo estima-o. Mas como todos os indivíduos, menos
cultos, ele acredita em tudo aquilo que lhe impingem. Basta que alguém lhes
fale ao coração, lhes diga meia dúzia de futilidades para que ele se comova,
se renda pelo sentimentalismo.
- Labregos! São incapazes de perder
trinta minutos por dia a ler um jornal ou um bom livro, mas passam horas
esquecidas a falar na vida alheia! Isto é... asqueroso!
- É o mal das
terras pequenas.
- É o mal de todas as terras, encontramos mexeriqueiros
em todo o lado.
- É o julgamento dos homens, padre!
- É o julgamento das víboras! Nenhum homem pode julgar o
seu próximo sem provas de culpabilidade.
- As aparências...
- As aparências não passam de aparências e nada
confirmam. «Alegatio et non probatio, quasi
non allegatio».
- A Igreja, que o senhor serve, muitas vezes condenou só
pelas aparências...
- Estamos nos fins do século, XX!
- A crítica é... digamos... um aviso para que a pessoa se
emende.
- Mas emendar de quê, não me diz?
- Quando alguém se exalta é... porque tem culpas no cartório,
padre.
- Então o senhor não acredita que eu tenha recebido sua
irmã e D. Matilde só para bem espiritual?
- Acredito. Dou-lhe a minha palavra de honra que nunca me
passou pela cabeça que fosse por outra coisa. Mas veja; o meu pai, os meus
irmãos e as minhas irmãs têm martirizado Leonor. O doutor Palhanca,
esse então, está pior que estragado com a mulher e com o senhor. Não lhe digo
nada. Ele tem um feitio dos diabos! .
Olhei Clemente e pensei na mulher. Dar-se-ia
o caso dele desconhecer as relações do
- Voltamos? - perguntei-lhe.
- Como quiser.
Ele retomou a conversa.
- Diogo Palhanca é capaz de dar a camisa, mas quando toma alguém de
ponta é incorrecto e às vezes ultrapassa-se.
- Isto
é diferente. Eu sou padre. Estou acima de qualquer suspeita. A minha missão
- O médico não pensa assim.
- Mas que ideia! Leva-se assim uma pessoa ao cadafalso?
- O médico, está desesperado e o melhor que o senhor tem
a fazer é afastar-se.
- Como, afastar-me?
- Mudando de paróquia...
Instintivamente pensei: «Começas a pagar os erros da juventude»
depois interroguei-me mais alto: «Mas a juventude terá de pagar pelos seus
erros?»
- O padre disse alguma coisa?
- Não, não!
- Eu sou amigo do Palhanca
e sei como ele reage. O senhor irá receber ataques de todo o género. Ele não
lhe perdoa. A primeira vez que tem uma questão com alguém, esquece com facilidade
e é capaz de tentar a reconciliação por sua iniciativa, mas na segunda toma-lhe
um azar de morte e enquanto, não destroi o adversário
não o
- Não posso.. Não estou acostumado a voltar a cara ao
perigo, não será agora, perto dos quarenta e cinco que vou começar.
- Se eu fosse padre e mesmo não temendo o perigo, afastava-me.
- Porquê?
- Por causa do escândalo.
- Que escândalo!
- Eu sei que esta teima entre um e outro só pode terminar
em escândalo.
- E que tem isso, se vem ao de cimo a verdade?
- A verdade vem misturada com muita lama e não só acabam
os senhores por ficar irreconhecíveis como salpicará as outras
Eu disse para mim: «És capaz de ter razão e, consciente
ou inconscientemente, defendes-te». Contra o que devia, continuei combativo:
- Para os homens se conhecerem é necessário mostrarem-se
tal como são.
- Padre, isso não adianta. Instintivamente, o homem
esconde-se. Como amigo dos dois...
- Aconselhava-me a que abandonasse a terra.
- Exactamente.
- Lamento não lhe fazer a vontade.
- Oxalá não se arrependa. Pense que não é só o seu
orgulho que está em jogo.
- Como padre,
devia ceder.
- Embora seja padre... não sou
hipócrita nem cobarde.
- Eu não pratico religião, no entanto
fui criado no seio de uma família católica e abandonei-a por ver o cinismo,
a hipocrisia, a subserviência dos seus ministros para atingir situações que
tinham planeado de antemão...
- Aí está! Eu não abandonarei o meu
posto por isso mesmo!
- O senhor não me deixou acabar. No entanto,
com o decorrer dos anos observei
- É um erro pensar assim.
- Padre, quer um conselho? Não tente modificar os alicerces,
do edifício onde o senhor não é mais do que uma simples janela. .. deixe-o
continuar como ele é, há perto de dois mil anos.
- O Clemente esquece-se que as pessoas
- O mundo pode estar muito diferente, mas não há ninguém
que não tenha necessidade de sentir o mistério nas instituições que advogam a
criação do mundo por um Deus desconhecido.
- Se...
- Se o senhor não é crente, admira-me muito como toma a
peito um assunto destes..
- Não é necessário ser-se crente para saber distinguir entre
o mal e o bem. Prezo muito a ordem e a amizade entre as pessoas, para poder
pensar que alguém vai alterar essa harmonia.
- Mas...
- A religião é necessária padre. Ela é a esperança do povo
e o povo tem necessidade desse sedativo para dominar o instinto do mal. Talvez
um dia, os governos possam substituir, com vantagem, esse ideal irrealizável
e todas as pessoas vivam felizes, quem sabe?
- Posso apresentar os porquês da minha atitude?
- Diga, diga. É muito difícil dar vista a um cego... mas
estou convencido que não é impossível. . .
- Eu não sou cínico, não quero tornar-me cínico; não sou
hipócrita, não quero tornar-me
- É lá consigo, padre. Pela minha parte... Limpo daí as
mãos.
XXI
Hoje sucedeu-me uma coisa desagradável:
Senti-me mal disposto e fui dar uma volta
pela «Estrada Nova». É a divisória entre a cidade, a montanha e o vale.
Num sítio pouco frequentado saiu-me à
frente o Zarolho, um indivíduo de mau carácter e temido em toda a região.
- Boa noite -
Disse-me ele.
Eu não o ouvi, tão distraído ia com os
pensamentos. Essa foi a minha única falta, o homem começou a insultar-me,
a tentar armar zaragata sabendo antecipadamente que levaria a melhor.
- Julga por ser padre, qu'é mais qu'os outros? - Disse-me
ele pondo-se à minha frente. Eu afastei-o suavemente do meu caminho com a
mão esquerda, mas ele deu-me tal pancada com a sua direita que eu cambaleei.
- Ah! Ah! O valentaço do padre quer medir
forças, hem!
- Não quero nada. - Respondi-lhe o mais
cordatamente possível...
- Não quer?! Isto é uma terra sossegada!
Ouviu seu barraco..! Ou você se vai embora ou eu
o meto no cano de esgoto, que é onde você merece estar... seu bandalho!
O homem metia-me medo e as pernas tremiam-me.
«Ainda se por ali passasse alguém». Pensava eu, pedindo a Deus que me ajudasse
naquele transe. Mas, nem viva alma pelas cercanias.. De um lado o castelo
silencioso, sorumbático, indiferente aos diferendos entre os homens; do outro
o vale com o ruído característico do anoitecer.
- Deixe-me passar. - Disse-lhe eu com o
tom de voz mais firme que pude arranjar. Todo eu tremia perante aquele bruto.
Um corpanzil enorme. Um monstro de gordura, de estupidez e de maldade, tudo
muito desenvolvido.
- Passar? Ah, ah, ah! Vou-te tirar as cuequinhas meu menino, ai isso é que vou!
- Esteja quieto senhor Zarolho! -
Disse-lhe eu tentando afastá-lo de mim e do cheiro nauseabundo a suor e a
vinho.
- Senhor Zarolho! Ah, ah!, ah! Tu sabes
muito! - disse ele agarrando-me pela aba da batina e. fazendo-me elevar nos
bicos dos pés.
- Dou-te dois dias
para desandares da cidade. Percebeste?
- O se...
senhor...
- Escusas de me tratar por senhor, meu safardana! Se eu
lá fosse à porta pedir-te alguma coisa tratavas-me por tu e sem a menor consideração!
Agora, como estás aqui sem defesa, desfazes-te em salamaleques. Deixa-te de
cinismo, seu vigarista! Ou prometes que sais da cidade ou eu racho-te ao meio
como se fosses um cão!
Eu tremia tanto que
senti vergonha de mim próprio.. Estava cada vez mais escuro e senti que tinha
de ceder perante a ignorância. Nisto ele largou-me a aba da batina e agarrou-me
um braço com tal força que tive de fazer um esforço sobre-humano para não
gritar de dor. Em seguida obrigou-me a ajoelhar e fiquei com um joelho em
terra, outro dobrado, e foi nesta ridícula posição que tive de continuar a
ouvir as exigências daquele selvagem.
- Sais ou não
sais?
- Veja o que está a fazer! - Balbuciei.
- Estou a perder a paciência, seu
vendedor de baleIas! Seu provocador de mulheres! Se
fosse a minha eu partia-te!
- Senhor
Zarolho...
- Vá chamar senhor ao... inferno! Se me
tornas a chamar senhor dou-te um pontapé pelas goelas que nunca mais tornas a
enganar ninguém! Partes amanhã ou não?
- Não posso abandonar a paróquia sem
ter quem me substitua.
- Não m'interessam
razões!. Tens dois dias. Ou julgas-te protegido pelo teu Deus? Ah, ah, ah! Grande
corja d'aldrabões!
Apesar do terror que aquele zaragateiro
me inspirava, consegui dizer de uma só vez e sem titubear:
- Eu respeito as suas ideias, o senhor
deve respeitar as minhas.
- Ideias! I-de-i-as!
Vocês nunca conheceram mais do que aquelas de quem vós andais a lamber os
pés. Sois uma súcia de salamandras, de lambões, de vigaristas! Piores do que eu que muitas vezes tenho de roubar
e de enganar para que os meus filhos não morram à fome! Vocês enganam por
hipocrisia! Estão sempre à espera de recompensa. Fazem figura de bons com
dinheiro dos outros! Canalhas!
- Senhor...
- Uma é para si, já
lá tenho o nome.
O Zarolho cuspiu para o lado.
- Se julgas que com isso me compras, estás enganado! Prefiro
viver como vivo, numa choça, do que andar, como tu, uma vida
inteira, acorrentado a essa organização de fanáticos, que só vê o homem
dentro de uma igreja. A adorar o quê? Não me dizes?
- Deus.
- Deus é tudo isto
que vês à tua frente! Num é preciso ir a uma igreja para ser bom... num é Preciso bater com as mãos no peito,
dez vezes por dia, para ser justo,
para se olhar para o seu semelhante como se olha para um réptil e num fazer
nada para
- Senhor...
O Zarolho levantou a manápula e deu-me
Soube no dia seguinte que o Zarolho
tinha ido ao hospital tratar-se de duas feridas profundas na cabeça e que tinha
jurado «tratar-me da saúde» logo que tivesse oportunidade.
Não sei se era por estar entre pessoas,
ou se por estar noutras condições de espírito a ameaça não me atemorizou,
fiquei sim, aterrado quando
pensei no que tinha feito: deixara um homem, um irmão meu, estendido no meio
de rochas, sem dar acordo de si, podendo morrer enregelado ou podendo ser
atacado pelos lobos..., só me preocupei comigo... procedi tal como ele e não
fui capaz de avisar alguém para ir verificar em que condições ele tinha ficado..
Como sou baixo e vil, murmurei, arrependido do mal que podia ter causado.
Durante quinze dias não se falou noutra coisa. A cidade
parecia um fogo de artifício. O médico voltou contra mim todos os seus conhecidos
e parecia um pregoeiro de banca montada e taxas em dia.
- Não o defenda! -
gritava ele para o Clemente, o padre é um canalha! Deixou o Zarolho às portas
da morte!
A sua voz era
forte e tão indicativa do fim que ele queria atingir, que poucos se voltaram
para o ouvir.
- Tenha paciência,
todos conhecem o Zarolho e ninguém duvida que foi ele quem se meteu com o
padre.
- Lá está você a
defender aquele tipo! Aqui não está em causa o atacante e o atacado! Ele devia
ter comunicado ao hospital, aos bombeiros ou a quem quer que fosse que estava
um homem ferido em tal ou tal
- O doutor se me permite...
- Diga. Mas convença-se que ele cometeu uma falta
inqualificável!
- Em parte.
- Em parte?
- Ele devia ter ficado nervosíssimo.
Não sei como tudo se teria passado, mas depreendo que o Zarolho o atacou, ele
defendeu-se nunca pensando derrubar aquela trave... ficou em estado de choque.
- Não, não me diga que o pobrezinho ficou
traumatizado.
O Vaz Antunes, com o seu ar muito sério,
comentou:
- Está certo. O Clemente queria dizer
isso por outras palavras: o padre com o susto ficou todo...
- Oh, pá, não sejas parvo, deixa-te de
graçolas porque o assunto é mais sério do que parece.
Todos riram
excepto o médico.
- Vocês podem-no
defender...
