TU CÁ, TU LÁ
NOTA PRÉVIA
Devido aos constantes pedidos do livro “TU CÁ, TU
LÁ” e não tendo intenção de o reeditar, aproveito a Internet para satisfazer a solicitação
dos leitores.
O livro foi publicado em 1962, sem qualquer receio
pelas consequências que daí adviessem. Nunca me reconheci de esquerda ou de
direita. Sempre me senti um ser humano a lutar por
outro ser humano e a tentar perceber o porquê das diferenças que nos separam
e nos envergonham.
Em 1968, Sartre, seis anos depois da saída do”Tu
Cá, Tu Lá”, dizia: “ao intelectual clássico, opõe-se o novo intelectual que
nega em si o momento intelectual para tentar encontrar um novo estatuto
popular; o novo intelectual procura misturar-se nas massas populares para fazer
triunfar a verdadeira universalidade”.
Adiantado, assim no tempo, ao Guru do Existencialismo,
utilizei a linguagem própria do povo para que ele recebesse a mensagem, a
compreendesse e a utilizasse como melhor entendesse. É uma linguagem popular
onde eu próprio me envolvo e com expressões utilizadas na época: escrever
em confusão para encontrar a via do "apetite pela leitura".
O livro esgotou-se. Eu nunca fui incomodado.
É preciso dizer que a censura funcionava para os jornais;
cortaram-me exactamente oito artigos. O livro só era alvo de apreensão se fosse
muito publicitado e se as editoras insistissem no tema desenvolvido.
Para as Editoras, a apreensão de um livro, representava
bons lucros: “livro proibido era o mais apetecido”.
Como nota esclarecedora direi que me servi sempre
escrita para “obrigar” o povo a ler. Verifiquei, com outros livros, que algumas
pessoas, de idade avançada, chegaram a ir para a escola para saber o que os
livros diziam. Escrita simples, directa e com o objectivo de enviar uma mensagem
e uma força para alguém que, desamparado no meio de tantos doutores, encontrava
muito poucos que o defendessem.
Dada esta explicação espero satisfazer assim a
curiosidade de todos aqueles que se interessam por conhecer os meus livros
publicados.
O livro “TU CÁ, TU LÁ” foi distribuído pela editorial
Aster, a todas as principais livrarias do país.
TU CÁ, TU LÁ
A IDEIA
Os tempos que circulam, fazem-nos pensar
seriamente na vida que cada um leva, ou seja qual o caminho que ele, o nosso
semelhante, está trilhando. E isto, ainda que pareça contradição, não é o
chamado meter o nariz na vida alheia, com o sentido deformado da vulgar quadrilheirice. Esta necessidade de nos conhecermos uns aos
outros, de procurarmos saber como vive, como pensa, como age o racional que está
ali à nossa frente e que nunca nos foi apresentado é simplesmente a preparação
da solidariedade humana. Sem ela, nunca, mas nunca -
disso fiquem bem cientes – pode existir
nem prosperidade nem paz.
O livro que segurais entre mãos é tentativa de uma
síntese, ainda que superficial, da condição humana. Se ela foi bem ao mal
feita não é a mim que compete dizê-lo. Sois vós que tereis de pronunciar-vos.
A leitura espera-vos; com licença, eu retiro-me.
Pena, 1962
I
A audiência tinha terminado sem ter caído no goto fosse a quem fosse.
Manuel barbas fora condenado a duzentos e
cinquenta escudos de multa, mais as custas e selos e o diabo a quatro. A
verdade é que o pobre homem seguiu direitinho à grelha por não ter nada de seu
a não ser mulher e dois filhos acabados de desmamar. E tudo isto porquê? Por que
se condenava assim um pacato cidadão, um homem amante do trabalho e da família,
sempre respeitador, sempre bastante educado no seu bom dia e boa tarde, saído
daquela boca tacanha de semi analfabeto, em virtude
de ter que ajudar os pais quando o tempo da escola devia ter sido seu. Tudo
isto, porque mandara o patrão bugiar, quando este farto de ofender, porque achava
tudo quando fazia mal feito lhe chamou “grande chavelhudo”. O pobre não
aguentou mais; pobre sim, mas honrado tanto o Manuel como a mulher; e vai-se a
ele com o rabo da enxada que a não lho tirarem da vista turvada pelo sangue e
pela irritação ou se escavacava o cacete ou lhe partia
as costelas.
"Ora o diabo! Que fosse ofender quem ele quisesse
e deixasse o trabalhador em paz. Se não estava contente com o serviço que
o pusesse a andar sem lhe dar sequer quaisquer satisfações; mas agora, chegar
ali e enche-lo de nomes só porque vinha com a mosca, ou porque a vida não
lhe estava correndo muito bem, isso é que não! As outras pessoas não têm culpa
das más disposições de cada um.
Depois foi o arco-da-velha, sempre a mesma coisa,
patrão com dinheiro, trabalhador ganhando vinte mil reis mal coados e bem
suados e desprotegidos e toca de ir malhar com os ossos à prisia.
O advogado defesa, que em abono da verdade fora um
amigo fixe pois não lhe levara um tuste, bem pleitou a causa: que na terra somos todos iguais, que todos
temos os mesmos direitos, que devemos a nossa maior ventura à fraternidade que
reina entre as pessoas, que sendo o Estado corporativo, baseado na igualdade
dos cidadãos perante a lei, não havia razão de se proteger um rico à custa de um
pobre e patati, patatá,
para aqui para ali, lá conseguiu que o homem só fosse condenado ao que aludimos;
como nem isso tinha, zás, voltou à enxovia de onde tinha saído.
E se estava um dia! Aquele em que foi novamente
enjaulado... um sol esplendoroso, um sol português como no resto do mundo
ninguém, por mais pintado, é capaz de encontrar, o sol que até faz arrebitar um
morto e espevitar o cheiro do rosmaninho; cheiro que naquele aziago dia, sem o
zumbido das moscas a aborrecer o parceiro, pairava ao de leve por cima de todas
as cabeças sem distinções absurdas e anacrónicas. E toda a gente da pequena
vilória teria certamente o seu primeiro dia feliz daquele ano, pois o tempo
tinha andado enfarruscado até aquela altura, se não tivesse havido a condenação
do Manuel barbas.
A mulher, ao ouvir a sentença, largara a chorar que nem uma desalmada não
se conformando com o pensava ser uma injustiça, mas que não ousava gritar.
Porém lá no fundo, muito no fundo, mesmo sendo uma alma simples e boa, recta e
amante dos deveres que a lei impõe e as consciências puras aceitam, amaldiçoava
o dia em que o marido tinha ido sachar batatas para o campo do Sr. Inácio.
Não tinha coragem de pedir o dinheiro emprestado para ilibar o homem da culpa
só remível a metal sonante e por isso mesmo, talvez mesmo só por isso ela
chorava desesperadamente. Os filhos, quais velhinhos, muito trôpegos e mal se
podendo ter de pé, se quisermos comparar quanto os extremos das idades se tocam
e por que às vezes se diz das pessoas de muitos anos que voltaram à meninice,
agarrados às saias rabudas, choravam também como num coro a três vozes, em que
qualquer delas é desafinada.
Os vizinhos, as pessoas amigas, os conhecidos, todos a tentavam consolar; não vendo eles, pobres atrofiados de espírito, que
o melhor meio de o fazerem era juntaram-se, agarraram na miséria de dinheiro em
tinha ficado toda aquela sujeira do senhor Inácio e vamos de soltar homem; mas
não, nada disso lhes passou pelas acanhadas mentes e aquela alma sem mácula e
de coração limpo lá voltou sem o seu Manel para a
choça, que ela, com artes mágicas, quase fazia parecer uma casa.
O marido não aguentou passar algumas noites sem o calor da mulher e o gorjear
dos filhos. E a verdade, somente a verdade, sem dizer água vai e com bruxedo ou
sem ele, em dez dias, deu o triste pio no meio daquelas quatro paredes sem
qualquer espécie de adorno, meio amareladas e com uma janela parecida com as
das gaiolas dos grilos.
Quando o carcereiro levantou o alçapão para lhe levar o almoço, oferta
generosa da Justiça a quem lhe cai sob a alçada, deu com o homem mais rijo que
nem uma pedra. O bom do guarda ficou tal maneira embatucado com a malfadada
sorte dos seus semelhantes, parcos de haveres como ele, que ali ficou, pasmado e
quedo como uma coruja em dias de vendaval e quando o azeite não abunda, até
que, os guardas, preocupados com a sua demora e pensando o pior, o vieram
encontrar junto do prisioneiro que deixara o mundo dos vivos. Estava perto do
cadáver, com a malga de caldo na mão e parecendo ter-se-lhe varrido o juízo. E
tinha. Andou mais de um mês sem tugir nem mugir para quem quer que fosse e
quando abriu o bico foi para dizer que nunca mais guardava ninguém, que os
aguardasse quem os lá metia se quisesse. Disse e fê-lo; dinheiro, ganha-se em qualquer parte desde que se saibam o usar tanto
as mãos como a cabeça. E, ala que faz tarde...
O povo não queria acreditar.
- O quê, o Manuel Barbas? Oh homem, tu estás
taradinho e deixa-te de mangações com coisas sérias, isso é lá possível!
- Já te disse. Possível ou não, com verdade ou sem ela já foram chamar o
médico para lhe fazer autópsia ou lá o que é essa tampa de abrirem um homem depois
de morto e o tornarem a fechar depois de lhe olharem as tripas, como se aquilo
tenha alguma coisa que ver. Digo-te que é tão verdade como eu me chamar António.
Antes o não fosse, não...
- Eh pá! E eu a lembrar-me que andei com ele na escola, que jogámos os dois
ao berlinde, ao peão e à marca, que tantas vezes fomos fazer as ceifas juntos,
para uns filhos da mãe como aquele que lhe arranjou este lindo par de botas e
agora, catrapus, aí está ele de pernil esticado, fazendo tijolo de costas e eu
aqui fresco como uma alface. Que porca de vida! Quando menos se espera, aí vai;
raios partam isto! Quando havemos de ser nós próprios a criar-nos e descriar-nos? Quando? Andam só a inventar bombas e outras mixordices para darem cabo do canastro uns aos outros, mas
olha que não inventam nada que não deixe ir um homem abaixo das canetas como este
foi; olha que não inventam, não.
Está aqui um tipo ao sabor da corrente, queira ou
não queira; entretanto chega a hora e vai-se; olha! Abóbora,
abóbora, para esta gaita.
- Temos de ir ao funeral. Sabes a que horas é?
- Julgo que ainda não está marcado. Mas vou saber e se quiseres envio-te lá
o miúdo a casa avisar-te.
- Se não te custa.
- Fica assente, logo que souber a hora exacta mando-te dizer.
- Até logo e bem-hajas.
- Adeus.
O enterro foi o mais concorrido de há quarenta anos segundo os dizeres dos
oráculos da terra. Lembravam-se e ninguém poderia esquecer, do enterro do senhor
Damião. Mas esse foi outro caso, loiça fina. O homem arranjara fortuna;
trabalhara toda a vida, retirara-se da cidade segundo se dizia à boca pequena
por não colaborar nalgumas trafulhices em que altas personalidades o queriam meter.
E, toca de trabalhar e de fossar de outra maneira; até que, tendo fortuna
razoável e não sendo casado, ao sentir a morte caminhar a passos largos em sua
direcção, como cão esfaimado no encalço do osso fosse arrebanhá-lo, fez testamento.