- Nós não o defendemos! - atalhou o Vaz
Antunes - Ninguém disse que punha as mãos no lume pelo padre! Mas daí a comparar
o Zarolho com o padre, que mais parece um pau de virar tripas, vai uma longa
distância!
- Lá estás tu! Eu queria saber se isto acontecesse com um
teu empregado, o que
- Que fazia? Essa é boa! Ninguém o mandava meter-se com o
padre!
- E quem te diz que não foi o padre que se meteu com ele?
-- O padre? Tomara ele que o deixassem em paz!
- Vê-se mesmo, que não pensas em mais nada senão encher a
barriga e...
- Ó filho, não achas que já temos aborrecimentos de sobra
para nos preocuparmos com um tipo como o Zarolho?
- É homem como tu, tem filhos como tu!
- Já sei, já sei; come e dorme como eu, etc. e tal, e eu
e outros como eu é que somos malandros que não ajudamos o pobrezinho, que
não o tiramos da lama, etc., etc., etc. Pois fica sabendo que esse animal,
pois não tem outro nome, já o empreguei na quinta umas nove ou dez vezes.
Sabes o que faz? Trabalha três dias por semana e o resto do
- Faz o que entenderes. O certo é que o
padre não é melhor que o Zarolho: ele é um abúlico. Sei isso muito bem! Ele
anda faminto...
- A quem o dizes... ele está uma carga de ossos!
Gargalhada geral.
- Não gozes.
O Guterres de Carvalho entrou na conversa. .
- Parece-me que tens queixas do padre?
O médico, corou.
- Quem não tem! Dei-lhe toda a minha amizade, recebi-o de
braços abertos e ele faz-me isto!
- Já sei; não te deixa ler os livros que lá tem em casa e
ainda por cima o Zarolho é teu amigo.
- Também tu? Todos os homens contam
- Então deixa o padre em paz!
- Que santinho me
saiu o rapaz. Pois convosco ou sozinho ele tem de se haver comigo!
- Bem, se tu vais,
e como dizes que ele anda a sair dos eixos, tens o meu apoio, mas só para
uma partidazita.
- Está calado. - disse o Vaz Antunes
-
Todos riram e o
médico respondeu:
- Era o que
precisava.
- Só para tirar conclusões ainda lhe
fazia uma barrela, mais não - disse o Bacharel.
- Já mudaste de ideias? - perguntou
Clemente.
- Não mudei, mas estou disposto a fazer
uma criancice. Já há tanto tempo que me sinto homem, que tenho medo de envelhecer
de um momento para o outro. Ora para que isso não aconteça assim de repente,
também quero entrar na brincadeira.
- Mas isto não, é brincadeira! - Disse o
- E nós ficamos sem padre? - perguntou
- Faz-te uma falta!
- Que fazemos?
- Vamos circuncisá-lo - disse o
médico muito convencido.
- Eu estava a brincar. - Disse o Guterres
- É a única maneira de se acabar com
um autêntico perigo público.
- Isso, pode trazer graves consequências!
- Não traz. Eu sei o que faço. Se me derem
carta branca prepararei tudo.
- Como?
- Não importa como. Deixem isso a meu cuidado e quando
tiver tudo pronto convido-os. Vai ser
uma garraiada com um touro velho. No fim, proponho uma ceata
na minha quinta. Que dizem?
- Caro doutor, és um anjo. Mas a ceata
não podia ser antes da garraiada?- perguntou o Vaz
Antunes, mais velho.
- Não. Temos de fazer tudo com o espírito limpo. Se vocês
não quiserem ir digam, que eu levo uns criados da quinta e aquilo não falha.
- Tenho pena de não poder assistir-
disse Clemente, mas vou amanhã para o Porto. - Contudo queria lembrar-lhes
que o padre é um homem e... nenhum homem se pode...
- Já sabemos o resto - interrompeu o médico. - Só vai quem
quer. Eu sei que o Guterres parte daqui a uns dias para África e os Vaz Antunes
estão muitas vezes em Lisboa. Se cá não estiverem tanto pior para vocês. Alguém
há-de ir. O que ele não fica é a rir-se do que tem feito. Oh, rapaz, quanto
devo?
- Paga tudo senhor doutor?
- Pago.
- São... cinco cafés... dez escudos.
XXIII
A notícia correu rápida. Por toda a cidade não se falava
noutro assunto.
A igreja ia-se enchendo. Os sinos não se ouviam, mas as
pessoas não paravam de entrar no templo.
Na rua, magotes de homens, comentavam o sucedido.
- A que horas foi?
- Por volta das sete. O Zarolho lançou os foguetes às
sete e meia.
- É uma besta! Nem os mortos respeita! - Mas quem lhe
disse?
- Não faço ideia! As más notícias voam! - Pobre homem! Já
me ia habituando às suas extravagâncias.
- Como foi?
- Ao certo, ninguém sabe!
- Parece ter engolido um tubo de comprimidos.
- Não o devia ter feito. Era padre!
- Ora essa! Era homem.
- Era condutor de homens, um escolhido por Deus para apascentar
o seu rebanho!
- Tentações do diabo!
- Qual tentações! Só um homem sem ideais, só um povo em
período de decadência, alberga semelhantes indivíduos!
A esta conversa, feita no largo fronteiro à Sé, juntaram-se
novos comentadores que chegavam em pequenos grupos.
- Afinal, ele não engoliu os comprimidos. Segundo ouvi
dizer, enforcou-se. O Zarolho ainda o viu com vida.
- Não pode ser!
- É verdade! Ele ia fazer as pazes...
- Olha quem! O Zarolho a fazer as pazes
- É o que lhe digo! Ainda arrombou a porta para o tentar
salvar!
- E depois?
- Chamou o médico.
- E a seguir?
- A seguir... não sei.
- Sei eu; foi deitar foguetes, foi esbanjar
- Não percebo porquê! Para mim, morrer de uma maneira ou
de outra, tudo é igual! O que eu não tenho dúvidas é que ele era um realíssimo
patife!
- Homem! Respeite os mortos!
- O quê, lamentar um safado daqueles? Nem pensar nisso!
- Todos perdemos a cabeça uma vez na vida.
- Ele era padre!
- E que tem isso?
- Já pensou quanto mal vai fazer? Um padre que se suicida,
um padre que vai arrastar com o seu exemplo milhares de pessoas.. Se um homem
tem responsabilidades, um padre tem essas responsabilidades aumentadas trinta
ou quarenta vezes! Veja o que se passa na Irlanda: Tudo começou por um choque
de comunidades religiosas encabeçadas pelos respectivos padres: um católico
e outro protestante. Agora os padres retiraram-se, e eles matam-se estupidamente!
- Não diga mais, não diga mais! Já hoje tínhamos falado,
no mesmo. Um padre é um homem, e qualquer homem pode ser padre. Eles são feitos
da mesma massa!
- Não discuto a desigualdade sobre esse aspecto!
- Ora essa. Então como a discute?
- Nem todos podemos ser padres!
- É o que lhe digo! O homem está para o
padre na razão inversa em que a essência está para a existência. E... contra
isto não pode haver duas opiniões!
- Então, se eu quisesse, não podia ser
padre?
- Poder podia, como pode ser aquilo que
desejar, desde que tenha capacidade para tal. Porém. .. Um padre como deve
ser um padre... você nunca chegaria a ser! Nem todos servem!
- Isso, são cantigas! Um padre é um padre,
como um engenheiroé um engenheiro, como um médico é um médico. E não me venham
com outras! Este era padre e veja o animal!
- Não diga asneiras, homem!
- Ai, só as suas ideias é que estão certas?
- Você não ofenda!
- Não ofendo nada! Mas se quer que lhe respeitem as suas
ideias, respeite as dos outros!
A discussão foi interrompida pela chegada de novos
indivíduos..
- Então o padre? - perguntou o que vinha na dianteira. -
Belo maroto, hem! Sempre há cada um! E nós a pedirmos-lhe
perdão das nossas culpas! A mim, nunca me apanhou lá ele! Não enganava! O
diabo o leve para as profundezas.
- Não diga asneiras!
- Porquê, por ser padre?
- O quê, um padre!?
- Lá vem outro com o mesmo! Um padre não é um homem?
- Aquilo nem era homem nem era nada! Um grande patife é
que ele era! Deu um tiro na cabeça para fugir às responsabilidades!
- Um tiro?!
- Pois então, e certeiro. O malandro fez aquilo sem dor.
Olhe, a bala atravessou deste lado para este, salvo seja. Nem ao menos ficou
para ali a espernear, o malvado!
- O homem mata-se e você ainda quer que ele sofra? Um homem
que se mata é porque sofre e sofre muito!
- Qual sofre! A alma devia ir negrinha como o carvão! Mas
aquilo não era alma, não era nada! Aquilo era um monte de esterco! Grande...
- Deixe-o lá.
- Qual deixo!
- Ele não deu tiro nenhum. Foram os comprimidos que
tomou... - Interrompeu um que estava ali desde início.
- Não me venha com histórias! Foi um tiro e um valentíssimo
tiro! Então eu não sei? Moro ali a dois passos! Ouviu-se «perfeitissimamente», homem! Até a minha Natália, que estava
na cozinha a preparar o café, veio ao quarto dizer-me: «Ó Júlio, ouviste»?
Ouvi, então não havia de ter ouvido! As casas são quase paredes meias!
- Pouco menos! Só estão três casas entre elas.
- Cinco.
- Três ou cinco, cinco ou três, não é tanto como daqui a
Lisboa!
- Mas um tiro... ,
- Se o ouvisse! Parecia de canhão! E a
Maria, a criada do menino Carlos...
- A amante!
- Amante ou criada, isso para o caso
não interessa! Ela bem o viu quando o foram buscar. A rapariga até estava fora
de si. «Ai se o visse, senhor Júlio, coitadinho, levava a cara cheia de sangue!
Nem parecia um homem, benza-me Deus». Olhem que a Maria não é rapariga para
inventar histórias! Não se perdeu grande coisa. Segundo ouvi dizer, o malandro,
andava metido com algumas confessadas.
- Oh, homem!
- É o que lhe digo. Pela salvação da
minha alma se não mo contaram!
- Eu nunca ouvi tal. Antes pelo contrário,
parece que o padre nunca se aproveitou de algumas que para aí andam a presumir
de
- Quem me contou é de confiança. Segundo ouvi dizer,
parece-me que ele foi intimado por um dos ofendidos...
- Por quem?
- Ainda não se sabe, mas quando isto vem ao de cimo. .. A
vida das pessoas é como
o azeite...
1
- Ora, o que havia de ser!
- Intimou-o a matar-se?
- Pois então! De outra maneira rebentava o escândalo!
- E se rebentasse?
- Se rebentasse. O povo rebentava-o a pontapés! E já viu
o que era isso? O falatório que iria pelo país?
- Mas a igreja está a abarrotar!
- Fanáticos! Aquilo são uma corja de fanáticos! O padre,
cobardemente, procurou o fim mais infame para fugir a deveres e obrigações,
e eles, esses anjinhos serôdios e cegos, ainda intercedem a favor daquele
poltrão!
- Não seja assim, Júlio!
- Não sou? Sabe que mais? Isto é tudo um rebanho! Um rebanho
de ovelhas tinhosas! Hipócritas, falsários, Judas capazes de vender a própria
família a favor de uma ideia que os protegerá das poucas vergonhas que...
- Pxiu! Cale-se!
- Calo-me porquê? Cale-se você! Ora
esta! Já viram o descaramento!
Num segundo, o Júlio, encontrou-se
sozinho no meio da praça.
Lá muito ao fundo, ele viu uma figura
negra, esguia, que principiava a subida em direcção à Sé.
- É o padre! Mas é o padre! Santo, Deus!
Eu, muito pálido, e a muito custo fui-me
- Santas tardes - disse eu.
- Sa... sa...
antas tardes, senhor prior.
Num gesto instintivo, o Júlio caiu de joelhos, agarrou-me
nas mãos e beijou-as sofregamente.
- Levanta-te,
levanta-te rapaz. Olha que eu não te posso ajudar... cuidado que me fazes
cair... a igreja...
- Está, cheia, senhor prior! Todos a rezar por vossa
reverência... Todos a pensar...
- Que eu tinha morrido.
- E vossa reverência aqui, são, escorreito... e rijinho!
Muito rijinho!
- Não muito, não muito. Isto, ainda não está
completamente bom!
- Louvado seja Deus que nos traz de volta tão querido
senhor!
- Bem hajas pelas tuas palavras, Júlio... São pessoas como
tu, doces de coração, sempre dispostos chorar o mal dos outros, que me fizeram
sobreviver. ...Foi por ti, sim, por ti e por outros como tu que eu quis viver.
Adeus amigo; tenho de ir. Aquela boa gente rezou adiantadamente pela. minha
alma. Tenho de agradecer-lhes.!
- Eu ajudo, senhor prior. Eu ajudo.
- Bem hajas, rapaz.
- Oh, senhor Prior! Que alegria! Que alegria!
- Segure-se bem, eles já o viram. Estão
ansiosos... Quero dizer, estávamos todos ansiosos... pedindo um milagre.
- Deus abençoado! É a apoteose de uma
vida!
- Que diz, senhor
prior?
- Não digo nada. Não digo nada, meu filho.
Eu ainda julgo que estou a sonhar!
Por entre a multidão, que me olhava atónita,
atravessei a coxia, dirigi-me para o altar. Rezei durante breves minutos.
Depois caminhei em direcção ao púlpito. Não se ouviu um pequeno barulho; as
pessoas viviam em êxtase o momento que estava a decorrer. A própria respiração
tinha desaparecido.
- Sei - disse eu, - que estais aqui para rezar pelo
descanso eterno da minha alma. Ouviu-se pela cidade que o padre se tinha
suicidado, que ele tinha cometido, essa loucura infamante da dignidade humana,
mas, mesmo assim, vós viestes. Agradeço-vos com todo o meu amor e com toda a
minha gratidão o vos encontrar aqui reunidos. Contudo, não seria justo que Deus
atendesse os vossos rogos em favor de alguém que atenta contra a vida. Todo
este burburinho começou por um pequeno boato que tinha todo o aspecto de
verdadeiro, devido às circunstâncias em que decorreu o acidente.
O que vou dizer não é a minha defesa,
mas quero esclarecer-vos, para que não subsistam quaisquer dúvidas no vosso
espírito
Hoje de manhã fui
transportado, de urgência, ao hospital. Sucedeu que ao tomar um comprimido
me senti indisposto e, sem saber como, encontrei-me tombado à soleira da porta,
lugar para onde me dirigira instintivamente. Aí tive a sorte de ser encontrado
pelo senhor Guilherme, o leiteiro, o qual, sem perder um minuto, me transportou
para o hospital.
Soube, naquele estabelecimento,
que a notícia da minha morte inundara a cidade. Ainda bem que assim foi! Por
esse motivo, tive a rara felicidade de conhecer mais profundamente os vossos
sentimentos.
Bem hajam todos!
Tenho a agradável impressão que ressuscitei no paraíso e que encontrei aí
toda a cidade. Deus vos pague todo o bem que me fizestes.
Voltei-me para o
altar, a cerimónia principiou perante uma multidão aterrada e que se fazia as
mais disparatadas conjecturas. No templo, com o pensamento em Deus, só eu.
XXIV
Fiquei estarrecido ao ouvir D. Matilde chamar por mim.
- Padre! Pa-dre!
Cobri instintivamente a cara e senti andarem os olhos, de
um lado para o outro, à procura de um sítio onde me esconder. Lembrei-me imediatamente
do médico e pensei:" desta vez não escapo.
- Padre!
- Do... do... dona Matilde - gaguejei a medo.
- O quê, está deitado?
- Posso entrar?
Não dei resposta e D. Matilde, como visse a porta aberta
e o quarto iluminado pela janela escancarada, entrou sem qualquer inibição.
- Outra recaída?
Olhei-a timidamente e respondi-lhe que sim, com o olhar.
- Perdeu a fala? -
Ao dizer isto tirou-me a roupa de cima do rosto.
0 menino não precisa ter vergonha. Faz favor de olhar as
pessoas de frente e dizer o que tem? Está com medo de meu marido? Ele foi
ver um doente e só volta daqui a duas ou três horas. Se é por isso,
esteja descansado.
- Sinto tonturas, dores nas costas, enfim, estou completamente
enferrujado.
- Éimpressão sua, não pode deixar abater-se com essa
facilidade.
D. Matilde sentou-se na beira da cama e continuou a falar
enquanto compunha o cabelo.
- A sua doença é fruto da sua imaginação exaltada.
0 senhor faz dos seus problemas catástrofes universais e isso não pode ser:
.. 0 senhor não é culpado dos actos de cada um...
Eu olhei-a agradecido.
- Toda a gente nota como o senhor anda... não deve continuar
assim, tem de reagir...
- Não pode! Mas que padre é o senhor que não consegue
modificar um estado de espírito que não só lhe é prejudicial a si próprio como
às pessoas que o rodeiam... isto é... às
pessoas que o estimam.
- Obrigado D. Matilde... é muita bondade da sua parte.
- Faz favor de se levantar. Espero-o na sala.
- Dói-me o corpo todo - lamuriei.
- Se é assim, vou esfregá-Io
imediatamente e dar-lhe um boa massagem.
- Não, não! Isso não! Eu levanto-me imediatamente!
D. Matilde soltou duas gargalhadas.
- Espero-o na sala. Dou-lhe dez minutos, tenho um assunto
importante a comunicar-lhe. Vá, despache-se.
Embora durante toda a minha vida sempre tivesse colocado
as calças cuidadosamente dobradas ao fundo da cama, lembro-me que naquele
momento, por mais que as procurasse não as encontrava, até que depois de ter
olhado para debaixo da cama, duas ou três vezes, só no auge da exasperação
as encontrei no lugar onde sempre me habituara a pô-Ias.
Suores frios corriam-me pelas faces e foi muito a custo que cheguei junto
de D. Matilde.
- Até que enfim! - Exclamou ela alegremente.
- Não tem importância nenhuma! Venha cá.
Com o seu à-vontade de grande senhora agarrou-me
levemente por um braço e levou-me até junto da janela. O sol bateu-me em cheio
nos olhos e eu pisquei-os como um pardalito
esbracejando alegremente depois de ter comido quatro moscas.
- Oh! - Exclamei pondo as mãos diante dos olhos - Mas, ainda
há pouco, tudo estava cinzento e triste.
- Desde o nascer do dia o céu se apresenta tal qual como
agora, sem uma ruga a ensombrar-lhe o rosto. Disse D. Matilde.
- Devo estar muito doente.
- Está. Psiquicamente está mesmo muito malzinho!
Eu sorri e D. Matilde prosseguiu:
- Não adivinha por que venho aqui?
- Não faço a mais pequena ideia.
- Prepara-se uma conjura contra o senhor.
- Contra mim?
- É verdade. Meu marido e alguns amigos não contentes com
aquilo que o senhor tem sofrido resolveram acrescentar-lhe mais uns pós...
- E a senhora...
- Não. Não pense que vim aqui atraiçoando
o meu marido só para lhe ser agradável. Não, apesar de meu marido ter muitos
defeitos e às vezes chegar quase a odiá-lo,
Depois, voltando-se
de repente acrescentou. - Não sei por que estarei eu... a contar-lhe isto
a si...
- Compreendo-a.. .
D. Matilde olhou-me
condoídamente como se dissesse: «Pobre homem! Como ele se julga importante
e conhecedor da alma humana!»
- Não quero fazer
de sua casa Muro de Lamentações e como vinha falar-lhe de um assunto que lhe
diz respeito é a ele que voltamos.
- Como a senhora
entender...
Falo da partidinha
que lhe querem pregar. Como atrás disse, venho avisá-Io
não porque esteja contra meu marido e a seu favor. Pelo contrário, não desejo
que o Palhanca seja vexado ou cometa uma acção menos
digna de que venha a arrepender-se mais tarde.
Eu olhei-a
pensativo.
- Agradeço-lhe imenso, D. Matilde.
- Não me agradeça, prometa-me antes que não sai de casa à
noite para sítios menos concorridos.
- Se for chamado por alguém aflito... não posso
recusar-me.
- Ah! Já me esquecida. Eles vão-lhe mandar o Sôlho ou Rolho. . .
- Zarolho.
- O Cara de Aço, um que foi pegador de toiros.
- Esse todo. Por causa dele ia-me denunciando.
O meu marido costuma ter muitos negócios com ele e tenho a impressão que esse
Silva Dias perdeu um bom cliente, mas mesmo assim recusou-se dizendo-lhe «Oh,
senhor doutor, francamente! Lá que o senhor me pedisse para pegar um toiro!
Agora um padre! Para mais... esses gajos são os únicos que não têm por onde
se lhe pegue!». Eu ri tanto que até chorei. Bem, agora depois de saber o que
se passa, prometa-me que não sai.
- D. Matilde!. Como quer que eu lhe prometa
uma coisa que só no preciso momento se pode resolver?
-Não me diga?
- Suponha. ...
- Não suponho nada. O senhor promete e eu acredito em si.
-D. Matilde...
- Não aceito desculpas! O senhor não vai e acabou-se.
Proíbo-o que o faça!
- Se...
- Nem todos os «se» do mundo, me demoveriam
da minha ideia. Tome atenção ao que lhe digo: com os homens o senhor ainda
tem algumas possibilidades de se bater.., mas
- Não se enerve D. Matilde.
- O padre não
conhece as mulheres...
- Se Vossa Excelência
o permite eu perguntaria: poderá algum homem vangloriar-se de as conhecer
verdadeiramente?
- Veja. Até o senhor
se atreve a brincar com os sentimentos femininos.
- Desc...
- Oiça! - Interrompeu
D. Matilde começando a ficar furiosa - O egoísmo do homem, a sua vaidade,
o nunca nos ligarem importância, atiram connosco para o absurdo, para a desconfiança.
O homem trata-nos como pequenos canídeos de luxo, aos quais, para manter calados
e satisfeitos, deitam de tempos a tempos uma palavra amável, um vestido, uma
pequena jóia, um mimo... mas nunca cuidando de ligar demasiada importância
a estes factos para que o infeliz animalejo não se transforme em sanguessuga.
Duvido muito que os homens, alguma vez, cheguem a conhecer as mulheres, padre.
Se o senhor, que está nessa situação, não as compreende, como poderá um mortal
seu semelhante, e sem estar apoiado na graça divina, tentar um passo em frente?
As palavras de D. Matilde saiam-lhe de
jacto e eu mantive-me quieto, encolhido e
- Diga o que tem contra meu marido?
- Nada, só lhe devo favores.
- Pode retribuir-Ihos, não lhe
dando aso a que proceda como um garoto impulsivo.
Promete?
- Prometo.
- Obrigado, padre. Confio em si.
- Só...
- Diga.
- Há um pequeno pormenor, e a senhora... ignora-o.
- Há?
- A mãe do Zarolho está doente e eu já a visitei.
- Foi ele que lhe pediu?
- Foi.
- Bom... mas agora já sabe... tenho a
impressão de que foi esse o nome que ouvi... de qualquer maneira não saia
de casa ao anoitecer. Está bem?
Não respondi. Tive a sensação que duas
forças antagónicas lutavam dentro de mim sem eu próprio ser capaz de as definir.
Fiquei a olhá-Ia enquanto se afastava, admirado
com a minha serenidade, admirado com a sensação de bem estar que sentia.
xxv
- O senhor aqui?
- Não me trate por senhor, qu'eu
não sou senhor nenhum.
- Vejo que ainda está ressentido com aquilo que sucedeu..
- O senhor fala de mais e com palavras
- Entre..
- Num é preciso. Aquilo que tenho para
- Então o melhor é lá não ir.
- Tem qu'ir.
- Ela já deita vida pelos olhos. Diz que o que quer é paz
e descanso; já conta noventa e oito.
- Bonita idade, Manuel. Nós não chegamos lá.
- Qu'é que disse?
- Bonita idade. Nós não chegamos lá.
- Mas não me chamou Manuel?
- Chamei.. E o senhor não se chama Manuel?
- Vossemecê senhor padre é teimoso! Lá Manel sou e pode-me tratar assim todas as vezes que quiser.
Mas se me torna a chamar senhor... leva-me cá um arraial de porrada que nunca
mais s'endireita.
- Está bem Manuel. Vamos lá então ver a sua mãe. Deixa-me
ir só paramentar que eu já volto...
«E agora?» pensei, enquanto, no meio do
desalinho do quarto, eu procurava a solução airosa para um caso difícil. «Vou.
Não tenho outro remédio. São muitos? São poucos? São aqueles que forem! Pelo
menos o Zarolho não irá espalhar que lhe deixei morrer a mãe sem a absolvição!
E D. Matilde?
- Vamos, Manuel?
- Estive cá a pensar... qu'o
senhor tem razão. A velhota não está tão mal como isso. Eu digo-lhe que o
senhor não estava e ela que morra para o ano se quiser.
- Agora que estou preparado tenho que ir. Para mais não
sei onde você mora. Pode haver uma aflição de repente... já está decidido.
Vamos embora.
- Num vamos nada qu'eu nã quero.
- Deixas morrer tua mãe sem sacramentos?
Tem paciência, Manuel, mas já que me chamaste eu tenho de lá ir!
- Minha mãe está mais rija que
Vossemecê senhor padre e do que eu.
- Então?
- Eu vinha enganá-Io.
Pagaram-me para o vir chamar e... eu vim e o senhor embora pudesse estar,
zangado comigo ia. Agora vejo que o senhor é um gajo porreiro. Até me
- Dou. Então por que não havia de dar! Mas vou ver a tua
mãe.
- Num vai porque nã chega lá.
Eles são muitos e o senhor leva uma fueirada nesses
cornos, salvo seja, que fica de pantanas durante
uns dias. Olhe qu'é o doutor e os criados. Se fossem
cá os pinocas da cidade ainda podia ter esperanças de se aguentar com eles.
Com aqueles? São burros que nem um tamanco! Já lhe digo que num s'aguenta.
Eu também queria ajudar a dar-lhe porrada e eles disseram que num queriam
lá mais bestas. Já vê, com aqueles num tem sorte nenhuma.
- Deixa lá. Deus há-de ajudar-me.