Chamou o presidente da Câmara, chamou o prior, chamou um empregado de comércio,
um agricultor e um advogado. Com a assembleia reunida, sem mais delongas, expôs-lhes
o motivo por que lhes tinha pedido para comparecer: - “têm aqui papel e tinta,
alguns bolos caseiros e boa pinga nos quartos ou salas para onde forem
distribuídos se assim concordarem. Lá abrirão cada um o seu envelope que aqui
têm e responderão à pergunta que nele está formulada.
Com a anuência de todos encaixou-os cada um em seu lugar para responderem à
seguinte questão: “quais são as pessoas, no seu entender, mais necessitadas da
vila?”.
Feitas as respostas, comidos os bolos e bebida a vinhaça, sem um
comentário, mas com forte aperto de mão pleno de agradecimento, dado com toda a
pujança do último alento da vida e convidativo à retirada, foi-se despedindo de
um a um, sem os deixar apoiar verbalmente o que tinham escrito.
Seleccionando vinte nomes de entre os mais necessitados lá do pequeno burgo,
fez o seguinte testamento: “deixo ao João, ao Faustino, ao Acácio etc. e tal,
isto e isto com a condição de não poderem vender nem
trocar, nem arrendar enquanto vivos, as sortes que lhes ofereço para que, com
este principio de vida, delas se sustentarem e progredirem como é justo que
viva e suba na escala do mundo qualquer ser humano.”
Feito isto, cerrado o testamento, esperou que a
suave morte para contrabalançar os espinhos bem duros da vida lhe viesse dar o
esquecimento das maldades e das intrigas da terra. E ela veio, a morte, veio e
ele, senhor Damião, não se fez arrogado. Farto do mundo até à raiz dos cabelos já
ele estava. Levou um enterro de estalo, ninguém por mais abelhudo que fosse o poderia
negar. O do Manuel Barbas não lhe ficou atrás; que gentio!..Até vieram padres
das aldeias vizinhas, coisa que só acontecia quando algum nababo, por ironia do
destino, deste destino que se está marimbando para as riquezas das pessoas. Logo
chega a hora da morte, aí esticam o pernil como qualquer pobretanas sem terem
podido corromper o espectro da igualdade na forma triste de um cadáver.
Em abono da Justiça, as pessoas nem sempre são egoístas, torpes, animalescas; por vezes, nas vezes mais belas, mas também
nas mais raras, das suas passagens pela terra, têm coração. O único erro nesses
momentos é só o de prestarem um pouco de atenção aos seus semelhantes, depois de
eles terem largado este mundo de mexericos.
A viúva ficou passada de todo; não queria acreditar; não, isso não é
possível, “o meu Manuel, forte como um toiro de cobrição, ir-se assim abaixo
das pernas!... Ná, por amor de Deus, não me esteja a atormentar
a alma senhora Aninhas...
- Já lhe disse mulher, acalme-se, não há outro remédio, paciência, é a vida.
O preciso agora, é olhar pelos pequenos.
- O meu Manel? Nunca, não senhor, está enganada,
ninguém melhor do que eu o conhece; olhe que vivo com ele há
três anos, e por isso sei bem que não pode morrer por dá
cá aquela palha; então não vê ali os nossos dois filhos? Aquilo é o fruto do conhecimento
das pessoas que se intendem; não senhor, não senhor,
e por favor não me consuma.
- Ó mulher, por favor, entenda-me, faça um esforço – e fez e entendeu mesmo.
Quando a realidade nua e marrana enxergou, sem dizer chus nem bus, ficou estendida como uma defunta que o foi,
passados dez dias depois do marido.
O enterro também foi lindo e o padre fê-lo de graça porque não havia a quem
pedir dinheiro e se não o fizesse podia ser uma carga trabalhos. A Joana para
mais era uma boa mulher, ainda que seguisse à risca o ditado: “primeiro as
obrigações e depois as devoções” e era certamente por isso, pela falta de tempo
que não ia à igreja. Confortado com esta sã ideia, lá a conduziu à última etapa
no caminho que todos, mas todos, temos que percorrer no último suspiro da vida.
O Sr. Inácio foi o bode expiatório daquela tragédia. O povo enfurecido, açaimado
durante anos, rompe o bafio putrefacto que o envolvia e com forquilhas e
varapaus intimou o cevado com forma de gente, cheio à custa do suor dos que,
com o sangue do rosto o faziam respeitado e temido até aos olhos dos graúdos, a
abandonar a pequena vila, pacata e arejada pelos ventos purificadores da Serra e
dos pinhais.
O pequeno déspota, bem deu por paus e por pedras porém nem a guarda nem ninguém
lhe valeu. As autoridades compreenderam sagazmente que era um figo meio podre
que era necessário afastar ainda que com isso ficassem lesados: acabavam-se os
presuntos, o vinho maduro e as idas à cidade a convite do senhor Inácio, o qual
era dos poucos que tinha carro. Contudo, nada disto temeram perder, iluminados
por instantes pelo verdadeiro sentir da vida, fizeram vista grossa quando o
povo, em massa, convidou sua Ex.ª a fazer as malas, o meteu
no carrinho e adeus minhas encomendas.
Bem barafustou, bem arengou sobre a sua culpa involuntária, nada lhe valeu;
calados como ratos em marcha fúnebre indicaram-lhe o caminho com as pontas bem
afiadas das forquilhas acostumadas a endireitar estrume.
Perante a evidência, duas malas de roupa e alguns berloques de utilidade e
até mais ver senhor Inácio.
Quando o sentiram longe, calados como tinham ido, calados voltaram, sem
nada estragarem sem a ninguém ferir, como pessoas conscientes do bem e do mal,
como alguém que conhece perfeitamente que nada lucra em incendiar e maltratar seres
inanimados ou mesmo animados deste que tanto não seja necessário para a sua
própria defesa.
II
Quem tomou conta dos pimpolhos no meio daquela confusão babilónica que se
seguiu aqueles tristes acontecimentos, foi uma vizinha das pobres vítimas da incompreensão humana.
A senhora Teresa ficou com os miúdos, porque além de gostar imenso de crianças
também fora muito amiga dos pais dos cachopos e custava-lhe ver que os levassem
dali. Como não apareceu ninguém de família a reclamá-los o presidente da Câmara
farto de a ouvir pois argumentava com toda a dialéctica campesina que por
ser a mais lhana se torna a mais difícil: “que sempre
estavam melhor lá na terra do que irem para uma cidade, que os rapazes até
podiam ficar atrofiados com os ares que se respiram nesses molhos enormes
de pessoal e de casas, e para aqui para ali, porque toda a vida desejara ter
filhos, mas que o “seu home” e ela nunca se compreenderam
lá muito bem para arranjarem um filhote e que agora com a idade muito menos,
que não havia quase esperanças de vir qualquer coisa ao mundo com parecença
de gente e mais isto e mais aquilo.
- Ai quere-los? Então leva-os, atura-os, limpa-lhes
bem as ventas e vê se os trazes asseados.
- No tenha dúvidas, hão-de andar que nem um brinquinho. – E levou-os e andavam
na medida do possível; naquele possível feito pelo espírito dócil ou rebelde
que todos os catraios demonstram na tenra idade e que às vezes, a maior parte
das vezes fica pela vida fora, e não pelos muitos cuidados maternos.
A Teresa e o marido queriam aos ganapos tanto como às meninas dos olhos, porém,
mais duas bocas a sustentar assim de uma assentada era um bico-de-obra. E
vá trabalhar, de mourejar como uns galegos para que nada faltasse aos seus
filhinhos recebidos sem as dores do parto e sem as aflições paternas, sem
o nervosismo e os passos descompassados do momento a que podemos
chamar bem crítico, enquanto os “mais que tudo” não vêm respirar cá para fora
os miasmas ou o ar desinfectado dos primeiros tempos da sala de partos.
Um, cava para um lado, o outro, toca de lavar roupa, ou esfregar casas ou
como mulher-a-dias nos lares dos mais afortunados
Os garotos, fora das vistas dos pais adoptivos, faziam o que todos fazem na
sua idade e segundo a inconsciência divertida de todas as crianças em qualquer
parte do mundo, seja qual for a sua tez ou maior ou menor pressão atmosférica.
A Teresa que gostava de os ver que nem uns amores danava-se toda quando
chegava o declinar do dia e os encontrava mais sujos que nem uns bácoros. Como
eram finos como corais, tudo o que viam aprendiam num abrir e fechar de olhos, se
por casualidade o que viam não se tornasse a repetir; mas como a vida é feita
de repetições mais ou menos semelhantes, não era preciso esforçarem a massa cinzenta para fixarem o que os seus conterrâneos mais
graúdos faziam. A linguagem de salão própria das vilas, das aldeias e das
cidades, era como um rosário bem aprendido na catequese mesmo sem o auxílio das
orelhadas da catequista. E na sua ingenuidade de gaiatos
vá de desfiarem e de se insultarem mutuamente com os piropos ouvidos na rua,
segunda casa de quem é pobre.
Os pais, ao princípio, achavam muita gracinha às asneiras expelidas inocentemente,
mas a pouco e pouco iam ficando preocupados com o chorrilho contínuo de cumprimentos
que um e outro se faziam.
Bem pensaram a melhor maneira de debelar o mal, o que se afigurava difícil
em virtude de os vizinhos acharem piada e impedirem assim a acção repressiva,
por constante e inconscientemente apoiarem as crianças.
– Assim é que se fazem homens, deixai-os para aí dizer duas laironas, mandar tudo isto à fava, que não é por aí que vem
mal ao mundo.
E não era, se eles as dissessem e se aprendessem aquela polida linguagem;
porém, por dá cá aquela palha, estivessem onde estivessem,
toca de mandar uma cuspidela para o ar, no desconhecimento completo do ditado
popular que é um aviso para as pessoas que falam do seu e do alheio: “cuidado,
não cuspas para o ar, que te pode cair na testa”
A Teresa bem se ralava. Contudo os conhecidos continuavam: "isso passa
quando entrarem para a escola, os professores lá se encarregarão de os endireitar."
E entraram, mas não chegaram bem a verticalizar; torceram um pouco a puxar
para a direita, mas ficaram sempre um nada arrevesados.
O mestre que lhes calhou pela porta, era um rapaz
novo, cheio de vida, pleno de pujança e de boa e verdadeira vontade de oferecer
o seu melhor. Revendo-se e recordando os seus bons tempos escola nos próprios
alunos, compreendendo-lhes os anseios, vendo as lutas íntimas de cada um como
se fosse ele mesmo senti-las, como se os papéis se invertessem e ele fosse o
aluno e eles os professores.
Paternalmente, mas sem pieguices, com uma psicologia toda feita mais do seu
eu pessoal do que dos parcos conhecimentos que o tinham obrigado a encaixar
na cabeça à custa de bastantes berros de alguns professores feitos a martelo,
ao conhecer o valor real do Zé Barbas e do Vítor Manuel, propôs-se tirar o
maior partida daqueles órfãos, de inteligências e espertezas invulgares, meio
inconscientes por serem novos, mas já com uma dose
de defeitos bastante enraizada. Como eram ainda muito jovens esperava, com
facilidade, dominar aquelas tendências perniciosas feitas pela imaginação
e pelos ouvidos, lentamente, no convívio com a multidão boa, mas mal dirigida.
A preparação para o embate com a realidade da vida, para o verdadeiro
despertar das consciências com o ensino das primeiras letras e com a demonstração
pela pequenada, de que foram enviados ao mundo não para um constante
divertimento e uns chutos numa bola, mas sim para trabalharem afincadamente
para uma melhoria visível do lugar que lhes foi oferecido e onde estavam, ainda
que isso nunca tivessem aprovado ou recusado.