- Deus? Essa é forte! Qu'um raio
m'impisque s'eu acreditava
num Deus qu'ajudasse os homens a dar porrada uns
nos outros. Deixe-se d 'iludir a verdade, senhor padre!
- Que hão-de dizer de ti?
- Num dizem nada. Qu'hão'eles
dizer? Que sou um malandro? Que m'abotoei com o dinheiro?
Todos me conhecem! Que esperam de mim?
- Tu tens que te regenerar. Um homem de palavra vale cem
vezes mais que um homem de dinheiro. Eu vou ver a tua mãe. Agora que tu me
avisaste é mais fácil defender-me. Todos te olharão com mais respeito
- Confiam... mas
enfiam. Ná. Eu num m'importo
qu'eles num confiem. O senhor é que nã pode ir porqu'eles descascam-no.
É assim que começam as guerras... e as guerras fazem tudo mais caro, uma pessoa
quer ganhar e perde sempre! Perde quem ganha, perde quem perde. São sempre
todos a perder.
- Isto não é uma
guerra, homem!
- É assim qu'elas s'armam! Vai um dá um pontapé.
Vai outro dá um soco, o terceiro puxa por uma faca e o quarto desata aos tiros.
Juntam-se amigos de um, e de outro lado, e dentro em pouco está um país
pior qu'um burro lazarento!
- Oh, Manuel é
pela tua regeneração que eu vou. Tens de pensar nos teus filhos, eles começam a
ter compreensão e é preciso que as pessoas acreditem em ti.
- Agora desculpe-se com os meus filhos.
- Aqui, trata-se
de trazer ovelhas transviadas ao bom caminho.
- Nunca vi ninguém
beijar a mão de outro depois de levar uma valentíssima sova. Veja o que sucedeu
comigo. No dia em que eu soube que o senhor tinha morrido isso é qu'eu estourei foguetes. Foi cá uma alegria!
- Tu és doido,
Manuel!
- É o que lhe digo. Estou-lhe a contar
a si o que nem à minha camisa o disse. Já vê qu'os
homens não perdoam assim com duas tretas. Mas faça o que quiser cum raio que o parta, salvo seja.
- Tu tens razão, Manuel... mas tenho de
ir ! - Disse eu, sem conseguir dominar ...a minha estupidez, e vendo nitidamente
as carradas de razão daquele ignorante. Por mais esforços que fizesse, por
mais tentativas para deixar falar a consciência tinha sempre meios para desviar
o bom-senso e ouvir a voz do irracional.
- O senhor não aparece e está tudo
acabado.
- Enganas-te. .. Inventariam outro
estratagema, fariam pior, eu sei lá do que eles são capazes! Assim estou
prevenido, sempre tenho algumas possibilidades a meu favor. Se não me atacam
hoje, atacam amanhã ou no outro dia e eu ando sempre sobressaltado.
- Se soubesse não tinha aceitado a
incumbência nem o dinheiro.
- Não aceitavas tu, aceitava outro. Não
sabes que os homens se compram e vendem como se de castanhas se tratassem? Se
julgas que é mentira, agarra no jornal e vê quantos homenzinhos compras com um
barril de petróleo.
- Maldito dinheiro e homens malditos!
Ninguém os entende! Tanto faz ser um realissimo
- Não tive coragem para lhe dirigir palavra.
Aquele homem chamou toda a minha vergonha, mas ela não veio
e daí a momentos, aos gritos de: «mata-se, esfola-se! Padre maldito,
garanhão recalcado» esqueci completamente o Zarolho
e só pensei na melhor maneira de proteger a retaguarda. Acalmei, finquei os
pés ao solo e coloquei-me junto de um enorme bloco de granito.. Desta maneira
tinha os adversários só pela frente.
- Parem, em nome de Deus! - Gritei, não por ter medo,
pois sentia-me possuído por uma alegria diabólica que me atirava para a luta.
Gritei por instinto de dever. Eles responderam-me:
- Vai para o inferno
barregão imundo! - Encostado ao bloco a minha figura
tomava proporções grotescas. A lua iluminava todo o teatro de luta. Com um
desvio de corpo derrubei o primeiro contendor, os outros
- Maldito padre,
hás-de rebentar de impotência!
Eu, calado, concentrando todas as forças nas armas, continuei a tarefa com denodo
e meticulosamente. Tentava e conseguia dispersar os contendores por ser mais
fácil vencê-los dessa maneira.
Depois de uma boa hora de luta ficamos frente a frente só
dois adversários.
- Acabe com essa loucura, doutor!
- 0 médico teve um sobressalto; ele encontrava-se mascarado,
mas eu tinha-o reconhecido. Em resposta, Diogo Palhanca
redobrou a investida.
- 0 senhor e os seus comparsas não foram multo felizes. -
continuei sarcástico.
- Cale-se e lute seu cão danado!
- Saiu-lhe o osso difícil de roer, hem?
- Maldito! Não tivesses o balde e o cavalo marinho nas
unhas eu te diria...
- Já que assim deseja, deixe-me colocar isto em lugar seguro;
um deles é objecto
sagrado...
- Perjuro infame!
- gritou Diogo Palhanca.
0 médico era mais
forte que eu, mas, esgueirando-me aos contactos corpo a corpo,
- Para brincadeira já chega. Disse-lhe, tentando a todo o
custo nem o magoar a ele nem me ferir a mim.
- Lute. Lute seu cobarde reles! Quero
Num movimento felino agarrei-lhe a aba
do casaco e fi-lo passar sobre mim. Ele Ievantou-se
de repelão, mas o cansaço não o deixou ir muito longe, bastou-me dar-lhe uma
pequena pancada para o deixar inconsciente.
Encharcado em suor, com escoriações por
todo corpo, a batina em franjas, encostei-me
a uma rocha e fiquei a olhar os corpos que tinha à minha volta.
Procurava um livro que me ajudasse a enterrar
os pensamentos quando ouvi rodar a chave na porta e uns passinhos leves entrarem
tic-tic-tic, na direcção em que eu estava. D. Matilde
nem me deu tempo a levantar-me, pregou-me quatro bofetadas com as suas mãozinhas
frágeis e nervosas. Fiquei de tal modo confuso que balbuciei instintivamente:
- Peço-lhe perdão.
- 0 senhor! 0 senhor... não tem qualificativos
que o possam caracterizar. É... é... o pior dos homens. - Disse
a mulher do médico com as lágrimas caindo-lhe pelas faces.
- Não sei... por
que fui.
- Eu tinha-a avisado
do que ia suceder... o senhor prometeu-me não ir... se não fosse eu preveni-lo
nunca teria oferecido resistência.
Enquanto D. Matilde falava fui pensando no Zarolho e no
desconhecimento que ele, tal como ela, tinham um do outro.
- Está-me a ouvir... seu padre tão pouco padre?
- Estava a pensar que tudo terminou. Menti, tentando a todo
o custo salvar as
- Engana-se! - Disse com firmeza D. Matilde - veja o que
arranjou. - E D. Matilde tirou um papel da sua malinha. - A cidade inteira está
cheia deles. Que vergonha! Ao que descem os homens! Como são capazes... de se
afundar tanto!
- As mulheres não se compreendem e os
homens... «Os homens são difíceis» - Tentei dizer com graça, para desanuviar o
ambiente.
- Os homens! Neste momento, o único que detesto. .. é o
senhor!
- Mereço-o. Sei que o mereço!
- Quase me convenço que o homem mais santo
e mais justo não é digno nem de beijar os pés à mulher mais impura... Disse
D. Matilde com ar estranho.
- Por Deus!
- Como pode falar em Deus com essa desfaçatez?!
Senti-me desaparecer pelo soalho da casa.
Aquela mulher falava-me sem medo, reduzia- me à
expressão mais simples, ao animal sem adornos filológicos.
- Tentei fazer o
melhor...
- Não tentou! Não seja mentiroso! Se eu
o avisei e se o senhor me prometeu que
não ia... diga-me o que o levou a faltar ao compromisso que assumiu?
Reflecti uns instantes à procura
de uma explicação plausível. Como não a encontrasse respondi envergonhado.
- Não sei por que
procedi assim!
- Não sabe! Eis o irracional na sua
forma mais simples! Não sabe! Não sabe por que atacou... .
- Perdão D. Matilde,
fui atacado...
- Mente! Atacou! Atacou porque ia prevenido
e sabia o que lhe iam fazer. Atacou porque levou um cavalo-marinho enquanto
que eles o julgavam indefeso e só o desejavam agarrar sem Ihe fazer mal... Meu marido anda coxo, os outros, cada um
se queixa ou de uma perna, ou de um braço ou das costas e o senhor... de que
se queixa? Tome, leia! Veja até que ponto se afundam os homens.
«Carta aberta ao
padre».
«Entrou, este
homem, com pés de lã, nesta bela e nobre cidade. Todo o povo o recebeu de
braços abertos, Ihe testemunhou a submissão e apreço
que são devidos ao representante de Deus. Mal sabíamos nós que este enviado do
Senhor era o lobo vestido de cordeiro. Em poucos meses usava não só da sua
força espiritual, como da força dos seus punhos para impor as suas ideias a
quem tão gentilmente o tinha recebido.
A pacatez, o sossego
a que estávamos habituados desapareceu; nunca mais os nossos corações, a nossa
simplicidade de viver conheceu tréguas. 0 espirito
de Santanaz tomou posse do representante do Senhor.
Ele ataca a honra
das famílias no que há de mais sagrado e de mais puro! Abusa da sua posição,
do alto posto que ocupa, para saciar os seus instintos bestiais em donzelas
indefesas, ora pela vergonha que tais propostas lhes causam, ora pela idade
que não as deixa distinguir o cantar do rouxinol do assobio da cobra.
Por tudo o que
acabamos de dizer e ainda pelo muito que guardamos e que sairá a seu tempo
desde que isso seja necessário, vimos convidar este sujeito que faça uma
confissão publica e que deixe esta terra o mais breve possível».
- Que diz?
- É uma infâmia. - Respondi, sentindo ao
- E não o foi também, o senhor ir deliberadamente ao
encontro da provocação? Como quer esperar amor se vendeu ódio?
- Tentei chamá-los à razão...
- Como quer que alguém o ouça, se o senhor é o próprio a
fazer o contrário do que essa mesma razão lhe diz?
- Que me aconselha?
- Responda à carta. Agora... está enterrado até ao
pescoço, os papeis enxameiam a cidade, ninguém ignora os seus termos, pois bem,
refute-os se for capaz.
- Aconselha-me a que o faça?
- Não tem outro caminho. Pela minha parte estou paga.
- Que dizem, as pessoas?
- Não sei, ia a casa da Madalena quando me entregaram
isto. Depois de o ler retrocedi caminho e vim para aqui. . . sempre quero ver o
que diz a Madalena e a Le...o...nor.
D. Matilde repisou a palavra martelando as sílabas.
- A... D. Leonor.
- Consta que... são muito amigos...
- Consta...
- Bem, vou indo. Direi como o outro: «missão cumprida».
- D. Matilde! - Exclamei quando ela já se encontrava na
soleira da porta.
- Sim?
- Peço-lhe perdão... por tudo... prometo-lhe...
- Não prometa se não quer faltar. - A rir e sem parar
concluiu - O senhor tem boas intenções, é quase uma pessoa honesta... mas... o
coração engana-o demasiadas vezes... ele - não lhe deixa fazer aquilo que a
razão lhe dita. Tem um coração muito à flor da pele... cuidado com ele, padre!
Cuidado!
- Juro-lhe!
D. Matilde já não me ouviu, aos pulinhos, saltitante,
vi-a dirigir-se para os lados da casa de D. Leonor.
XXVII
Leonor ouvia a amiga com a mesma disposição de quem cumpre uma promessa imposta pelo destino.
- Ainda pensas no padre?
- Não sejas tola, Matilde!
- Ele movimentou-te a vida.
- Não sei de que maneira.
- Não acredito que tenha sido ele a usar de pretextos para
te levar lá a casa.
- Eu, fui lá a casa!
- Sou a única que posso testemunhar a veracidade deste
facto.
- Mentes!
- Claro que não te posso revelar o teor da conversa, mas quando saíste vinhas furiosa. Ainda minto?
- Agora dás para espiar os meus passos?
- Houve tantas opiniões acerca deste
- É verdade,
fui a casa do padre. E que tem isso? Tu também lá foste e contaste-me que teu
marido não ficou nada satisfeito. Disseste-me ainda que o padre tinha um olhar
de místico esfomeado...
- Contei-te
os meus passos, esperava que retribuísses com os teus.
- Sabia que
era o que desejavas. Não tive coragem. . .
-
Confiança...
- Sim, sei
lá, faltou-me qualquer coisa para o fazer. Mas não esqueci que me disseste
que, se quisesses, tinhas desviado o padre dos seus devaneios ascéticos e
acrescentaste. .. que não o fizeste ainda não sabes porquê, mas se teu marido
tem chegado um pouco mais tarde ou o padre se tivesse mostrado mais ousado...
- Tu
exageras!
- São
palavras tuas.
- Que
demonstram bem a grande amizade que nos une.
- Sim, de
certa maneira.
- Como, de
certa maneira.
- Depois de
casada nunca mais foste a mesma.