Quando começavam a endireitar, de um dia para o outro, o professor vai-se
embora chamado a cumprir os deveres para com a Pátria, ele, o pobre que os
estava cumprindo como poucos e com que benefício. Chamado a cumprir deveres
bem diferentes, deveres, que quase todos os países impunham para se defender
de outros países criando assim, uns e outros, um clima propício para se desfazerem.
No entanto, lá foi no dia aprazado. Que remédio senão amochar. E lá andou,
foi assentar praça, chupar durante dezoito meses, pelo menos, a vida comunal
da caserna onde o contacto com o próximo nos faz compreender melhor os nossos
semelhantes e onde se fortifica o olfacto.
O mestre que o veio substituir, um mês depois, viu-se e desejou-se para dominar
aqueles ganapos endiabrados. Trinta dias à rédea solta, sem dirigente e com
a bola de trapos nos pés, a saltar ao eixo ribaldeixo,
a andar às cavalitas ou a jogar à cavaquinha, quem
é que os segura?
O bom do velhinho via-se numa fona.
A idade, que lhe pesava, fazia-o acarretar métodos obsoletos de ensino e vá
de distribuir tapona a torto e a direito, canada
para este lado e para aquele, como melhor caminho para endireitar aquela cabrada – segundo a sua própria expressão. Mas qual carapuça!
Não endireitava nada, parecia que se punham piores! A sensibilidade, a forma
de conduzir seja quem for, está na maneira como se usam as palavras e não
com directivas violentas; isso são meios que nem
para selvagens se usam. Está bem que uma lapada bem assente no momento oportuno
nunca fez mal a ninguém; mas ela só deve servir de aviso e não de meio para
se alcançarem bons resultados. Quem é criado murro e pontapé, tem de por força
virar em revoltado e usar dos mesmos sistemas para com o seu semelhante quando
crescer. Porém, o nosso homem, habituado durante anos à algazarra, às traquinices
mais irreverentes da pequenada, habituado a fazê-los sair da Escola só ao
anoitecer, pensando que assim fazia um bem e não o erro crasso de cansar as
crianças e de as fazer aborrecer o ensino, nada daquilo lhe fazia confusão
e era a melhor maneira de matar o tempo; uma orelhada
para aqui, um tabefe para acolá e quando mal se descuidava estava na hora
das migas. Se, não fizessem barulho e não fizessem tropelias, certamente que
seria ele quem estranharia e por certo era capaz até de lhe dar o mal murcho.
Ali estava a temer a reforma por causa do hábito de há tantos anos a fazer
sempre o mesmo. Depois, em que é que havia de arriar?
As crianças devem ser crianças quando são crianças e homens quando forem
homens: era a sua teoria e por mais bizarro que pareça ela está certíssima, a
maneira como preparava os miúdos para irem subindo as escadas da juventude até
à maioridade é que não estava totalmente certa; e como não estava, quais seriam
os bombos da festa? Os rapazes seus alunos. Quem é que havia de ser, se não
eles?
Ano após ano, o Zé e o Vítor, com bons ou com irregulares professores, ficavam
sempre na vanguarda em todas as lições por melhores adversários que tivessem
naquele estudo meio infantil meio a sério
"Era o destino," dizia quem tinha conhecido os pais. Foram enjeitados
pela sorte de conhecerem quem, com a conjugação das suas células os tinha
trazido a tão agitado e bilioso mundo. Em compensação eram finos como ratos
e marotos como não existiam iguais, contudo, isso até lhes dava graça; a graça
que, aos filhos dos menos endinheirados, é difícil de encontrar pelos seus
semelhantes, fortes em numismática; por aqueles que só sabem sorrir e fazer
festas aos miúdos bem vestidos, àqueles que nada lhes falta e, que talvez
por isso, tão patetinhos parecem; como que passando já por uma angústia prematura
de nada precisarem de fazer, para transpor o círculo vital e de tédio que
começaram a ser envolvidos. Mas a estes é preciso agradar por causa dos papás
e vá de os enfastiar com perguntas e gracejos.
Quando os pais, a muito custo, uma vez de mês a mês, compravam uns arremedos
de bifes de carne de terceira, aí apareciam os dois farçolas,
de palito na boca, a imitarem o Sr. Álvaro de Sousa que todas as pessoas sabiam
que comia carne às terças-feiras por vir palitar os dentes para o café, até
que, no meio de um pscht, pscht
também demonstrativo de falta de polimento chamava o empregado para lhe pedir
a conta, a qual era composta por um café em copo com cheirinho. Os pobres
pensavam, na sua vacuidade de conhecimentos, que era assim como o senhor Sousa
que deviam proceder, porque era rico. Eles, como quaisquer outros miúdos,
doces ingénuos, que naquela idade da imaginam que os endinheirados e mesmo
os sem vintém mais matulões devem ser sempre imitados. Aí vinham todos pimpões,
escarafunchando os dentes, radicando a falta de aperfeiçoamento com que os
não nascidos em boas maternidades, começam a esgravatar na vida e que só depois,
muito tardiamente e alguns mesmo nunca chegam a entender, e bastante a custo
vão largando quando compreendem que não devem fazer isto ou aqueloutro porque
vêem fazer a pessoas com melhores meios de vida, mas com muito menos cabeça.
A senhora Teresa andava cada vez mais preocupada.
Apesar de lhe custarem muito criar, os cachopos eram a alegria da casa.
Tinham cada uma que só ao diabo lembraria!
Então os badamecos, na primeira sexta-feira do mês, não tinham despejado dois
frascos de tinta do calçado na pia de água benta e à hora do terço, de sociedade
com mais quatro companheiros da escola com as quais iam fumar beatas para
o barrocal às escondidas dos pais? Foi um sarilho! Quando as velhinhas, no
meio de dois ámen, se lembraram de cochichar alguma pequena maledicência propalada
pelas línguas do pequeno burgo, simultaneamente, de boca desmesuradamente
aberta, dedo em riste e de olhos arregalados, diziam em coro:
- Ai vizinha como está. - Foi um sarilho, sou eu, que lhes garanto.
Primeiro, ainda riram obrigando o padre a olhar para elas de sanho azedo, mas depois, oh raio! Aí é que foram elas.
Encheram-se do demónio e toca de irem à cata dos mafarricos. Estes, rindo
bandeiras despregadas, pés para que vos quero, desandaram mais lestos do que pequenos
laparotos em dia de abertura de caça.
Nada lhes valeu, os pais também riram a princípio, mas a seguir, ná, com as coisas da Igreja não se brinca, com essas e com
aquelas em que possamos ofender as ideias e crenças de cada um. Lá na escola, vá
que não vá. O professor que os ature, mas na Igreja isso é que não.
Tiveram muita laracha, porém como o Sr. Prior também não tinha gostado da
brincadeira no pátio sagrado, levaram uma surra que os deixou dois dias de
molho; e com tanto azar que calhou logo a ser sábado e domingo, dias em que não
havia escola. Já era pouca sorte! Mas também não foram à missa. Se estavam doentes
por causa da malhusca, também não estavam bons para
aturar um dos causadores das nódoas regras.
Os dias foram passando e com eles os anos e a senhora Teresa, cada vez mais
amadorrada porque a escola primária estava a terminar.
Toda a gente lhe dizia para mandar os miúdos estudar, "que eram espertos,
que tinham estas qualidades e aquelas, que era uma dor de
alma ficaram por ali." Contudo, ninguém se oferecia para pagar
a mesada no liceu, lá isso é que não, todos davam conselhos,
mas pagar, está quieto.
O Dinheiro custa muita ganhar e dá-lo ou emprestá-lo sem garantias, há poucos
que o façam, e esses ainda são alcunhados de trouxas. Quem somos nós, para
criticar as acções que as outros pessoas façam de louváveis, quem? Mas deixamos
as perguntas difíceis.
De matutar em matutar, pelo sim pelo não e a conselho
do professor, lá se resolveu vender uns bacoritos
que tinha destinado a criar, e, com muitas recomendações, juntamente com os
outros garotos, aí desandam eles para a cidade, vestidos com o facto domingueiro,
bem escovadas e de marrafa com risquinho ao meio, fazer o exame de admissão.
Foram, e fizeram tal figura, que os senhores doutores lhes perguntaram:
- O vosso pai é o professor da aldeia, não é?
- Não senhor, nós não somos filhos de ninguém. A
senhora Teresa e o senhor Joaquim é que nos aturam
como eles dizem: mas é como fossem nossos pais, quando a gente faz qualquer
coisa mal feita, até nos batem, por isso é como sejam.
- Os professores riram de resposta desembaraçado e claríssima, mostrando desenvoltura
e nenhum acanhamento, como, se irem à cidade e falarem com a gente grada,
fosse o pão-nosso de cada dia. Riram, porém, não lhes perguntaram se os pais
adoptivos, que os aturavam, viviam bem ou mal e se iam ou não para o liceu.
Como não perguntaram, eles também não disseram e como disseram, se desprotegidos
foram desprotegidos chegaram.
- Então, passaram?
- Passámos sim senhor.
- Qual foi o melhor?
- A gente sabemos sempre a mesma coisa.
Com o “agente sabemos sempre a mesma coisa”, por ali ficaram as modas e a
Teresa a dar voltas ao miolo e a passar mal as noites de tão consumida que
andava por não saber o que havia de fazer à sua vida por causa dos miúdos.
Quem as pagava era o Joaquim pois a Alma da breca não estava quieta
um bocadinho! Mal se deitavam, daí a dois minutos começava a dança,
ora agora se voltava para aqui, ora agora se voltava para ali; era o cabo
dos trabalhos!
- Vê lá se estás queda.
- Ó homem tem paciência, deixa-me cá, que moída ando
eu sem saber que sorte vamos dar aos catraios.
- Mas então pensa de dia porque a noite fez-se
para dormir quando chega a hora.
- Tá bem, tá bem.
Mas lá para dentro, na sua alma rude e simples continuava:
" O que é que hei-de fazer dos rapazes? Agora é uma lástima deixá-los.
Já tiraram a admissão, são espertos que nem uns alhos...Ná, têm que ir estudar: o Jequim ganha
vinte e dois mil reis, eu ganho quinze, tudo isto
anagalhado, bota trinta e sete por dia. É capaz
de dar. Oh Raio! Se desse era uma alegria! Tenho que saber quanto é que me
levam por sustentar estes azougados mais lindos e mais espertos que existem
cá no povoado.
E perguntou, perguntou e encheu-se de lágrimas. O mínimo que lhe faziam
pelos dois miúdos era um conto e duzentos e viva o velho! Depois, livros, cadernos e a fatiota, era uma espiga.
Tanto chorou, tanto gemeu, sem que nenhum lucro obtivesse, a não ser o de
aliviar um pouco mais as suas mágoas, que, firmemente convencida que de nada
lhe valia para ali esbandalhar lágrimas, tratou de pôr a massa
encefálica em movimento e toca de magicar para descobrir onde havia de arranjar
o resto dinheiro para fazer dos rapazes alguém na vida. Fazer deles, a quem
ela queria como filhos das suas entranhas, senhores professores
ou doutores. Lá padres é que não. O Sr. Prior já
tinha falado com o marido – “se deixasse ir pelo menos um para o seminário,
depois podia ser o amparo deles quando fossem velhos, ele se encarregaria
de tudo, não pagavam nada, falava com o senhor bispo e o rapaz entrava de
certeza”.
- Cantigas senhor Prior, cantigas. Não senhor, bem-haja, mas não quero que
meus filhos andem para aí dizer ladainhas e de mão estendida, não senhor,
muito obrigado, eles lá se haviam de arranjar; uns dias com mais fartura
outros com menos, mas para as sopinhas sempre havia
de chegar. No entanto, que perguntasse aos miúdos, eles é que eram os interessados.
Na sua santa crença o bom do prior da pacata vila, ao fisgar os miúdos à mão
bem os tentou convencer com palavrinhas doces, mas, ou porque a surra que
tinham chupado, na qual o padre tinha sido causa indirecta, ainda estivesse
bem presente ou porque a inclinação para o sacerdócio, naquele momento nada
lhes dissesse nas suas pequeninas mentes, o certo é que, brincando com a batina
do pachorrento vigário lhe disseram redondamente que não. E escapuliram-se
fazendo-lhe uma vénia agarotada e rindo o riso simples, e sempre alegre das
crianças.
Sem a protecção do prior a Teresa não descortinava a quem havia de recorrer,
mas tantas voltas deu ao caco, tanto pensou, que pesados os prós e os contras,
no meio da sua analfabética, mas escorreita maneira de ver os problemas, que
chegou a esta conclusão:
" Tenho de os mandar para uma casa onde recebam órfãos ainda que isso
me custe, meus queridos filhos! Mas sempre é melhor do que vos deixar por
aí sem destino. Assim sempre é melhor enfiá-los lá do que andarem na galdérice,
sem eira nem beira. Custa-me, mas paciência. Eles, um dia mais tarde, hão-de
reconhecer que é para bem deles e não para o meu. Nada de chouchices
que só os ganapos é que são prejudicados." E dito e feito; mãos à obra.
Falou com o presidente da Câmara e com o presidente da Junta de Freguesia,
e tanto pediu, tanto andou que o Vítor e o Zé seguiram de escantilhão para
a Lisboa onde as buzinas dos automóveis se fazem ouvir com os seus sons estridentes
em vez de usarem os faróis, maneira muito mais educada e muito menos incómoda
de se pedir uma ultrapassagem ou de avisar um transeunte distraído. Lisboa
onde, de vez em quando, se nota alguma rua mal cuidada em que os papéis esvoaçam
pelo chão como a dizer: não temos caixas suficientes para nos obrigar!
A Lisboa onde e com grande admiração, por estarmos num meio com justa fama
de civilizado, se vê, de tempos a tempos, um porco, porque o indivíduo que
faz isso não pode deixar de ter outro nome. Cuspir, ruidosa e esverdeadamente,
para o chão, lançando num desprezo sujo, pela vida alheia, os bacilos infectos
que a sua carcaça alberga. Lisboa, a cidade mais bela e mais perfeita de toda
a Europa e não sei se do resto do mundo, ainda que pense que sim, no momento
em que todos os que a habitam derem um pouco do seu esforço para a conservarem
limpa e tão a asseada como ela o merece.
III
Logo
de manhãzinha um banho bem frio, bem embrulhado, cheio de risos alegres e
refrescantes, o riso franco que dá uma consciência limpa, incutia nos rapazes
uma força potente, plena de viço e de vontade de trabalhar.
Nunca
na sua vida tinham tomado tantas chuveiradas, nem
mesmo quando iam para a ribeira e formavam pequenas cataratas, para sentirem
o prazer que proporciona a água caindo em torrente e encharcando a pele desde
a raiz dos cabelos até aos dedos dos pés.
A
casa da vila, térrea, com duas divisões apenas, mal dava para lá se mexerem
dentro, quanto mais para sustentar o luxo de uma banheira ou mesmo de um balde
esburacado, que Ihes pudessem encher o bandulho de
água bem fresca e saborosa.
Como
as plantas, quase murchas por míngua de rega, os rapazes repuxaram com o regime,
meio colegial, meio pensionato e estavam uns verdadeiros matulões para a sua
idade. 0 comer a horas certas e à base de uma dose
de calorias muito superior da que os
pais lhes podiam proporcionar, produzia também os seus efeitos e eram bem
patentes. Em notas, continuavam na barreira da frente, assim como em travesseirada.
À noite, depois de o perfeito estar nos braços do mitológico morfeu eram uns autênticos barras em esventrar almofadas;
os botões, esses então eram as primeiras vítimas, ao segundo ou ao terceiro
assalto não, conseguiam resistir e desapareciam. Umas a seguir às outras,
sem a abotoadura, aí estavam os instrumentos de batalha.
Por
capricho do destino, quem lhes havia de calhar como um dos professores? Imaginem?
0 senhor Inácio, que faltando-lhe duas cadeiras para
ser formado e tendo mandado os estudos bugiar quando a batata e o feijão davam
mais que o canudo, regressou, embora forçado, para aquilo que os pais Ihe
tinham indicado. Acabou mesmo por se formar e ali estava como professor de
ciências naturais.
Os
miúdos que nunca o tinham visto nem mais gordo nem mais magro, nada lhe notaram
de anormal nas atitudes para com eles. Mas o mesmo já não sucedia com o senhor
Inácio, perdão, ponhamos os pontos nos ii, a cada um o
que é seu, com o doutor Inácio.
Ao
fazer a chamada pela primeira vez para tomar conhecimento com quem se havia
de se haver durante um ano inteirinho, deu um estremeção ao ler o nome «Barbas».
Deu; e de pensar em pensar, mal acabou aquele primeiro encontro todo feito
de conselhos sobre estudo, direito como um fuso, por meio daqueles
corredores fora, vá de ir à secretaria espiolhar os processos do Zé e do Vítor.
Tida a confirmação das suas suspeitas, veio a luta, a luta interior, a luta
psíquica, a luta do homem, a luta do bem e do mal, ainda que bem e mal não
passem de meras concepções da humanidade, daquelas concepções que servem para
distinguir algo, mesmo que esse «algo» a que hoje chamamos certo, chamemos
amanhã errado e vice-versa.
0
doutor Inácio num gesto, de Homem com letra maiúscula
resolve peremptoriamente proteger os dois manos, ou melhor, substituir o verdadeiro
pai dos irrequietos diabretes, como alívio para o seu pensamento atormentado
pelo mal que, involuntariamente, causara num momento de irritação e pelo qual
sofreria toda a vida.
Pois
bem, propunha-se fazer-lhes distinguir
até onde pode ir uma brincadeira e onde deve acabar, ensinar-lhes o melhor
caminho para escalar o tempo de vida e mostrar-lhes, que somos tanto mais
felizes quanto mais fizermos ou contribuirmos para a felicidade das outras
pessoas.
Um
mundo de promessas intrínsecas, plenas de consciência, cheias de humanidade,
num homem que inadvertidamente e num dia de má catadura provocara duas mortes.
Os
anos corriam uns atrás dos outros e, com ajuda ou sem ajuda, nunca fizeram
uma prova oral os filhos do Manuel Barbas e da tia Joana enquanto calcorrearam
os anos que os levaram às portas da universidade.
Nesta
altura é que a porca torceu o rabo, se me permitem. E os rapazes, estavam-se
vendo lançados para o meio da multidão, votados a um emprego público, quais
servos achincalhados pela acefalia dos chefes, quantas e quantas vezes inferiores
a eles em cultura, aperrados a um ritmo monocórdico de dezenas de meses sobre
dezenas de meses, onde se habituaram um dia a fazer determinado serviço de
determinada maneira e muitos, muitíssimos trezentos e sessenta e cinco dias
ou trezentos e sessenta e seis passam sem que aquelas almas sejam capazes
de expelir uma ideia inovadora que possa simplificar o método caquéctico.
Não
senhor, sem que os chefes máximos ordenem, eles, pobres míopes espirituais,
não são nem sequer capazes de enviar uma sugestão, para que os superiores
vejam o seu trabalho simplificado e tragam sempre os seus serviços na vanguarda
da técnica mundial. Mas quê, com o dístico «isto já assim se faz há vinte
ou trinta anos e porque é assim, assim continua e
continuará da mesma maneira». É escusado que ninguém os demove e tanto
faz dar por paus e por pedras que nada se modifica. Eles, os novatos, os cheios
de boa vontade, esses têm de vergar se não querem cair em desgraça; e aí começa
a sua aprendizagem de máquinas automáticas, quais carneiros que um dia ensinaram
a tosar erva e nunca mais lhes deram outra comida.
Quando
se preparavam para um concurso público, depois de um brilhantíssimo sétimo
ano, foram chamados ao senhor director que lhes comunicou que podiam continuar
a estudar sem a preocupação de um emprego.
-
Meus filhos, tenho uma boa notícia para vos dar.
Alguém cheio de valor e que conhece a perca que o país sofre pelo facto de
grande parte das vezes não se aproveitarem alunos como vós o tendes sido,
alguém que prefere o anonimato aos agradecimentos servis que lhe prestaríeis,
oferece-lhes a mensalidade para poderem continuar a
estudar. Desta maneira, tu, José Augusto, tens à tua disposição na secretaria o dinheiro da matricula e tu igualmente Vítor
Manuel.
-
Senhor director, muito obrigado, mas não podemos
aceitar. Muito longe chegámos nós e neste momento já podemos
enfrentar a vida sem qualquer receio de perdermos a batalha. No próximo mês
vamos a um concurso e...
-
E... batatas, desculpai se vos falo assim e se me oponho a que façais
semelhante tolice.
Se
a vossa formação cultural é muito superior ao que os vossos antepassados nunca
imaginaram, a verdade é que a vontade de ganhardes dinheiro e de adquirirdes
uma independência fictícia não vos deixa discernir o seguinte: começais por empregaditos
públicos levando pontapés no quiosque a torto e a direito dum bicho careta qualquer. Isto é falar-vos francamente
e sem quaisquer cerimónias, e tal e qual como se estivesse a falar para um
filho meu...
-
Obrigado, muito obrigado responderam ambos.
- ...Começais por ganhar um
conto setecentos e cinquenta, fora as descontos o que vem a dar um conto seiscentos e picos. Ao fim de doze anos e numa hipótese cem por cento, optimista, ganhareis
um pouco mais ou um pouco menos de quatro mil escudos caso a hipótese muito
perquelitante falhe ou não. Ora bem, quando terminardes
o vosso cursozinho e isso, sim, é o ajuizado, daqui
a cinco ou seis anos é precisamente isso que ides ganhar e com a possibilidade
de a vossa situação ir sempre melhorando. Agora notai, o tempo, o dinheiro
e o saber que perdeis se vos propondes para um cargo de empregado principiante,
sem qualquer futuro que jeito tenha à vossa frente. Pesai bem todos os prós
e os contra, e dizei-me se não tenho razão.
Quando
aceitamos algo que vemos que não é só para o nosso bem, como para o bem geral,
para trás orgulhos esparvoados, próprios de pessoas
que não têm um palmo de testa. E vós felizmente e eu sou testemunha, sempre
demonstrastes tê-la. Ainda hoje me lembro, meus mariolas, da sentença que
aplicastes ao Bernardino, lá no vosso tribunal de estudantes onde todas as
praxes a sério eram respeitadas e, o qual, de todas as vossas ideias, era
o que mais me agradava por vos desenvolver na polémica que borbulhava quando
defendíeis ou acusáveis algum dos vossos camaradas que caía
sobre a pata da justiça como dizíeis, lembrais-vos?
-
Lembramos sim.
-
Bela sentença. O Bernardino, que se intitulava ateu, um dia arreliado com
uma falta de castigo que o professor de moral lhe
marcou por se portar incorrectamente na aula, não foi por isto?
-
Foi sim.
- ...Escavacou o Santo António
que estava ao cimo do patamar, por sinal bem perfeitinho esse Santo António.