- O casamento,
Leonor, se contribui para a nossa realização e daí nos possam advir
muitos benefícios, exige, sem que isso se note, um refazer dos nossos
hábitos. É assim como um jogo de xadrez em que a mudança
- Estou cansada, Matilde. Não te esforces mais.
- Tu andas triste, Leonor.
- Esse tom plangente comove-me. Daqui a pouco estou nos
teus braços a verter gota a gota toda a minha desdita.
- São assuntos sérios, Leonor. Tens vinte e oito anos!
- Tenho ainda muito boa idade para viver a vida, é isso
que queres dizer, não é?
- Não. Quero-te chamar a atenção para o que podias ter
arranjado com a tua leviandade.
- Ah, ah! Proíbo-te que faças juízos a meu respeito. Só
eu me posso pronunciar por aquilo que considero leviandade ou não. As tuas
alusões a um assunto que tu não conheces em profundidade... carecem de fundamento,
portanto... seria melhor deixares esses ares de mulher austera e desceres
ao nível da pecadora que está à tua frente.
- Vê os transtornos que causaste ao padre!
- E a ti?
- A mim também, por causa do Diogo.
- Onde pretendes chegar com tudo isso?
- Onde pretendo chegar é que tudo isto sucedeu por tua causa.
- E onde eu quero chegar é que essa tua obstinação chega
a ser doentia! Quem te disse que fui eu a causadora?
- Pelos zum-zuns que ouvi...
- Desculpa, mas segundo depreendi, foste
- Enganas-te. Mas para satisfazer essa tua curiosidade mórbida
vou-te contar como as coisas se passaram. Jura que não contas a mais ninguém.
- Não tens confiança em mim, Leonor?
- Juras ou não?
- Juro.
- Juras pelo amor que tens a teus filhos?
- Juro pelo amor que tenho a meus filhos.
- Então senta-te e escuta: «Na verdade gosto imenso do
padre. Não sei como aconteceu, mas aconteceu. Todas as vezes que me encontro
junto dele sinto-me de tal modo arrebatada que seria capaz de cometer os piores
dislates sem me importar com as sequências inerentes.
- Mas tu ... sempre recusaste todos os homens! Chegava a
ter a impressão que os odiavas... palavra de honra... e isto não faça diminuir
a nossa amizade... mas no campo sentimental sempre te julguei uma complexada...
incapaz de realizar amor.
- Nunca aceitei de boa mente a possibilidade de sofrer os
momentos do parto e sujeitar-me aos caprichos de um bruto qualquer.
- Não é tanto assim.
- Durante uma vida a dois, tem de haver, fatalmente,
horas boas e horas más...
- Mas podes considerar-te, pelo menos, medianamente feliz?
- Em certa medida...
- Estás a ver. Respondes com evasivas.
A lapidação humana é ainda bastante imperfeita. Podes contar pelos dedos os
casais felizes. Cá em casa tenho o exemplo. Meus pais, os meus três irmãos e as
duas manas tudo casado, todos com filhos e todos discutem e se ofendem como se
de arruaceiros se tratasse... talvez estes edificantes exemplos me tivessem
fortalecido a vontade.
- E o padre?
- Apanhou-me de surpresa e, de repente, sem bem saber porquê,
dei comigo numa tentativa de adultério eclesiástico... - D. Matilde riu até
às lágrimas.
- O quê, tentaste e não conseguiste?
- É verdade. A bem, a mal, acariciando-o, molestando-o,
usando truques que eu própria me julgaria incapaz, o padre não cedeu um milímetro!
- E acusam aquele desgraçado de tudo e mais alguma coisa.
Conta lá! Conta lá!
- As minhas queridas manas sempre tão ciosas de guardar
o bom nome da família deram com uma carta do padre pedindo-me desculpa pela
sua atitude. Eu respondi-lhe culpando-o, injustamente, de me ter desencaminhado,
mas que eu lhe perdoava se fugisse
- Anda tudo doido! Os homens sentem prazer em se
agarrarem a ninharias para criarem problemas. O meu, anda impossível! Tu leste
a carta que eles escreveram?
- Tenho-a aqui.
- Se queres o padre... salva-o quanto antes.
- Gostaria que ele soubesse que não fui culpada.
- Descansa que ele sabe. A intuição não o deve ter enganado.
- Que pensas que eu deva fazer?
- Tu és mulher Leonor!
No entanto, eu digo-te a minha divisa: Insiste e alcançarás.
- Alcançarei?
- Oito e meia! Aah! Tu desculpa,
tenho de ir! Não posso demorar nem mais um minuto! O Diogo deve estar furioso!
Tu desculpa, querida... são horas de jantar e ele, ultimamente, não perdoa!
Tu desculpa, outra vez conversaremos sobre isto! Aparece. Vai lá a casa logo
que possas! Está bem? E... quanto ao conversado... deita moeda ao
XXVIII
Não havia ninguém: Pobre, rico ou miserável que não andasse
de papel na mão.
Havia muitos que mal sabiam juntar as letras e perceber
o conteúdo do que tinham entre os dedos, mas, nem esses, eram os menos interessados.
Todos queriam saber o que era aquilo e de que lado estava a verdade.
Tal como os autores da carta tinham pensado, a cidade dividiu-se
em duas facções: uns a meu favor, outros a favor dos signatários da belicosa
epístola.
Depois da saída de D. Matilde pensei no melhor que tinha
a fazer.
«Se mexo nisto, mais me enlameio. Mas se deixo esta infâmia
sem resposta, aqueles que têm confiança em mim vão perdê-Ia
e a minha vontade de servir a Deus e ao Mundo estará irremediavelmente condenada!
Em todas as missas, durante aquela semana, fiz saber que
no domingo falaria no largo fronteiro à igreja. No dia aprazado a cidade inteira
encontrava-se presente. Todos queriam saber como me defenderia. Eram dez horas
da manhã quando comecei:
- Meus irmãos, o
Evangelho de hoje tem
O que vou dizer não se limita somente à minha defesa, ao
enaltecimento das minhas virtudes e ao expurgo dos meus defeitos. Nem umas
nem outras atingem irredutíveis! Falarei de mim e do mundo tenebroso em que
vivemos. Desse mundo, que admite ainda em nossos dias, a discriminação entre
os homens; esse mundo que dá a uns o direito de serem invulneráveis e a outros
os faz rastejar, lambendo a lama e os restos dos mais poderosos!
A génese de todos os nossos males, ainda é insuficientemente
conhecida; mas de uma coisa estamos certos: compete ao homem desvendar esse
enigma e transformar tudo o que é mau em bem.
O tempo, na sua rotação constante, tem diluído os primeiros
princípios, a noção de verticalidade dos seres, tem abastardado as consciências!
Sendo um dos representantes de Deus na Terra, não tive a
felicidade de ser indigitado pelo Criador, nem como santo nem como mártir!
Os ataques que me são dirigidos repugnam pela distorção
das realidades.
Quem lêsse, de ânimo leve, o que
foi escrito, pensaria que sou um foco de disseminação amoral que pulula entre
os mais cândidos homens que o planeta abriga!
A verdade e só a verdade, me obriga a denunciar tal documento.
Faço-o porque ele indirectamente se reflecte na classe a que estou ligado
e lhe vai diminuir o prestígio e fazer perigar a obra de amor e redenção que
lhe foi confiada pelo divino Mestre.
Perdoai-me a maneira, um tanto brusca, como estou a falar.
Pareço um tanto irritado.., talvez esteja. Mas não é por isso que a minha
lucidez é menor. Falo-vos num tom alto para vincar bem que estou envergonhado
pelo que se passa nesta cidade... e em todo o Mundo.
De quanto sou acusado, só uma coisa é verdadeira: o eu me
ter defendido.
As afirmações que seguem e às quais darei resposta exaustiva
para estripar de vez o mal pela raiz, posso ordená-Ias
da seguinte maneira: Primeiro, nas ameaças encobertas pretendem insinuar que
tentei suicidar-me. Deus lhes perdoe, mas desde a minha ordenação, desde a
entrada para o ministério do Senhor, nunca tal me passou pela cabeça. E o
diagnóstico dado pelo hospital é bem significativo; afirma que o estado em
que me encontrei foi devido a uma indisposição súbita, a qual foi agravada
pelo enfraquecimento em que me encontrava.
Embora o recrudescimento da loucura humana seja um facto
incontestável, todo o cristão deve ter presente que só a Deus é permitido
chamar a si os seus filhos e os seus irmãos!
O suicídio é a negação da personalidade! O homem pode viver
cem anos, trilhar durante esse espaço de tempo um caminho de rectidão e de
justiça, mas, se no fim da jornada se suicida, podemos concluir que ele foi
durante toda a sua existência um frustrado, um despersonalizado que tentou
enganar a sociedade com a qual mantinha relações.
Normalmente, quando alguém comete este crime, fá-lo sob
o domínio de excitantes; de vinho ou de drogas alucinatórias. Estes desgraçados
são muitas vezes atormentados por problemas de homossexualidade, de incesto
ou qualquer outro crime contra a Natureza, mas nenhum destes aspectos os desculpa.
Há sempre tempo para voltar atrás: um homem desnorteado pelos pecadilhos da
juventude, não é um homem perdido. É, sim, um homem à procura de si mesmo.
Assim, o homem ou domina as suas tendências que o prejudicam
ou tem de abdicar dos seus direitos perante a sociedade.
A evolução deste mesmo homem seria uma ficção se a comparássemos
ao avanço da técnica e da economia. Este absurdo de retrocesso espiritual
humano e de avanço técnico ilimitado estamos a atravessá-Io
nos nossos dias. É um absurdo e uma realidade palpável com os quais temos
de lidar quotidianamente.
Outro ponto que os autores da carta encobrem, mas que naturalmente
me apontarão mais tarde, foi a da parte activa que os signatários tiveram
numa pequena escaramuça. Como ao princípio afirmei, não sou, infelizmente,
nem santo nem mártir e os
«Última e mais grave acusação: Dizem eles que ofendi donzelas
com propostas indecorosas. Deus sabe que tal não é verdade, mas eu estou pronto
e foi para isso que pedi a todos a vossa presença, eu estou pronto, a que
essas senhoras venham dizer publicamente o teor das. palavras que lhes dirigi.
Se existe alguém que se sinta ofendida, pode-o declarar imediatamente. E,
se provar pela palavra e pela expressão do seu rosto, que aquilo que afirma
é verdade, eu tiro de rompante este cabeção e esta batina e ponho-me ao vosso
dispor para receber o castigo merecido.
Ninguém aparece, não há acusação pública e real das calúnias
propaladas por intermédio dos papéis que circularam de mão em mão?
Tudo isto que vem sucedendo tem-me feito pensar sobre os
homens, sobre as convulsões endémicas que sacodem o mundo, sobre a maneira
e o prazer que esses homens põem na destruição de outros homens e como os
sobreviventes tomam a sua vindicta.
«Perdoai-me o tempo que vos roubo, mas, uma dor penetrante
rasga-me as entranhas minuto a minuto, hora a hora! Para que o meu sofrimento
seja repartido com equidade, eu tenho de clamar bem alto, de maneira a fazer-me
ouvir por todo o mundo, por esse mundo cego, ingrato e funesto que
Meus senhores! Meus irmãos no consenso universal, na luta
que todos travamos para deixar um mundo melhor, um mundo mais perfeito, mais
consentâneo, sem guerra, sem fome, sem aberrações humanas!
Meus senhores! É preciso gritar? Eu grito, não me importando
que pareça mal, que pareça descabido por sair do remanso a que nos habituámos.
Eu grito porque a minha dor está certa! E o meu grito sentido e profundo é:
Basta! Basta de tanta idiotice, de tantos enganos, de tantas falsas argumentações,
de tantas degenerescências atávicas, de tantos homúnculos!
Basta! Grito com todas as forças, a plenos pulmões, diante
de Deus e dos Homens!
Por mais que me diga: Tem calma, não te precipites, sê como
a maioria; deixa andar, para ti tens o suficiente! Não consigo conter-me perante
a força imperante que me segreda: Tu não podes viver no marasmo, na apatia
impotente que te faz andar de braços cruzados à espera que o destino tome
a tua vida nas suas mãos como se fosses um pequeno títere sem vontade própria!
Avança, avança sem medo de ferir susceptibilidades, sem medo de mostrar ideias
tuas, próprias de homem consciente!
Só tenho um norte! Só tenho uma direcção, um ideal que ofusca
todos os outros: O ideal do amor, do amor puro, do amor que
Basta meus irmãos! Basta por amor de vossos filhos, por
amor de ídolos, por amor de Deus, por algo que ameis verdadeiramente, parai!
Parai com as guerras e com a copiosa e estéril libertinagem que invade as
casas e se espalha por todos os recantos desde a mais modesta aldeiaà cidade
mais evoluída. Semeai os campos. Fazei produzir as vossas fábricas e o vosso
trabalho! Recusai terminantemente a pegar em armas contra um irmão vosso!
Eu torno a dizer-vos: Basta de falta de coerência, basta
de desonestidades, basta de apoios infantis para agradar a A,
B, ou C, basta de palavras sem sentido, basta de jantares faustosos, petulantes,
agressivos pelo que contêm de ofensivo a tanta miséria espalhada pelo Mundo!