E a vossa sentença foi inexorável e sem apelos nem agravos: «Que seja condenado
a pagar os emolumentos do processo: três chouriços e um garrafão de vinho
e ainda a colocar uma vela todos os dias durante oito, a Santa Quitéria a
protectora dos parvos para se lembrar, durante toda a vida, que devemos respeitar
as crenças das outras pessoas, para que elas respeitem as nossas.» Bela lição
e mais bela ainda porque eu sei bem, meus marotos, que acreditais tanto em
religião como ele, mas, felizmente sabeis distinguir até onde devemos chegar
ou o que devemos olvidar para não fatigarmos nem as outras pessoas nem a nós
mesmos. Depois desta lenga-lenga toda, aceitem o oferecimento sem olharem
para trás, pois que ele vem de uma pessoa cheia de bons e altruístas sentimentos.
Se não o fosse também eu teria dúvidas em vos propor o que acabei de explanar
e era mesmo capaz de nem vos dizer nada;
-
Convencidos resolveram passar então aquelas férias até à abertura das aulas,
com os pais adoptivos.
A
vila continuava na mesma, nada parecia ter mudado em sete anos, nem mesmo
os pais, na maneira de viver. A mesma casa térrea de duas divisões, as mesmas
enxergas de palha de milho, as mesmas quatro cadeiras de palha entrançada,
enfim, os mesmíssimos hábitos com os eternos trinta e sete escudos.
A
alegria foi enorme, plena de espontaneidade e os rapazes viram-se e reviram-se
naquele meio há tanto tempo abandonado e quase esquecido. Olhando tudo quanto
os rodeava, promessas mudas, promessas quase de salvação humana desde que
chegassem a ser alguém na vida, fizeram mutuamente sem nada comunicarem entre
si.
Os
banhos continuavam como há sete anos a faltar, a luz idem, o calor, entrando
a vaporadas, era sufocador naquela casa mais abrigo de momento do que lar
onde viviam seres humanos, com cabeça, tronco e membros de espinha vertical
e com a corrente pensante que nos faz supor diferentes
dos ouriços cacheiros, dos camelos ou dos pardais; porém, ali no casebre,
tudo minguava. As coelhas nas suas tocas ainda têm o pêlo da pele para
as forrarem, para as aquecerem, e resguardarem assim os filhos do rigor do
tempo; mas os pobres já não podem infelizmente proceder da mesma maneira,
têm um pêlo mais cabelo que pêlo e muito insuficiente para poderem
atapetar a casa ou mesmo só um minúsculo quarto, quando existe quarto. E aí
temos o chão terroso e húmido ou escaldante conforme a estação que lhes serve
de abrigo ou de inferno.
Ouviram
as baboseiras mais incríveis da gente simples do campo, mas maldosa nos seus
dias não, talvez por não saberem distinguir por falta do conhecimento do mundo,
até onde vai ou até onde deve ir uma conversa.
Lembravam-lhes
o passado para lhes fazerem sentir como tinham sido os seus princípios, como
se eles os pudessem olvidar depois de terem gasto ali na vila os primeiros
onze anos da sua vida, os anos que melhor ficam esculpidos no pensamento até
à morte. Porém, pela primeira vez ouviram falar do senhor Inácio o causador
da desgraça da senhora Teresa.
-
Desgraça!
Desgraça,
ruminavam ambos, barriga ao alto, lado a lado, no colchão duro e barulhento
pelo estalar da palha; mãos fora da manta de ourelos, olhando a escuridão,
respirando compassadamente. Ambos se sabiam acordados, contudo, nem um nem
outro imaginavam, nem por sonhos, que o mesmo pensamento os envolvia.
-
Desgraça! Teria sido mesmo uma desgraça? Se os pais não tivessem morrido,
o que seria da sorte deles? Dois iletrados, comendo todos os dias uma malga
de caldo com couves, dia sim, dia não, uma pançada de feijões pequenos e assim
por diante. Lá a comida ainda era
o menos, o pior era ficarem só com a quarta classe; era o mesmo que serem
dois iletrados. Aqueles quatro anos de escola não enchem o ventre a ninguém!
Talvez dois escravos do trabalho honesto, duro, suado,
mas mal pago.
-
Desgraça! Talvez dádiva generosa do mundo irreverente para com os brinquedos
que somos todos nós.
No
fundo, muito no íntimo, agradeceram, de mãos ambas, aos pais o sacrifício da partida da terra deixando-os
no meio da teia humana, num mundo pleno de incógnitas.
Foi
talvez um bem para todos, eles, os pais, deixaram de ser servos,
deixaram de mendigar o dia de amanhã. E eles, filhos, estavam-se encaminhando
para a redenção desse dia.
Assim,
nestes pensamentos, adormeceram na suavíssima calma que a imaginação agradável
proporciona, sem pesadelos fatigantes ou sonhos descabidos de qualquer logicidade.
0
cantar do galo, pareceu-lhes o badalar da sineta
na capital adentro dos muros do colégio e, em dois pulos, levantaram-se para
irem com o pai dar um dia de jorna na quinta do senhor Leitão. Ele, bem os
não queria levar, mas tanto insistiram que lá foram de cambulhão, de enxada
ao ombro, como dois bons profissionais. 0 rendimento
dado foi igual ou superior ao do pai. Rapazes ginasticados,
tendo praticado desportos saudáveis, apesar de não estarem habituados ao serviço,
não lhes foi penoso, antes pelo contrário.
0
senhor Jequim estava babado
com os filhos. "Ele, que no seu vesgo ver de homem rude julgava que os
rapazes se envergonhassem dele como alguns que bem conhecia lá na terra que
se envergonhavam dos pais, grande corja de bestas que nada seriam sem esses
entes simples e bons que os trouxeram ao mundo, estava orgulhoso, todo, inchado
com os maganões. Olha que era obra! E a verem-se para aí tantos pindéricos
enfatuados, que não tendo onde cair mortos se os pais os desamparassem, esses
pais que trabalham que nem uns moiros para que eles sejam alguém na vida e
aquelas bestinhas, ainda se envergonham dos seus progenitores!
Ah,
raio! Quem me dera que eles fossem meus filhos a valer, que a minha Teresa
os tivesse lançado ao mundo com a ajuda cá do meco! Mas é a mesma coisa, raios
me partam se não é. É como se a “minha” os tivesse parido."
E
consolado com estes pensamentos, o trabalho, se pelo
hábito já não lhe parecia pesado, ainda mais leve se lhe tornava.
Na
sua alma boa e sã o amor brotava completamente com aquela criação da natureza,
sempre caprichosa nas suas ofertas, dando a uns demasiado e parecendo esquecer-se
de outros.
As
alcoviteiras da terra, que ao princípio murmuravam, que os rapazes, quase
doutores se deviam envergonhar do Joaquim e da Teresa, quando lhes chegou
aos ouvidos que eles acompanhavam sempre o pai em qualquer trabalho que houvesse,
voltaram o bico ao prego e toca a bradar que o mundo estava doudo
de todo. "Então já se vira alguma vez pessoas quase doutoras a cavar?
Devia ter sido o Joaquim que lhes havia de ter dito que não os podia sustentar
e os esgraçadinhos por amor e por gratidão, enquanto não regressavam a Lisboa,
vá de alombar com a rabiça do arado ou com a enxada.
Não
havia dúvidas, o mundo estava pelas ruas da amargura."
Tanto
falaram, tanta posta de pescada deitaram cá para fora, que não havendo um
coro numeroso, felizmente, e porque este péssimo hábito está nas últimas,
e não tendo também mais nada para inventar, as suas línguas viperinas e desvirtuadas,
pela falta de conhecimentos de fraternidade, acabaram por se calar e tudo
morreu como tinha nascido: com a boca aberta dos papalvos, deformados pela
parvalheira e pela ignorância humana.
IV
Mal obtiveram o canudo, o José
com o curso de Direito e o Vítor com o de Filosóficas,
foram convidados imediatamente a ocupar o lugar de assistentes nas respectivas
faculdades. Porém, pouco tempo por lá se haviam de
gastar; uma remodelação ministerial inesperada mas necessária e oportuna chamou-os
a condutores do povo. Um como ministro da Educação, o Zé, o outro como ministro
da Saúde e Assistência Social.
Guias do bom povo Português, ávido
de compreensão e de esperança no aparecimento da rectidão e da justiça em
cada ser racional.
A senhora Teresa e o homem aí
vieram de trouxa aviada juntar-se aos filhos.
Os novos ministros tinham mandado
construir uma moradia no bairro do Restelo e para
ali, juntamente com os pachanas dos pais adoptivos
e duas criadas, foram viver perante o olhar apardalado
do Jaquim que nunca tinha tido tantas «comunidades»,
como ele próprio dizia na sua analfabética, mas expressiva linguagem.
O bom do campónio a alturas
tantas não aguentou mais e apanhando o doutor José a jeito disparou-lhe:
— Tu desculpa ó Zé, mas eu mais
a cara metade não nos afazemos cá com estas «côsas» e temos que nos ir embora ainda que gostássemos
muito de estar ao pé de vocês; mas tu sabes, a gente não foi feito para
grandezas e o diabo é que por mais que nos esforcemos não somos capazes de nos
habituar. A gente já está acostumado à choça e eu tenho andado meio alapardado cá com tudo isto, até parece que me canso mais
do que andar a pôr couves todo o dia.
Esta coisa de criadas, de mantas
no chão para não se fazer barulho, «ná», a gente até
tem medo de bulir nas coisas.
Tu desculpa, mas nós vamo-nos daqui
para fora e antes que nos «deia» para aí alguma
pasmaceira que fiquemos viradinhos da nuca para
o resto da vida.
E sabes, há falta de pessoal
para a azeitona e eu não quero morrer de preguiça.
Não vês a Teresa como ela está?
Lá, anda sempre a cantar e aqui parece um mocho; e não é por se sentir mal
ao pé de vós, bem o sabeis. Para mais o senhor Leitão prometeu-me trabalho
durante todo o ano e a Teresa também lá tem as suas freguesas. Isto quem não
aparece esquece e a gente precisa uns dos outros pois se não fosse assim éramos
como os animais; e olha que às vezes parecemos quando andam para aí esses
almas da breca a matarem-se uns aos outros.
Então não é uma dor de alma ver
como os homens se odeiam em vez de se ajudarem?
— É sim senhor, mas fora de tudo
o que o pai me disse, sabe bem que já trabalhou o suficiente. Como agora não
precisa de trabalhar para mais ninguém deixa-se cá estar mais uma temporada
e verá como se habitua.
— «Ná,
ná», ninguém me tira esta da ideia; isto de corpo
direito nunca deu bom pão. Estamos mais uns oito ou dez dias e viva o velho.
Tem paciência, mas tu não me arrincas isto da cabeça.
— Pense bem. Talvez ainda mude
de opinião.
- É escusado; já está pensado.
Sabendo que era desnecessário
insistir, o ministro desistiu de argumentar e falou com o irmão.
— Os pais,
querem-se ir embora.
— Então?
— Dizem que lá na terra é que estão
bem, que corpo ao alto nunca deu bom pão e mais uma série de argumentos, que
me demonstraram a resolução inabalável de nos deixarem.
O que pensas fazer?
— Sei lá, deixá-los ir; não os podemos cá segurar.
— Mas partirem assim, sem mais
nem menos, de um dia para o outro!
— Eles já cá estão há perto de
três meses.
—
E que é isso no tempo!?
— Bem, na verdade, no tempo, não
é nada, porém na vida de uma pessoa deixa-me que te diga é alguma coisa,
poucochinho é certo, mas é.
— Deixa-te de brincadeiras e
fala a sério.
— Mas eu falo a sério!
— Está bem então, mas diz-me o
que pensas?