Há milhões de seres que não ganham num ano aquilo que alguns
milhares desperdiçam num dia! E, meus irmãos, é preciso não esquecer que morrem
de fome, por dia, dezassete mil seres humanos. Isto não é um crime, é a maior
infâmia que pesa sobre a cabeça de cada um de nós!
Basta, meus amigos! Basta, meus irmãos! Vós fizeste transbordar
o cálice do meu descontentamento! Eu andava sufocado, mal podia olhar de frente
cada um de vós, porque me sentia culpado. Culpado por não ter coragem para
vos falar de Homem para Homem.
Basta meus amigos! Comecemos a nossa luta pacífica contra
a estupidez, a ignorância e todos os males que atacam o Homem.
Nesta vida tenho sido um pouco de tudo, e no mundo não passarei,
certamente, de uma ínfima parte do nada. Não é isso, porém, que me preocupa,
o que me começa sim a preocupar é a passividade bovina, autenticamente bovina
com que encaramos as maiores desgraças, os maiores atropelos, enfim, tudo
o que de muito mau acontece pelo Universo que habitamos! Não reagimos, não temos
mais que um simples gesto, um lamento fingido e duas ou três palavras de consolação
para enganar este ou aquele.
Estou convencido que mesmo o melhor de nós sente prazer,
embora momentâneo, com a desgraça do vizinho. E, não errarei muito, se disser
que, a maior parte das vezes, até gostaríamos que essa desgraça fosse um «poucochinho»
maior! Mas, oh natureza humana! Passado aquele mau
momento, aquele desejo insano, aquele pensamento improfícuo, no qual desejámos
que a desgraça se tornasse quase irreparável, lá estamos nós a oferecer a
nossa ajuda, a levar isto, a levar aquilo, a levarmos as nossas próprias roupas,
a oferecermos a nossa própria casa, a lamentarmos o sucedido, etc., etc.,
etc. Em poucas palavras: Cada um de
Pobres homens! Pobres irracionais-racionalizados,
aonde eles chegaram!
Hoje, em dois ou três minutos, matam-se milhares e milhares
de pessoas. E o mundo que faz? Sim, que faz ele perante morticínios como os
de Hiroxima e Nagasaqui,
onde num abrir e fechar de olhos desaparecem pelas portas da eternidade mais
de cento e cinquenta mil Japoneses! Que faz o mundo perante a exterminação
que se está a passar entre Árabes e Judeus, no final do século vinte? Que
faz ele, este doirado mundo em que vivemos? Esquece. Esquece e tapa a cara
como se estivesse arrependido e contrito para sempre. Porém, mal passam cinco
ou seis anos, aí está ele a cometer os mesmos erros, a repetir as suas ignomínias
e, por último, a penitenciar-se, a fazer mil promessas... nunca cumpridas!
Hoje, como atrás disse, matam-se aos milhares e... estou convencido que dentro
de onze ou doze anos se matarão aos milhões.. Mas estes milhares e estes milhões
quem são eles? Sim, quem são eles? Eu respondo entristecido e revoltado comigo
mesmo, perante a minha impotência, perante o eu não ser capaz de acabar de
uma vez por todas
Mas, se perguntarmos aos soldados, que empunham as armas
e se digladiam, por que o fazem: setenta por cento
não saberão responder!
Pobre mundo de estultos e de bonifrates! Quem serão os culpados
destas catastróficas carnificinas?
A resposta é fácil e não requer tanto esforço como os politiqueiros
querem fazer crer:
Os culpados, os verdadeiros culpados são os dirigentes dos
micro e dos macro Estados...
Esses senhores, espalhados pelo Mundo inteiro, a quem foi
entregue esse mesmo mundo por outros seres seus semelhantes, para que eles
os governem com amor, com lealdade, com equidade, que fazem eles? Possuídos
da loucura do mando, arrogam-se em salvadores de outros povos que não o deles,
imiscuem-se na sua política interna e externa com o maior desplante e à-vontade
como se estivessem a reger os seus próprios países, nos quais, por quaisquer
incongruências ininteligíveis, não são capazes de debelar os simples problemas
quotidianos que por eles lavram!
Que fazem então? Possuídos da loucura do mando, repito,
arrogam-se em salvadores,
Os poucos povos que ainda mantêm a sua calma, a sua dignidade
e seu bom senso, vivem aterrados e perguntam-se
qual será o dia em que os seus filhos, as suas mulheres e os seus lares serão
pasto da chamas da violação, dos sismos da loucura!
Quem pensar um pouco em tudo o que venho afirmando, verá
que uma grande parte do mundo, só consegue sobreviver devido à sua fé em Deus.
Um Deus universal, um Deus Árabe, um Deus Chinês, um Deus... Sueco, um Deus
Russo, um Deus Congolês, um Deus Português... um Deus que se encontra em todas
as nações e que é necessário descobrir, que é necessário amar porque só em
torno Dele, só imitando-O, os nossos pensamentos,
as nossas palavras e as nossas acções serão coerentes, benévolas e próprias
de seres racionais que somos!
A minha revolta, os momentos em que saio do caminho calmo
e generoso que desejo seguir são motivados, perdoai-me a expressão, por todos
os acéfalos racionalizados que o Mundo alberga!
Eu passo em revista todos, todos aqueles que, de um extremo
a outro, vão estoirando de fome e de inacção, até àqueles outros que rebentam
de indigestões. Percorrendo toda esta feérica cáfila que se vai enganando
e matando com um sorriso nos lábios, que tenta
Meus senhores e meus irmãos! Quem pode ficar insensível
perante todo o mal que é insuflado no espírito da juventude, essa juventude
que dá os seus primeiros passos na vida e que é educada sob o signo do ódio
e da violência?... Quem são os culpados? Quem? Nós os homens, nós os sábios,
nós os artistas, nós os médicos, nós os engenheiros, nós os militares, nós
os burros! Sim, os burros humanizados, que pomposamente envergamos o nome
de homens, como se só isso nos bastasse para vivermos! Que tristes nós somos,
meus amigos!
Meus senhores, a realidade é triste, muito triste, mas nem
por isso deixa de ser menos verdadeira. Não há sábios, não há artistas, não
há... nada, nada! Há sim, uma corja de ignorantes que servindo-se das maravilhas
do Infinito se apoderam delas e deixam morrer milhões e milhões de seres em
condições difíceis, senão impossíveis de descrever!
Basta, meus irmãos! Basta de guerras! Basta de fomes! Basta
de aleijões provocados pelos erros dos homens contra a Natureza! Essa Natureza
espiritual e material que eles amesquinham com um desaforo e um delírio inverosímeis!
Os governantes têm de ter muito de santos, de competentes
e de justos, só assim se evitará que as nações mais prósperas deixem queimar
toneladas e toneladas de cereal enquanto por outro lado as nações mais pobres
vêm morrer os seus filhos à míngua de pão!
Não posso, contudo, conceber, que umas nações trabalhem
para as outras. Que umas sejam as obreiras e outras vivam preguiçando à espera
das ofertas da irmã mais rica. Sou apologista, sim, que terminem as fronteiras
entre os povos, que a divisão demográfica seja mais equitativa e que os técnicos
possam percorrer o Mundo, aconselhando aqui e além os melhores processos de
tirar rendimento do solo. Que esses mesmos técnicos aproveitem o que muito
há a aproveitar nas chamadas nações pobres e subdesenvolvidas, pelo aumento
racional de fontes de energia até agora inertes e sem qualquer proveito. Que
eles, esses técnicos, não possam ser
influenciados pelos politiqueiros de salão que se arrogam o direito de impedir
o progresso só porque assim pensam manter o equilíbrio do Mundo!
Estou ainda convencido que as guerras se mantêm porque os
grandes industriais de armamentos têm de os vender e, por esse motivo, eles,
apoiados pelos seus governos, fomentam, inconscientemente, pequenas rixas
que de um momento para o outro se transformam em guerras sangrentas.
Quem constrói carros de combate, bombas orbitais, foguetões
também pode construir tractores, charruas, debulhadoras, enfim, todas as alfaias
agrícolas que o mundo necessita e veremos como em poucos anos, a face desta
galáxia que nos abriga se apresentará diferente.
O mundo é uma fonte inesgotável de recursos e aqueles que
obsessivamente proclamam o contrário, fazem-no, ou porque desejam que as suas
palavras sejam tomadas em tom de profecia comentada em todo o Mundo, ou, então,
porque são loucos inconscientes e querem-se consagrar por meio de palavras
bombásticas!
Vivei, deixai viver e ajudai a viver é o único lema que
vos deve nortear em todo o tempo que tiverdes, o favor da vossa existência!
Meus irmãos, meus senhores, reparai como um minúsculo papel
pôde provocar tudo o que acabei de vos dizer. Oxalá estejam tão saturados,
como eu, da imbecilidade humana e, sem ou com algum esforço, comecem a combater,
a partir deste momento, essa negação da vida.
Demorei-vos muito. Não foi minha intenção ser tão extenso,
mas a matéria era vasta e não a poderia resumir em duas palavras. Perdoai-me
a estruturação do que acabais de ouvir; os motivos saíram ao «Deus-dará»;
foi o meu coração que falou e ele desconhece a ordenação metódica dos
assuntos: fala pelo sentimento.
Que a bênção de Deus e o Seu perdão desçam sobre todos nós!
Que, de hoje para o futuro, sejamos melhores do que fomos até aqui; que não
levantemos calúnias infundadas, nem corramos atrás de boatos falsos, mas sim,
que procuremos uma vida sã e de amor ao próximo. Que o nosso coração seja
vulnerável aos males alheios e que os procuremos remediar desde que peçam
a nossa ajuda. Que sejamos como o pedagogo de alta estirpe que põe todo o
seu saber à disposição dos discípulos, mas que tal como ele não nos deixemos
cair nas exaltações extremistas que nos façam ser demasiado severos ou demasiado bondosos. Aquilo que devemos
ser tem de pesar na balança da justiça. É ela que terá de nos nortear por
toda a vida! Que assim seja para o bem do Mundo!
XXIX
O Sol lançava os últimos olhares sobre a serra.
Envolvido nos pensamentos dialogava com as ideias, sem me
preocupar com a noite que se avizinhava. A travagem brusca de um carro fez-me
sentir que alguém parara a poucos metros.
- Padre.
Sobre o meu corpo caiu o peso do mundo. Ainda tentei dar
alguns passos, mas a voz insistiu:
- Padre.
- Leonor - sussurrei.
- Não me tinha ouvido?
Respondi-lhe mentalmente: «Não tive coragem para a ouvir»
- É natural que esteja zangado comigo... mas depois das suas palavras... venho
pedir-lhe desculpa...
- Estou arrependida pelo que fiz. Exaltei-me... portei-me
bastante mal. Por minha causa podia ter perdido a vida, a honra, toda a
dignidade...
- Não exorbite as suas culpas.
- Podia ter-lhe arruinado a carreira, padre.
- Não é a minha carreira aquilo que me preocupa...
- São as pessoas.
- Nem sei. São, pelo menos, as minhas ideias, o meu
misticismo egocentrista, pessoalíssimo. .. desprovido
da mais elementar caridade para com o próximo...
- Como pode falar assim! O seu sermão
- Sou... nada mais que fachada. Sou um dos frutos podres
que o drama do Universo sustenta e acredita... eu sei...
- Não seja incoerente! Que ideia é essa de querer tornar-se
santo em dois dias? Não pode transformar o seu espírito e o seu corpo de um
momento para o outro.
- Tenho de transformar.
- Que tontinho! Não vê que não pode. Não vê que não deve.
- Não devo porquê?
- E por que não? Por que não hei-de viver, se a minha ideia
é essa!?
- A sua ideia não vive isolada...
- Não é impossível atingir o que todos pensam inatingível...
- Só pensa em Deus, padre?
- Penso em Deus e no ser humano. O inatingível é
precisamente o ser humano. E eu não posso acreditar que passem mais vinte anos
sobre a Humanidade sem que ela se capacite que tem de viver de braços dados,
trabalhando para um fim comum!
- Isso está a obsecá-lo. padre.
Venha, vamos continuar a conversa dentro do carro. Ofereço-lhe um passeio
até à serra.
- Não acho muito conveniente. D. Leonor.
- Outra coisa que o obceca: o demónio do
- Em parte... sim e não. Não é tanto o preconceito. . .
- Prometo... Juro comportar-me honestamente.
- Não... não vou.
- Não confia em mim.
- Está bem. Vamos.
- Leve o padre o carro: Aqui tem as chaves.
- Mas...
- Conduza.
Durante alguns momentos o silêncio viveu connosco. Tanto
D. Leonor como eu deixámos correr os pensamentos
sem mesmo os
- Voltamos para trás? - perguntei à entrada da serra.
- Não tenha medo. Por que tenta separar o espiritual do
material? - continuou D. Leonor - O senhor é um padre do ano dois mil. A Igreja
de hoje não pode viver de preconceitos, de tradições contraditórias com o
tempo actual. O senhor, se quisesse, podia deixar o sacerdócio, viver a sua
vida... a Igreja, mais cedo ou mais tarde, tem de sofrer uma nova reforma...
- D. Leonor...
- As suas ideias são semelhantes às que eu me esforço por
lhe mostrar. Simplesmente, o senhor, tem medo! Medo de se deixar arrastar
pelos seus impulsos, pelos seus desejos... por esse motivo prefere que a Igreja
continue espiritualista e evangélica para assim escapar ao contacto com o
mundo. A esse mundo a que é capaz de lançar palavras, muitas das quais o senhor
não tem a certeza da sua validade. Faz isso para convencer os outros e ao
mesmo tempo tentar convencer-se a si próprio.
- Como é inteligente, Leonor.
- Sou-lhe franca.
- Voltemos para trás..
- Parece um ratito assustado. Ontem, enfrentou milhares
de pessoas, tomou a forma de um gigante consciente da sua força e certo dos
seus ideais. Hoje não faz mais se
- Está bem.
- Chegámos. Foi um saltinho. Saímos?
- Não terá frio?
-- Não. Repare... a noite.
- O ar é cortante!
- Estamos no ponto mais alto do país. Temos este reino a
nossos pés e possuímos todas as condições para ser felizes...
- Voltemos, Leonor.
- Não sente a natureza...
- Voltemos, Leonor. Estes abismos, esta beleza selvagem,
estas pedras e o resto de neve...
- Somos os grandes senhores destas paragens.
- Voltemos, Leonor. Se nos vissem, que diriam?
- Sente-se culpado?
- Não... Mas tenho que respeitar...
- Se não tivesse?
- Se não tivesse... seria diferente...
- Poderia gostar de mim?
- Voltemos, Leonor.
- Poderia?
- Eu gosto de si, Leonor.
- Como mulher?
- Como amiga.
- Vamos para o carro.
- Leonor!
- Padre.
- Leonor! - Não me faça isso! Não me beije! Leo... o... nor... uf Tu... comes-me a
- Tu não podes viver sem amor, padre.
- Não me sussurre palavras ao ouvido!
A Leonor prometeu-me...
- Gosto tanto de ti. .
- Foi para isto que me convidou a vir consigo? Largue-me
os dedos, não, por favor, não! Não me sugue... não me mordisque os dedos,
Leonor eu perco-me? Eu perco-me! Meu Deus! Meu Deus!
- Juro-te, meu amor...
- Não! Vamos embora. Dê-me as chaves.
- Não acredito que te queiras ir embora.
- Não, não... me... deixe-me! Palavra de honra que
quero... Leonor!
- A tua sensibilidade. Onde está a tua sensibilidade? Será
que a perdeste ao entrar para o sacerdócio?
- Leonor não me toques, por favor! Vamos embora.
- Eu esperei por ti, meu irmão do amor, meu paraíso infinito...
tu és o único... Tu foste o único por quem este coração vibrou. . . serás
o primeiro e o único... o único meu amor!
- Não me aperte Le oo...nor.
- Juro-te...
- Leonor querida. Meu amor... perdoa meu Deus, Leonor, Leo... nor. Eu não devia meu
Deus, Leonor, eu não... Meu Deus...! eu não... eu não...
xxx
- Maldito padre! - disse entre dentes - Ainda devo ter
algum pedaço de vidro na perna. Tenho de lancetar isto.
«Cão danado! A tua exuberância não durará muito. Não
descansarei enquanto viveres em sossego. Eu te direi as palavras lindas que
babujaste! Em quinze dias todos as esquecerão, meu louco inconsciente!
Palavras de amor, de fraternidade, de disciplina imanente!
Louco! Como se fosse possível disciplinar os homens! Não és mais do que um
retórico infantil, que lança palavras sem proveito e sem finalidade.
Os Homens são luta, são movimento, são
Eu te darei a paz e o amor, padre néscio! Vais ter guerra,
guerra sem tréguas e sem quartel que não conseguirás dominar com tanta facilidade
como até aqui. Hás-de tornar-te mil vezes pior que os outros! Hás-de amaldiçoar
as palavras que disseste! Retractar-te-ás sem rebuço e sem pudor! Hei-de causar-te
tal traumatismo que serás tu próprio a entrar de braços abertos, cantando
salmos, na trápula que eu terei o cuidado de te
preparar! Ai! Uf! Maldita dor! Maldita perna! Tenho
que ver o que é isto.
- Agora falas sozinho?
- Deixa-me! - disse
Diogo Palhanca para a esposa, sem mesmo olhar para
ela.
- É sempre a mesma palavra. Antes de casarmos não te calavas:
dizias-me tudo o que de mais belo ouvi. Escreveste-me cartas que eram inesquecíveis
poemas de amor. Agora... nunca a mais leve amabilidade, nunca o mais leve...
- Não sejas idiota! Não vês o que estou a fazer? Não me
aborreças!
- Só consegues
aborrecer-te comigo. Quando estás com os teus amigos e...
- Por amor de Deus... cala-te! Já me disseste isso cem
vezes!
- Digo e repito. Não me calo! Falarei todo o tempo que me
apetecer. Tenho os mesmos direitos que tu, tenho os mesmos problemas que tu...
estou farta de servir de espantalho e de peça decorativa! Hei-de falar todo o
tempo que quiser e ninguém, entende bem, ninguém me proibirá de o fazer!
O médico foi para o outro lado: colocou o pé sobre um pequeno escabelo e continuou, bastante curvado tentando tirar o vidro, que ainda se devia encontrar na perna.
-
- Continuas a ofender-me?
- Deixa-me... falava com o vidro.
- Desculpas! Começo a não gostar das tuas meias palavras,
das tuas ordens, dos teus desejos. Estou farta! Ouve bem. Estou farta da tua
importância hipócrita e pedante que te faz pairar muito acima de tua mulher
e dos teus filhos! Temos de resolver o nosso assunto o mais rápido possível...
se estou mais tempo nesta situação dou em doida! Não consigo suportar por
muito mais tempo este inferno, esta incerteza, esta tensão acerca do dia de
amanhã. Da última vez
- Faz o que quiseres. Irra! És aborrecida! Pegas por tudo
e por nada!
- A culpa é tua! Vê o teu interesse. Dizes: faz o que
quiseres, sem uma explicação, sem te preocupares a verificar os contras que vão
aparecer!
- És tu quem deseja partir.
- Desejo porque me tratas pior do que uma criada! Aqui em
casa sou um trapo velho a que limpas os pés sem-cerimónia e sem piedade! Começo
a compreender... as tuas palavrinhas doces vão-se escapando, aos poucos, para
a Madalena... oxalá eu me engane...
- Estou ocupado. Estou aborrecido. Não quererás guardar
as recriminações para outro dia? Por favor...
-Não. Estas deploráveis cenas...
- Agradeço-te, peço-te que me deixes, que não me
aborreças, deixa-me.
- Deixo. Deixo sim, mas primeiro terás de ouvir tudo quanto
eu quiser. Terás de saber que não sou tão estúpida, tão inculta e tão néscia
que não perceba as tuas palavras, os teus mutismos, as tuas sendices! Foram anos de longo inferno; aqueles que passei
contigo. O nosso conhecimento nunca passou de intimidades de alcova...
- Nunca te faltou nada.
- Isso não é suficiente. Uma mulher tem que sentir o marido,
tem de saber que ela é tudo para ele, tem de saber que ela é a sua
- Tu nunca viste em mim mais do que um objecto, um objecto
de luxo de que te fartaste. Não tinhas inclinação para o casamento? Por que
havias de escolher para tua vítima uma mulher simples e indefesa? És um cobarde!
Debaixo do teu silêncio só há cobardia e peçonha! Detesto-te.
O médico soergueu-se, bateu as palmas e disse:
- Bela tirada! Final do drama. Os espectadores emocionadíssimos
aplaudem freneticamente e a artista sai de cena. Podes sair. Deixa-me. Vai-te
embora. Daqui não levas mais nada.
- Cretino, imbecil, histrião que me fazes perder o
sentido da educação e do bom senso. ..
- Matilde, não exageres!
- Escusas de gritar! Passarei aqui todo o tempo que me apetecer.
-Não passas! Sai! Sai!
- Deixa-me, não sairei. Estás a magoar-me, bruto,
selvagem.
- Eu perco a cabeça Matilde... por favor vai-te embora!
- Não!
O médico, deixou a mulher, saiu para a sala contígua e
fechou a porta. D. Matilde deu a volta e entrou pelo lado contrário. Diogo Palhanca debruçado sobre a perna fez que não deu por ela.
- Não me queres ouvir?
- Nunca tens paciência, nunca tens um momento para me
ouvires, nunca! Há dois meses que não me diriges palavra. Há dois meses que não
tenho marido, há dois meses...
- Que não tens relações sexuais, não é isso! É aí que tu
queres chegar, não é? És... és imunda! Vai-te! Vai-te! Desaparece da minha
vista! Só pensas na porcaria... só pensas...
- Tu é que és imundo, sujo vil! Nunca, nunca mais te
perdoarei as tuas palavras! Nunca! És infame... um homem sem vergonha, um...
O médico olhou aterrorizado para a mulher. Ao levantar
repentinamente a cabeça, devido ao seu grito exclamativo, erguera os braços. Na
mão direita encontrava-se o bisturi. D. Matilde tinha-se curvado naquele
instante e ele sentira o fio da lâmina penetrar-lhe no corpo.
D. Matilde deu um profundo suspiro e caiu desamparada,
arrastando consigo o afiadissimo estilete.
- Ma-til-de... Ma-til-de - balbuciou o médico.
Diogo Palhanca não sabia o que
fazer. Ora esfregava a testa, ora corria aos armários à procura de pensos
que não encontrava. Ajoelhou-se junto à mulher, olhou o estilete com os olhos
muito abertos e não teve forças para lhe tocar. Depois de alguns minutos de
Com os punhos cerrados
sobre a testa, o
«Malvada.! Malvada histérica! Fizeste-me perder tudo! Foste
a minha desgraça! Ah, a vida. A pertinácia com que o infortúnio me persegue
nestes últimos tempos faria perder um santo! Mas não, não julgues que me derrotaste!
Não! - gritava o médico, dirigindo-se a um opositor invisível. Depois, voltando-se
de novo para a mulher a sua face carregou-se de ódio, e completamente desfigurado
gritava:
«Porquê? Sim, por que havia de ter casado com esta
víbora! Que me deste, que me ofereceste durante todos estes anos que coabitaste
comigo?
O médico estendeu o punho fechado em direcção à mulher,
os seus olhos faiscavam:
«Cabra! Matei-te! Mas tu aos poucos foste matando tudo o
que de bom havia em mim. Conseguiste que eu esquecesse os meus sonhos, a alegria
de viver entre os meus semelhantes! Que estúpido fui em acreditar que tinha
em ti uma companheira compreensiva, sabendo ajudar-me nas minhas dificuldades,
Eu vou para a prisão, mas estou vivo, enquanto tu voltas
para o nada de onde nunca deverias ter saído!
Diogo Palhanca estava louco.. O
seu olhar percorria objecto por objecto, canto por canto, janela por janela
toda a casa. Dirigiu-se para D. Matilde, agarrou-lhe o pulso e reteve-o durante
alguns segundos entre os dedos. O coração batia. Pôs-lhe a mão sobre o peito e
saiu porta fora.
Sentia-me um
farrapo atormentado por pensamentos tenebrosos. Via as mãos
«Como foi possível! Como foi possível e como é possível
que ainda pense naquela mulher... que vergonha!
Leonor é um país de tentações e eu sou o arremedo de um
boneco sem carácter que
Canalha! Sou um canalha! Daqui a pouco : estou com cinquenta
anos... que lucrei com
Foi a primeira vez que me servi lautamente dos prazeres
da carne depois de ter escolhido as sendas da. castidade. Leonor não é mulher
para desistir do primeiro homem que lhe deu a saborear o passaporte para a
eternidade humana. Em virtude disso terei de me sujeitar ao castigo que me
devo impor. .. Não, não, penses em subterfúgios, não penses em enganar o teu
Deus como enganaste os teus semelhantes: com falinhas mansas.
Vou levá-Ia? Vou fugir? Que faço?
Que faço, meu Deus? Oh, Deus! Tu desculpa as minhas infâmias, as minhas cabotinices, os meus desregramentos, os meus planos forjados
em surdina e de que eu próprio não me dou conta ou que não sei dar-me conta.
Eu devia ser soqueteado até à exaustão, devia ser reduzido ao pó mais ínfimo,
e mais miserável, por tudo quanto faço... por todas as minhas torpezas.
Nem sou digno de olhar para Ti e mesmo de pensar ma Ti!
Tu desculpa... Não! Castiga-me brutalmente! Flagela-me sem piedade, até eu
ser capaz de sentir ódio pelo Teu infinito perdão... até eu ser capaz de me
ver eu mesmo... de ver o horror de ser o que sou! Faz isso! Faz isso! Faz
isso!»
O real e o imaginário confundiram-se, lutaram, amaram, odiaram
e a razão foi-se com razão.
- Padre! Padre! Que tem, padre? Acalme-se! Sou eu o Diogo
Palhanca, fui entrando... desculpe... As coisas
acontecem sem bem se saber como. Você desculpe aquela burrice! Estou arrependido.
.. sabe... precipitei-me, fervo em pouca água e podia, ter sido uma desgraça.