— O que penso? Que sim, que têm
razão, que somente os vadios não gostam de trabalhar, só esses apreciam andar
de corpo ao alto a aborrecer toda a gente. Mas falando mesmo a sério digo-te
que não seria desajuizado comprarmos alguma quintarola
ou algum pedaço de terra para poderem largar o pesado
nome de criados e passarem ao levíssimo de patrões. Sempre é outra coisa do
que estarem sujeitos a quem quer que seja.
— Concertadas
as ideias, escreveram para o único procurador que existia na vila expondo-lhe
o que queriam.
A resposta não se fez esperar.
Para agradar aos senhores ministros seria capaz de ir procurar uma quinta
até à casa do Diabo, porém, não foi necessário. O doutor Inácio tinha uma
à venda e ele comprou-a imediatamente, por coincidência a mesma onde o pai
dos ministros arranjara aquela carga de trabalhos que o levara à prisão e
depois ao descolamento terrestre.
A Teresa e o homem deram por paus
e por pedras, que ser patrão custava muito, que não queriam, o que iam fazer
da casinha deles e isto e aquilo, mas por fim lá se resolveram a experimentar
a nova graduação que lhes vinha pela porta simplesmente porque num dia, já
há alguns anos atrás, tinham ajudado dois catraios, agora senhores ministros
a acertarem o passo para a vida que tão arrevesada
lhes tinha principiado e eles nunca o esqueceram.
A gratidão, ainda que não seja
uma obrigatoriedade eterna para aquele que foi socorrido, é pelo menos um
forte laço de amizade, o qual só se quebra quando
motivos poderosos e difíceis de suster lhe dão o golpe final.
Na vila começou o falatório mesquinho
e ridículo dos pequenos centros onde a carência de assuntos para alimentar
uma conversa é enorme. Depois está claro, tem de servir o que aparece no momento
e aí estava.
— "Isto de se ser ministro
é uma grande chuchadeira, todos são iguais, nenhum entra para lá com intenção
de enriquecer, mas ou são os ares ou são as circunstâncias e mal se para lá
enfiam tem-se logo dinheiro para comprar uma quinta e que senhora quinta!
E uma casa em Lisboa com tudo o que é bom. Até quatro casas de banho, quatro!
Para que querem eles tanta lavança, para quê? Eles,
que nos primeiros anos foram criados sem uma sequer e que, quando queriam
despejar a tripa, iam para os barrocos onde o ar fresco e saudável parece
convidar ao arrear das calças!?
Olhem que isto da importância que
a gente arrebanha com a «inducação» e com o que
escorre por fora é uma grande coisa!
Contudo, as críticas eram pronunciadas
a meia voz, não fossem os irmãos ouvir e desabar por aí alguma vingança
ministrial. Mas ou não ouviram ou se ouviram fizeram
orelhas moucas.
Passada a insânia maligna, as casas
abastadas da povoação, que tinham raparigas casadoiras, começaram em pensar
na melhor maneira de as levar como amostra, quase dádiva, que não se importariam
mesmo de transformar em oferta aos azougados rapazes os quais, alguns anos
antes, teriam esbofeteado e corrido a pontapés se tivessem olhado ainda que
fosse só de esguelha, para suas desconsoladas filhas, ou lhes tivessem pedido
algum favor. Felizmente e para sossego de todos, nunca tal tinha acontecido
pois o orgulho que nasce em todos, pobres e ricos, brotara também nos braços
dos pais adoptivos que nunca abrandaram para que nada lhes faltasse, para
que nunca tivessem que se rebaixar perante um semelhante com mais dinheiro.
A saúde que os protegera e a feliz
sorte de terem saído pobres ensinara-lhes a conhecer quanto custa a vida a
um pobre mortal que traz ao mundo como única riqueza a pele que carrega de
cima dos ossos, e os caminhos livres para dar largas aos passos e aos pensamentos.
Foram estes começos que os levara
a guindar-se aos postos que, então, esperançadamente lhes eram confiados.
Se nada lhes faltasse era muito provável a sua transformação em pacatos burgueses
com a única preocupação de não passarem as horas das refeições e da dormida.
Pela primeira vez, desde há muitos
anos, podemos mesmo dizer, muitíssimos anos, a vila
vivia agitada. Agora com dois ministros no poder
é que era agarrarem-se. Se deixavam fugir aquela oportunidade nunca mais tornavam
a apanhar outra igual.
O círculo
«Fraternidade Penamacorense» foi criado depois de
muitas arrelias e desentendimentos.
Se uns lutavam de boa e desinteressada
vontade para verem a sua terra um pouco mais lembrada e com aspirações a uma
vida mais desafogada da sua população, pelo aparecimento de indústrias, com
o arranjo das estradas sem as quais nunca poderia progredir e com a feitura
de um hospital decente, os outros, os molengões, aqueles que, nem tendo filhas
para apresentar, nem falta de quaisquer meios de subsistência, a não ser o
do aborrecimento por nunca nada terem feito e por nada fazerem, queriam que
o círculo fosse à fava! Os bons carros que possuíam não os deixavam distinguir
as boas das más estradas em virtude da comodidade que oferecem; a azeitona,
a cortiça e o vinho estavam sempre vendidos. Ora, que se lixassem mais o círculo;
que formassem os outros um ou vários já que precisavam de apaparicar os borra-botas
do Vítor e do Zé Barbas. E uma ponta de inveja, a má semente que conspurca
o mundo, fazia-os falar e não só não cooperavam como ainda, com suas palavras,
lançavam o desânimo o que era muito pior do que afastarem-se
pura e simplesmente.
Para trás e para diante, para a
esquerda e para a direita, a verdade é que o círculo se organizou com todos
os aborrecimentos próprios e crónicos, como tudo o que este povo, cheio de
tradições, emocional e sempre amável, tocando por vezes a raia da selvajaria
quando se sente enganado, quando dando o melhor do seu esforço e da sua amizade
franca e sincera se sente iludido por quem franca e desinteressadamente confiou.
Então, é desaparecer, a emoção transforma-se em brutalidade, a boa razão muda-se
quase em cretinice e prefere deixar-se morrer do que ceder perante o que ele
pensa ser uma injustiça ou que é mesmo.
No dia da primeira reunião,
feita toda de vontade, assentaram-se as bases essenciais para que o círculo era
criado.
«Progresso e Educação» seria a divisa que servia de tópico para desenvolver.
O senhor Leitão, propôs-se preparar
o discurso para quando fossem falar aos ministros. As bases foram votadas
e aqueles bons e são parlapatanas, vincaram bem
o que o seu patrício havia de desbobinar:
— Tu dizes o que a gente precisa
e mais nada. Nada de gaguejares, pão pão, queijo queijo.
Eles são gente conhecida e mesmo
que o não fossem, não comiam ninguém. Falas e logo vês. É a falar que a gente
se «intende».
— Pois é, mas nenhum deles é ministro
das comunicações, quando lhes lembrar cá os caminhos.
— Pois não, mas falam com ele,
tu sabes muito bem que quando o patrão é o mesmo, os empregados tratam-se por
tu cá, tu lá e se não tratam é porque alguns são parvos e se julgam mais que os
outros e isso não deve ser o caso dos ministros porque se fossem tansos não
assentavam lá o traseiro.
— Ai não,
que não assentavam! Vê lá tu os cagarretas que por lá têm passado. Às vezes é cada um que
até o Chico tonto era capaz de botar melhor figura.
— Não me venhas cá com tretas.
Todos badalam, todos dão ao chocalho, mas quando para lá vão às vezes ainda
fazem pior, e sabes porque lhes acontece isso? É a língua; nada neste
mundo é mais castigado do que a língua, o falarmos mal dos outros e nós fazermos
a seguir o mesmo.
Olha, e digo-te mais; eles que
os lá põem é porque lhes foi reconhecido valor, se depois saem furados, isso
então, é outra cantiga. Não me queiras tu convencer que se mete ali um pulhazito qualquer só para encher o papo e prejudicar o Zé povinho! Não, essa não me enfias
tu.
— Pois escuta, se não metem, então
imitam muito bem. Que lá têm passado grandes ceguinhos, isso não restam dúvidas.
E tu sabe-lo tão bem como eu.
Destes, ainda não podemos falar, mas o que for soará.
— Anda cala-te. E não te esqueças
da linguazinha.
— Está bem, está bem. Está descansado
que não esqueço. Mas olha que o que me faz falar e às vezes, anda que eu bem
o reconheço, um bocado azedo, é o amor que tenho a isto tudo. Então a «gente»
não podíamos fazer deste país, que todos amamos, um lugar de felicidade para
quem cá habita, e mesmo para aqueles que vêm do estrangeiro
cá passarem uma férias sossegadas? Podíamos sim senhor.
Então com a breca, porque esperamos? Olha que não é difícil!
— Isso parece-te a ti! Mas olha
que tem muito que se lhe diga.
— Pois a mim, não me diz nada para
te ser franco. Tu, quando tens lá no quintal alguma árvore que não te dá coisa
alguma ou quando os galhos estão secos, o que é que fazes?
Corta-los naturalmente.
— Sim, sim, isso é tudo muito lindo
em conversa, mas na prática às vezes não pode ser assim.
— Não pode, mas deve!
Com interrupções de toda a espécie
lá foi andando aquela primeira reunião em que também foi debatida a
futura volta do doutor Inácio à vila. O homem dava-se mal na cidade e o diacho da saudade ou lá o que é este mal, ia-o roendo aos
poucos. Tinha escrito ao Presidente da Câmara, pedindo-lhe o enorme favor
de auscultar, por intermédio dos seus ramos, o povo e fazer-lhes compreender
que um homem pode errar uma vez na vida.
A criação do círculo, aparecera
que nem ginjas, porque aí, estavam representados todos os indivíduos da terra,
até mesmo pessoas que nada mais tinham do que a roupa do corpo e o direito
à vida, ali foram representados. O necessário era terem a quarta classe.
Como a ocasião se proporcionava,
o Presidente da Câmara expôs o assunto.
Nessa altura reinou silêncio profundo,
naquele salão enorme da Casa do Povo, e por momentos existiu a sensação de
que a sala tinha ficado vazia.
O povo, este povo que tanto sabe
amar como odiar, talvez fruto da tendência climatérica, da atracção pelos
extremos, via bem quanto o doutor Inácio tinha sido castigado.
Por pior patife que se seja, não
há ninguém, que de tempos a tempos, não deseje voltar à sua terra natal, recordar
um pouco da sua meninice nas casas, nas gentes e nos campos que a circundam.
E se não voltam, começam a mirrar a mirrar e adeus doce encanto da vida. Para
mais, quem, senão ele foi o obreiro da criação das aspirações sintetizadas
naquela associação?
Ninguém sabia que tinha sido o
doutor Inácio a causa indirecta da subida dos rapazes nas escadas da vida,
porém, o fluído telepático que se exala das pessoas, tinha-lhes sussurrado algo
a cada um.
Não fora ele, que num dia em que
eles pensavam primeiro infeliz, mas que agora já não tinham bem a certeza
de como o classificar, levara o Manuel Barbas à barra do tribunal que fizera
com que os filhos alcançassem semelhantes lugares?
Que volte! - responderam em uníssono.
Assim, como desassombradamente o expulsaram anos antes, assim, anos depois desassombradamente o recebiam. "Para o diabo os rancores, os ódios antigos."
O c
Os habitantes, daquela pequena
terra, não podiam ter, como seus representantes, tais anormalidades e felizmente
não tinham.
V
A vida no Ministério da Educação, era o símbolo do trabalho árduo. O ministro, que nunca sabia
a que horas entrava ou saía, tinha dispensado o motorista
e era ele próprio, sem receio de que os parentes lhe caíssem na lama, quem
conduzia o seu pequeno carro.
O respeito, mais feito pela
admiração que não pelo medo, votado pelos seus funcionários, era o exemplo
frisante de quem se impõe pelo seu valor e não por suas despóticas maneiras.
Ao tomar posse de tão delicado
cargo, chamou directores de serviço, chefes de repartição, chefes de secção,
primeiros, segundos e terceiros oficiais, aspirantes, contínuos, motoristas
e paquetes aos quais falou de igual para igual e da mesma maneira e em termos
simples, sem arrebiques escusados.
— Os senhores são seres pensantes,
cabeça, tronco e membros, em que a cabeça e a vivacidade de cada
um permite ver inovações ou planos diferentes de bom seguimento dos serviços
em que estiverem destacados. Pois bem, o ministro é igualzinho a vós e não
qualquer sobrenatural, e está sempre pronto a ouvir os vossos pontos de vista.
Somente, antes de os apresentarem, lhes pede o favor de os ponderarem bem
para honrarmos a frase «Poupar tempo é aumentar a vida».
Quando eu errar, nada de vénias
hipócritas colaborando na má visão do assunto que quero aprovar ou que inconscientemente
aprovei. Desempenadamente, sem qualquer receio,
porque todos somos iguais e por isso mesmo todos estamos sujeitos a errar,
apontem onde está o bolor dessa falta. Se isso não fizerem, e me apoiarem nos momentos das minhas falhas, fracas,
sem qualquer utilidade e que podem prejudicar muitíssimas pessoas, podereis
acreditar, que nem eu, nem vós fizemos nada para a elevação deste povo de
que somos parte integrante. E mais, aqueles que hoje me rendem preitos e me
dobram a coluna vertebral, amanhã apelidar-me-ão de grande tratante ou de
mentecapto pelo menos.
Sejam homens na verdadeira acepção
da palavra e não biltres vulgares, manobrados por cordelinhos.
À ansiedade de fazer tudo de repelão,
vinha-lhe a calma para ponderar e estudar profundamente todos os assuntos,
para os pensar repetidas vezes como fazia entender aos seus subordinados.
Via e revia os problemas humanos
muitas vezes, e fazia-o nestes, não porque à primeira vista parecessem difíceis,
mas sim, porque só ao cabo de muito se analisarem se pode chegar a uma conclusão.
Todos sabemos que o pensamento varia de pessoa para
pessoa, e sem se encontrar um meio intermédio de satisfazer, pelo menos a
maioria, o estudo que se fez foi um falhanço total.
O Sol que timidamente entrava no
gabinete atapetado, parecia ao franquear aquela janela temer provocar qualquer
ruído que pudesse perturbar aquele sossego todo feito de trabalho
e de meditação; e o doutor passava dias sem saber se o tempo estava frio ou
quente, húmido ou seco.
A reforma do ensino tornava-se
urgente e ele necessitava de a forjar com todos os seus utensílios e com todas
as suas forças não só materiais como psíquicas.
A plagiação
dos métodos europeus em que o ensino primário varia de seis a oito e onze
anos, não lhe dizia nada. A maneira de dizer: «O nosso povo é um povo diferente»
fazia-o pensar. Ele bem sabia que todos os povos, divididos em Estados ou
em Nações, são todos diferentes, porque se o não
fossem, não conseguiriam ser nem Estados nem Nações. Sê-lo-iam talvez sim,
mas encaixados noutros. Brotavam-lhe ideias aos magotes, porém, quando lhes
tomava bem o peso, via sempre que algunss gramas lhe faltavam e que o sistema
podia falhar por este ou aquele motivo e assim, nestas congeminações tentava
descortinar uma directiva que pudesse coordenar o viver climático e o viver
substância de um povo com poucos mais recursos do que um Sol esplendoroso,
um mar cantante, um céu bem azul e uma vontade férrea dos seus habitantes
transformarem todos estes elementos da natureza para que eles possam dar o
mínimo para sobreviver.
Faziam-se sentir a falta de casas
para estudantes junto das universidades, casas, onde além da vulgaríssima
cama para descansar, o aluno tivesse pelo menos uma sala para um pouco de
cavaqueira desanuviadora do esforço despendido durante
o dia, pela recordação das traquinices de cada um, em mais novos, para assim,
quando no declinar da vida à lareira ou tomando Sol juntamente com os netos,
poderem recordar imediatamente estes felizes momentos passados; porque esquecendo-os,
eles sabem que os velhinhos se nada têm para contar, se nada na vida passada
lhes lembra, se tornam embirrentos pegando por tudo e por nada; e ninguém
nesta vida quer chegar a semelhante ponto, ao ponto de fatigarem toda a gente.
Estes pensamentos e outros semelhantes
atormentavam-no profundamente. Ainda em plena força da juventude, a cabeça
pendia-lhe já sobre o corpo como espiga bem cheia de grãos de trigo. O rapaz
de há quinze ou vinte anos desaparecera completamente. O estavanado Zé Barbas deixara de existir para dar lugar ao
ministro José Barbas, consciente das responsabilidades que lhe sobrecarregavam
os ombros, o seu carácter e a hombridade
de quem conhece o que lhe é exigido e que sabe quanto a má visão de qualquer
assunto pode acarretar graves problemas se não de efeito próximo, mas sim
num futuro mais ou menos chegado.
A toleima, a vaidade enfatuada
que por vezes é o apanágio dos indivíduos nascidos do nada e guindados a altos
lugares pela sorte ou pela esperteza, não o tinham apodrecido e se, distraído
pelos pensamentos que o levavam a ajudar e a criar uma humanidade mais feliz,
não cumprimentava este ou aquele, todos sabiam o motivo porque o não fazia;
distracção, como poderiam dizer, atenção concentrada.
O caso do irmão por bastante invulgar
e por aparecer ainda que raríssimas vezes em pessoa, de sensibilidades extremas,
trazia-o bastante apreensivo.
Vítor Manuel, depois de dois anos
no ministério onde conseguira fazer em pouco tempo uma obra notável ao demonstrar
a grandes industriais e a grandes lavradores, que, felizmente o compreenderam
na maioria, que construindo lares para os seus empregados, dando-lhes uma
casa decente, não só tinham mão-de-obra sempre assegurada, como proporcionando-lhes
mais conforto, o rendimento seria muito superior, por não se sentirem tão
postos de parte pelo patrão, como ainda, porque poupando calorias eles as
poderiam empregar no serviço a que estavam destinados; conseguiu fazer triunfar
o bom-senso e deu-se um bom passo em frente para
resolver a crise habitacional e até para a extinção da vista degradante de
algumas barracas miseráveis onde os trabalhadores habitavam junto da berma
das estradas, onde anteriormente nacionais e turistas estrangeiros ficavam
embasbacados olhando para um dos princípios da degradação do género humano.
O apetrechamento hospitalar foi
todo estudado e o assunto parecia quase resolvido quando o ministro teve qualquer
coisa parecida com um esgotamento cerebral, pois os médicos nunca souberam
bem definir o que tinha sido ainda que a aparência de esgotamento estivesse
patente, mas com características fora do comum, o que o levou a afastar-se
definitivamente do ministério.
Quando melhorou parecia outro,
novas ideias borbulhavam naquele cérebro truculento, iria para padre. A miséria
que vira e que tentara debelar mostrara-lhe o caminho, padre, seria padre.
Quase incógnito entrou para o
seminário, para os estudos teológicos em virtude do seu adiantado grau de
cultura. Pouco tempo seria servo da Santa Madre
Igreja.
Passou o primeiro ano agarrado
ao estudo, numa ânsia desmedida de conhecer qual o nosso lugar no mundo, até
onde pode ir o nosso conhecimento, como nos devemos conduzir, o que podemos desejar e onde está o princípio motor da criação.
Sem respostas concretas para as
suas dúvidas, no segundo ano enveredou para outro caminho. Para o estudo dos
seus futuros colegas; e então, veio a desilusão total. Viu-os a alguns desnudados
das amabilidades celestes. Um, logo que se ordenasse, comprava uma lambreta, outro um automóvel, outro fazia planos caseiros
e assim por diante, antes, muito antes de pensarem a melhor maneira de conduzir
o rebanho que lhes era entregue.
Não pôde entender que entre os cordeiros
do Senhor pudesse haver ovelhas ranhosas e tanto pensou, tanto ouviu, tanto
magicou que para não lhe dar outra macacoa semelhante à que o encaminhara para
ali, resolveu abandonar seres tão materialistas e tão pouco espirituais.
Sem dizer daqui te escrevo, sem
mesmo dizer água vai, desapareceu do país.
O irmão,
tentou por todos os meios encontrá-lo. Tudo foi inútil, todos os esforços
saíram gorados. O aspirante a profeta partira e não deixara rasto.
A força da insatisfação entrara
nele com todos os poderes. Tomou-o, possuiu-o o desejo
de encontrar o ponto princípio e o ponto fim da existência e foi isso, só
isso, o que a bem pensar já não é nada pouco, que o fez desaparecer. Todos
o sabiam, porém, era difícil para aqueles que o tinham conhecido, desde que
ainda andava de cueiros e de chucha na boca, desempoeirado e amalandrado
como não havia outro a não ser o irmão e agora transformar-se daquela maneira!
Sem sombra de dúvidas que o micróbio
pensante tem ainda os seus quês, é ou não verdade? A evolução do pigmento
idealista continua a ser um bem difícil problema de palavras cruzadas. É ou
não é assim? Então, porque perdem tempo com porcarias que só servem para fazer
mal e não tentam dissecar profundamente o espírito humano? Encolhem os ombros?
Não sabem? Também o ministro da Educação fez o mesmo, encolhendo os ombros
como um desabafo de vencido.
Mas a vida não é só feita de pensamentos
tenebrosos e aborrecidos, ela é também feita de distracções que lhe estão
ligadas naturalógicamente.
José Augusto Barbas, a quem o potencial
da vida, de tempos a tempos fazia lembrar que tinha de desviar a corrente
da consciência da papelada que lhe atulhava a secretária para pensar no casamento,
com estes safanões da doença e das decisões do irmão andava de tal modo com
a mioleira à razão de juros que mal se acendia a luz vermelha a mostrar-lhe
que devia não esquecer um dos deveres que a natureza impõe e os racionais
acatam com prazer de multiplicar a espécie, era logo extinta pelo caso de
esta ou de aquela irregularidade no seu ministério e que a todo o custo jurava
pôr cobro ou por outro qualquer assunto de suma importância.
Os convites para bailes, recepções,
jantares, beberetes e outras comezainas parecidas, formavam pilha de equilíbrio
duvidoso. A resposta era sempre a mesma quando não se esquecia de a mandar.
"Pedia desculpa de não comparecer, mas fazia-se representar pelo subsecretário".
No entanto, naquele dia, fatigado, completamente estoirado pela trabalheira
tida durante seis horas a fio e com a lamparina bem espevitada, olhou fixamente
o convite que se mostrava a dois palmos do nariz: «Chá dançante com fins caritativos e que se prolongaria por
toda a noite na casa da condessa de Araújo». Olhou,
tornou a olhar, contudo o nome não lhe dizia nada, também não
era problema de maior interesse. Depois de pensar e repensar, de relembrar
o seu nascimento e de o comparar com a sua actual posição, depois de ter dito
de si para si:
«Se eu fosse o labregozito a que estava destinado pelo nascimento e pela
preparação inicial para a vida, em vez de mandarem convites davam-me era pontapés
nos fundilhos.
Pobres pais, o que teriam
passado antes de me gerarem e a sorte que lhes estava destinada.»