Felizmente que o senhor está bem! Padre! Não me ouve? Não me diz nada? Ainda
está zangado comigo?
- Quem é você? Por que hei-de estar zangado? Somos cães!
- Está doente, padre?
- Doente? Está doido! Que pergunta idiota!
- Vinha pedir-lhe um favor...
- Doente... favor... humilhação máxima num mundo mínimo.
Contradição infinita... igual a zero. Recusado o favor! Ponha-se na rua e
vá à...
- Padre! Faça um esforço. Sabe quem
- Um cabeçudo.
- Um desgraçado!
- Um cabeçudo desgraçado..
- O homem mais desgraçado que pisa este mundo..
- Que quer o homem mais desgraçado que pisa este mundo?
- Que me ajude.
- E quem me ajuda a mim?
- O senhor tem o seu Deus. .. tem as suas convicções...
tem todo o poder humano concentrado na sua crença. Eu ouvi-o padre! Eu
- Quem? Quem neste mundo inconsciente, sabe para onde caminha?...
oh, esta cabeça!
- Venha daí, eu ajudo a deitá-lo. Já se sente melhor?
Descanse, não faça grandes esforços. Assim. Isso mesmo. Agora?
- Por que me ajuda? Eu não preciso da sua ajuda. Um cão
não ajuda outro. Tire daí as manápulas! Os seus pêlos ainda são mais
irritadiços que os meus. Tem graça: somos cães peludos e irritadiços.
- Beba isto, padre. Esteja calmo..
- Você quer envenenar-me, seu cão?
- Juro...
- Sim, quer! Eu sei que quer. Andamos todos a querer envenenarmo-nos
uns aos outros... é só uma questão de tempo.. O Mundo está cheio de assassinos.
Assassinos! Assassinos!
- Não grite, padre. - Assassinos! Ah, ah, ah! Assassinos!
Ah, ah, ah! Assassinos! ah, ah! Você é o cão racionalizado que eu criei. Eu
tinha razão. Sempre tenho razão! Ninguém tem mais razão que eu! Eu sabia...
você é o meu cãozinho. Os cães falam. Eu sabia, eu sabia... eu sei
tudo... sei sempre tudo...
- Oiça-me, padre... Descanse. Sossegue.
Peço-lhe... eu sou cão... sou aquilo que quiser... mas eu
matei...
- Matou?
- Matei.
- Estou perdido. Este homem está completamente doido!
- Estamos todos perdidos! Todos! E todos completamente doidos!
Ah, ah, ah!
- Padre. Eu sou o doutor Diogo Palhanca.
- Palhanca?
- Sim, Palhanca.
- Já ouvi isso nalguma parte... deixa ver: Palhanca. Pois, Palhanca, palhaço!
Pa-lha-ço! É isso Palhaço. Está claro que já tinha
ouvido falar, então não houvera de ouvir: Doutor Palhaço. Isto tinha d'acabar assim; todos doutores e todos palhaços... ih, ih,
ih! Palhaço palhação, tu és um pateta, e eu sou
um parvalhão. Ih, ih, ih.!
- Peço-lhe por tudo, padre...
- De joelhos!
- Eu ponho... eu ponho-me de joelhos... Peço-lhe perdão,
padre.
- Padre? Que cão burro! Eu não sou padre, cretino!
- Por amor de Deus, não grite. Daqui a pouco vêm procurar-me,
daqui a pouco eles descobrem-me. - Roja-te a meus pés! Ro-ja-te!
- Está bem, padre. Eu faço tudo o que o senhor quiser mas
oiça-me. Oiça-me, por amor de Deus!
- Cão! Rasteja, cão!
- Eu rastejo, padre. Matei a minha mulher.
- Tira-me as botas... beija-me os pés...
- Estão gelados, padre.
- Sou um cão gelado, somos uns cães. gelados... não há mais
que gelo dentro de nós. Gelo, miséria e podridão. Podridão... muita podridão!
Que cães danados!
- Esconda-me, padre. Eles estão achegar. Eles estão a chegar!
Eles chegam de um momento
para o outro. Esconda-me!
- Eu também queria esconder-me. Esconder a mentira, a
peçonha, a vilania, a inveja, o orgulho. Continua a beijar-me os pés, meu
filho.
- Peço-lhe por amor de Deus... pelo Deus por quem o
senhor luta... pelo Deus...
- Parvinho. Onde está Deus? Eu sou o teu deus. Tu és o meu deus, somos todos uns
cães deuses... uns deuses danados. Ah, ah, ah!
- Não pode dizer isso! Se... se este homem deixou de
compreender a única palavra que o obcecava... estou perdido. Ele está doido!
Completamente doido!
- Ah! cão, beija-me os pés!
- Maldito! Maldito! Estive eu a humilhar-me, a servir de
histrião e tu! Cão! Cão!
- Agora bates-me? Agora rasgas as vestes do teu senhor?
Ajoelha-te!
- Eu já te digo se me ajoelho! Onde arranjarei um bom
cacete? Vais ver! Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! Uh, uh, uh! Cão! Onde está um bom
cacete, cão?
- Na cozinha.
- Doutor.
- Como?
- Que faz em minha casa, doutor? Por que estou descalço?
Por que tenho os pés
- Padre...
- Por que... anda com a tranca da porta da cozinha na mão?
- Fui... estou...
- Está a fazer o quê?
- Já lhe disse, padre: Deixei a minha mulher às portas da
morte.
- O quê?
- Matei minha mulher.
- E... está em minha casa?
- Fugi... eu não sei que faço... compreende... não posso
estragar a minha carreira... compreenda...
- Foi sem querer... embora... as mulheres sabe... como isto
é... talvez se salve. Mas está mal. Muito mal.
- Por que estou descalço?
- Eu calço-o, mas ajude-me.
- Ajudo.. Vou em descida: manchei a pureza dos sacramentos...
falhei na vida. Está escrito: morrerei como um falhado... como qualquer irracional...
como homem... fui um fracasso... nunca consegui manter a dignidade por mais
que umas escassas horas... está bem.
- Posso contar consigo?
- Quer fugir?
- Tem razão. Isto não é país p’rá
gente. Também fujo.
- Também foge?
- Nós passamos a vida a fugir! O senhor, não foge?
- Mas eu tenho uma razão! Matei... ou deixei muito mal
minha mulher. Não deve escapar.
- E... você... quer escapar?
- Sente-se bem, padre?
- Não seja parvo! Isso é lá pergunta que se faça numa
altura destas! Continue, seu bruto!
- Desculpe. Eu tenho de fugir. A fronteira é a dois
passos... O senhor conhece todos os contrabandistas, é amigo deles... em duas
horas estou a salvo...
- Quer...
- Tenho de querer! A minha carreira...
- E descobre?
- Descubro. Ajude-me, padre. Vá chamar o Serralho. Eu sei
que o Serralho faz o que o senhor lhe pedir... ele conhece os cantos à região...
mesmo que não passássemos hoje, ele escondia-me e... passávamos amanhã...
- O Serralho?
- O compadre do Clemente. Baptizou-lhe a filha na Senhora
do Incenso.
- O Serralho do
sítio onde aparecem as mulheres com os espíritos.
- Espíritos...
- O senhor pediu-me para eu lá ir.
- Quem disse que era?
- O Serralho.
- Que digo ao...
- Serralho.
- Que digo ao Serralho?
- Que tem de me passar para o outro lado.
- Para quê?
- Eu ainda dou cabo deste safado! - gritou o médico - Para
que havia de ser! Para Fugir! Fu ...gir! Fu...gir!
- Fugir!!!
- Fugir, está doido! Fugir? Ninguém pode fugir; Todos querem.
Todos! Mas ninguém consegue. Ninguém! Estamos todos presos à Morte.
- Eu tenho de conseguir! Você diz ao Serralho ou eu... padre! Olhe que eu estou perdido!...
- Estamos todos perdidos e somos todos
- Vá para o diabo com as suas idiotices!
- Chama o Serralho ou não?
- Para quê? ..
- Faça um esforço. Concentre-se.
- Para quê? .
- Eu perco-me cão! Mas tu também cá
- Que faz?
- Chamas o Serralho?
- Quem é o Serralho?
- Maldito! Maldito! Padre maldito! Grande cão! Onde pus o
pau? Está ali. É escusado levantares as mãos! Nada te poderá salvar... cão! Cão
maldito! Maldito padre! Zás! Zás! Zás! Zás!
Li no jornal o atentado e não acreditei;
o doutor Diogo Palhanca não podia ter
Os pensamentos saíam comigo do hospital e enquanto transpunha
a porta e rumava sem destino as palavras de Leonor ganhavam forma:
«Por que se mortifica, padre?»
«Por que vai para tão longe Leonor?»
«Lourenço Marques
está a dois passos.»
«Tem razão. O pensamento encontra-a em
«Não fique com esses olhos tristes, padre.»
«Também me lamenta?» .
«Leonor. Agradeço-lhe tudo o que me deu.»
«Tentei acordá-lo, pequeno sonhador.»
«Amo as pessoas e
o mundo que rodeia...»
«O senhor ama as pessoas, mas coloca-as
«Falhei em tudo, Leonor. Tenho a sensação de que fui toda
a vida um garoto falhado, insatisfeito e incoerente. Amei todos os ofícios,
todas as profissões... quis ser tudo aquilo que elas representam e não me
realizei em nenhuma delas.»
«E lamenta isso? Eu admiro esse seu desejo, essa ansiedade
de perfeição.»
«Falhei em tudo.»
«Não diga isso! Por que se destrói, conhecendo o seu ideal.»
«Que ideal, Leonor.»
«O amor.»
«O amor ?»
«Sim, o amor, porém não consegue realizá-lo, não é capaz
de lhe dar a forma concreta que ele deve ter. Esse amor está misturado com
a Natureza, com as pessoas,
«Decidi pedir a minha resignação, Leonor, sei que mais
uma vez falhei.»
«Não deves fazer isso. Milhares de pessoas esperam-te. Tens
ainda muito para dar. Não faças isso. Compara-te comigo e vê a distância
entre o teu vasto mundo e a estreiteza do espaço em que eu me movimento. Não
fui, não serei nada. Só me senti válida quando... tu sabes quando. Tu consegues
insuflar vida aos indiferentes. Tu foste o único que me soubeste despertar
da apatia em que estava mergulhada. Contigo vivi, contigo amei, contigo senti-me.
Tu deste-me tudo num curto espaço de tempo. E se eu não te sentisse...»
«Falhei, Leonor».
«Ninguém conhece
os nossos momentos de felicidade.»
«Conheço-os eu... conhece-os Deus.»
«O teu Deus é uma parte de ti próprio. Tu procuras uma coisa
que anda dentro de ti.
«Espera, Leonor».
«Adeus. Não digas nada... conheci-te... amei-te... sou
quase totalmente feliz...»
«Leonor!»
«Leonor! »
«Adeus meu pequeno idealista.»
Numa leve corrida Leonor afastou-se de mim enquanto pelo
rosto, grossas lágrimas humedeciam os locais por onde passava. Coisa estranha.
Tive a impressão nítida de ter ouvido o seu pensamento dizer-me: «Oh, meu
amor! Tu não sabes... mas eu levo-te comigo. A tua continuidade está no meu
sangue, o teu ardor pulsa nas minhas entranhas, a tua felicidade e a tua insatisfação
levá-las-ei para sempre».
Procurava na serra um lugar onde pudesse viver longe dos
homens e do mundo sem estar sujeito aos favores e à crítica de quem lhe
apetecesse... fugia de um perseguidor que vivia em mim.
Já há muito caminhava pela montanha. Os pensamentos atropelavam-se,
saltavam, andavam pelos extremos: era santo, era mártir, era eleito, era hipócrita,
era a... encarnação do homem dos nossos dias: sequioso de poder, mas infelizmente
cego.
O meu espírito, cheio de contradições, não se fixava em
algo de concreto.
De tempos a tempos ouvia-me: «Tem vergonha! És um fugitivo,
és um fugitivo! Um reles prófuga que tem medo, medo
de lutar até ao fim. Tu és o homem cego e descrente.»
A escalada era difícil e a voz atormentava-me à medida que
me afastava da cidade. «Como é possível desceres tão baixo, seres
Volta, para quem? - Interrogava-me ansiosamente,
desesperadamente à procura... à procura...
Gotejando o fel do corpo sentei-me num pequeno muro.
De coração calmo, de olhos limpos, voltei-me para a
planície. O espectáculo era soberbo.
Conversei com a Natureza e resolvi em dois segundos aquilo
que não conseguira em quarenta e seis anos.
«Tu desculpa meu Deus. Para atingir um fim é necessário
acreditar-se plenamente... ter um suporte inabalável. Acredito na Tua existência,
mas, não tenho a certeza da minha potencialidade creditiva... talvez acredite, não acreditando... não sei...
desculpa... o problema é muito difícil e o meu pensamento está preso. Agora
mesmo ia fugir, fugir sem saber para aonde, sem saber de quê. Esta paragem
mostrou-me que fugia às responsabilidades. Volto. Modifico a minha atitude.
Tal como agora o faço, também um dia se Te encontrar não necessito de ser
padre para Te amar e respeitar.
«Os padres estão a fechar o seu ciclo, a transformação tem
de se processar. O