Ricos e pobres, espertalhões o
acéfalos, oásis e desertos! O mundo tem as suas irreverênciazinhas,
ai tem, não me podem restar quaisquer dúvidas; o
mal é não haver quem lhe tire as cócegas e o não deixe ter veleidades malucas,
umas vezes são tremores de terra, outras são furacões, outras são maremotos,
eu sei lá, é o diabo à solta! E não há o filho de uma velha que o faça meter
na linha!
Olhem que é triste estar aqui um
ser pensante com cabeça e olhos para ver tudo isto e ficar de braços cruzados
a ver morrer os seus semelhantes,
enquanto que a distracção não o faz ir também na maré. É triste, é sim senhor,
estarmos sujeitos à força dos elementos e não termos ainda potência para, mal víssemos aproximar estas
catástrofes, lhe dizermos:
«Êh!
êh!, mas
que conversa é essa? Voltem lá pelo mesmo caminho que vieram e com o rabinho
entre as pernas porque senão, vai aqui haver o diabo com forma de gente!»
Mas não. Ainda não chegam só estas calamidades para darem cabo do canastro
ao pobre Zé ninguém como ainda inventam bombas H, atómicas e
daqui a pouco meteóricas ou qualquer coisa
assim parecida.
«Vou ao baile, está resolvido,
vou e enquanto não encontrar a futura esposa, tenho que aceitar convites para
bailes e recepções; aceitarei tudo, vai ser um fartote! Será por alguns meses
uma das minhas actividades a que me dedicarei somente com o coração e dois
gramas de massa cinzenta.»
O Sol tinha-se escondido, o cinzento
do céu, de nuvens esfaroladas, pela primeira vez
desde há cinco anos, chamou a sua atenção.
Num desejo fantástico de recordar
a sua paixão de moço, desceu em direcção ao rio,
a esse Tejo prateado e manso como um lago em dia de calmaria, o Tejo que só
de olhá-lo a tristeza se transforma em sonho e a má disposição em simples
devaneio monótono.
Tomou um cacilheiro como um pacato
burguês, indiferente aos olhares admirados dos que o rodeavam e que de dedo
em riste, um dos maus hábitos que ainda não se largaram totalmente, exclamavam em surdina:
— Eh pá,
olha o ministro da Educação! Aquele não tem caganças,
parece ser uma inteligência!
—É, é um tipo fixe.
— E o irmão também o era. Parece
que se foi embora por alguns lavradores que arregimentam pessoal para a ceifa
não quererem arranjar cómodos próprios para essa gente.
— Olha que não. Ele teve foi um
desaparecimento de memória ou coisa assim parecida.
— Já te disse e é assim como te
falo. Os tipos, agarraram-se com unhas e dentes e ele não conseguiu fazer
nada. Senão, olha para o gentio que vai para a ceifa e para a apanha da azeitona
e vê como dorme numa promiscuidade abençoada!
— Ó pázinho
tem juízo, então eu não sei que muitos lavradores construíram bastantes casas.
— Pois construíram, meu filho,
mas houve muitos outros que se estiveram nas tintas!
— Lá isso não sei.
Eu cá de políticas não percebo nenhum. Mas espera aí, agora me lembro; já me
estavas a querer enfiar o garruço.
— Sim, então que foi?
— Agora, esses cavalheiros da
apanha e da ceifa, já não costumam ficar nas quintas para onde vão trabalhar.
Sabes o que fazem?
—Diz.
— O patrão, ao terminarem o trabalho
do dia, manda-os pôr num atrelado ou num meio de transporte qualquer, na terra
mais próxima onde vão pernoitar com o tocador para darem uns passos de dança
enquanto não chega o sono, e depois cama que se faz tarde e no outro dia é
dia de trabalho. Assim é como se faz agora.
— Talvez.
— Talvez? É certo, essa te afianço eu. Só agora me lembrei que o meu tio Serafim anda
nestas andanças e que já tinha falado nisto.
As conversas deste género, pululavam por todo o lado, naquele pequeno barco. Pudera!
Um ministro é sempre um ministro
e um ministro tem algo que se lhe diga e muito, mesmo muito para dizer. Se não
diz e se não faz, ainda que a isso
seja alheio provoca desilusões em muitas almas.
De olhos fixos na Lisboa abarcada
desde o Castelo de S. Jorge à Torre de Belém, a Lisboa feita de altos e baixos,
tão maravilhosamente bela, tão suave e tão altiva no seu casario multicolor;
José Augusto era o protótipo do abstracto.
Como é possível Lisboa, que albergues
no teu interior o joio deste povo!
O cacilheiro, com uns safanões,
acostara e a multidão, espreitando pelo rabo do olho, via o ministro numa
espécie de êxtase, provocado pela mente, perscrutando o infinito no finito
das coisas:
Passo a passo, maquinalmente, cabeça
baixa, ar pensativo, saiu do barco, dirigiu-se a um restaurante, sentou-se
e depois de ter encomendado o jantar sem prestar atenção aos salamaleques
do criado-mor que afastara propositadamente o seu
subordinado para servir ele em pessoa o senhor ministro. Este, cada vez mais
enamorado da bela cidade, olhava, olhava, com os olhos sôfregos que o esfomeado
faz luzir ao desejar ardentemente o pitéu que está na sua frente, mas ao qual
lhe é vedado tocar. Olhava Lisboa como se fosse a primeira vez que a visse
e não a milésima ou mais. Na verdade, ela é inigualável e agora, ao escurecer,
cada vez mais cheia de sombras, de céu azul pintalgado de nuvens como posadora
profissional ajeitando o quadro que o artista embevecido pinta com deleite.
De repente, as sombras transformam-se em luz, em miríades de pequeninos pirilampos
esvoaçando a diferentes alturas.
O Tejo, qual espelho orgulhoso
da cidade que nele se vê, mostrando-lhe todos os seus contornos à distância,
com a lua de bochecha inchada aloirando-lhe as formas, dá-lhe um cunho muito
seu.
Como um autómato, de colherada
em colherada, ficara-lhe o hábito do leito, sempre preferira uma boa pratada
de sopa às entradas à francesa, de garfada em garfada terminou o repasto,
pagou, gorgeteou e andou para a Lisboa dos seus
sonhos. Contudo, antes de partir, o dono da casa, solícito, de sorriso bonacheirão,
dobrando cem vezes a espinha bem guarnecida de tecido adiposo e numa maravilhosa
demonstração de servilismo, nem oito nem oitenta, perguntava ao senhor ministro
se tudo correra bem, se não desejava mais alguma coisa se lhe concedia a honra
de oferecer um Madeira ou um Porto; senhor ministro para aqui, senhor ministro
para ali.
Acordando do sono letargal, anuiu a beber um Madeira e felicitou o dono do restaurante
pelo modo como tudo estava preparado. Contudo, disse-lhe a meia voz: faço
votos para que todos os clientes sejam tratados como o ministro.
— Certamente, certamente senhor
ministro, a gente prima pelo bom, só assim se arranjam óptimos fregueses!
— Com um aperto de mão despretensioso,
com o sorriso plebaico que lhe brilhava sempre quando
via algo mais do que papéis à sua frente, despediu-se.
Tomou o cacilheiro de regresso já pronto a largar, com uma ideia que tentava reter
a todo o custo:
«Hoje, vou a um chá de caridade, um bocado atrasado, mas ainda tenho tempo
com certeza para me aborrecer» — isto era quanto pensava, mas no capítulo
do aborrecimento saíram-lhe os cálculos furados.
VI
Se um trambolho qualquer, lançado
distraidamente por um cosmonauta em viagem de recreio,
tivesse caído na pacata Lisboa, não teria por certo produzido maior barulho
do que ocasionou, o ministro José Augusto Barbas, ao ser introduzido nos salões
da condessa.
O passo
descontraído, o olhar agaiatado, qual reposição de outrora, o cabelo sem brilhantina,
mão em posição de ataque à cata da dona da casa, que pressurosa, encantada
com este convidado da última hora, que não chegara nem sequer a acusar a recepção
do convite, e que por tal motivo nem por sonhos o imaginara, viera pôr a sala
em reboliço.
Distraidamente não beijara a mão
à condessa mãe, nem a de qualquer outra componente do cházinho.
Isto de uma pessoa nascer sem trazer
gravado nas costas: eu vou ser doutor, ministro, industrial, empreiteiro ou
pedinte, não estava bem. Se toda a gente trouxesse marca já não sucedia aquele
desastre. Contudo a um ministro é sempre perdoável, mas parece mal, não é
verdade?
Não beijar a mão à condessa, era
lá possível! Tanto que era, que foi. E não tenham dúvidas que, se a gente
viesse com os escritozinhos no costado,
indicando o caminho que cada um trilharia neste vale de lágrimas para uns,
e campo de espectáculos para outros, que é o mundo, fazia-se a separação como
quem escolhe feijão frade e já não havia enganos de qualquer espécie. Porém,
a técnica reprodutora ainda não descobriu esse meio avançado de prevenção
e... bem, a verdade, e apesar da pequena indelicadeza se
bem que, quase involuntária, o ministro fez
um sucesso levado da breca.
— Ó filha, tu nem calculas; é cheio de encanto, aquilo sim, aquilo é um homem.
Sem peneiras, terra a terra, tu cá, tu lá e doce, tão doce! Um homem de verdade.
— Vê lá não te derretas.
— Não te admires.
— Dançastes com ele, sentistes
bem a sua presença?
— À distância filha, só à
distância, dançar com ele era tabu e não consegui. Todas queriam experimentar o
que era baloiçar nos braços de um ministro novinho em folha e solteiro; estás a
ver, com estes predicados, pareciam moscas. Olha, atiravam-se a ele como gato a
bofes. Inacreditável, simplesmente inacreditável!
— Então, e... tu, nada.
— Nadinha, palavra de honra que
não consegui mais que tocar-lhe na manga esquerda
do casaco! Aquelas sanguessugas não o largavam, mas digo-te que lhe hei-de
pedir para me receber lá no ministério.
— Para quê? Tu és doida ou estás, a começar? Mas, tu falaste em casaco, então
o homem, de quem se fala, não levava fraque?
— Nem levava fraque, nem beijou
a mão a ninguém! Aquilo é um homem às direitas, nada de modas atrasadas e
de pedantismos, isso só serve para se perder tempo e a paciência. A pôr colarinhos,
a tirar colarinhos, eu sei lá. Ó filha, tu sabes
lá os trabalhos que os homens passam com aquelas velharias dos séculos passados!
Mas digo-te que hei-de tentar
estar com, ele.
— Que lhe vais dizer, santinha?
— Não sei bem ainda, mas talvez,
que gosto dele, o admiro, que todo o mundo o admira e que eu sou parte
integrante do mundo.
— Isso já ele sabe. Não sejas tonta,
não o aborreças. Preocupações a mais já ele deve ter.
— Mas meteu-se-me esta na cabeça
e tenho-lhe que falar por força! Nem que eu tenha de ir a todos os chás de
caridade que aparecerem. Prometo-te que não o hei-de aborrecer.
— José Augusto, em abono da verdade,
fora um autêntico folião. Sem as regras protocolares, esquecido completamente
da sua posição, embebido e embalado por dezenas de suavíssimas mãos que o
solicitavam, nunca mais pensou no ministério, nem na papelada, nem em reformas.
O «chá
cup», o chá Porto, o chá Madeira e o chá-chá,
levaram-no à barra. Às cinco da manhã dançava com a condessa mais nova, sua
companheira inseparável, o twist.
- Assim, senhor ministro.
— Por favor, condessa, trate-me
por José Augusto.
— Pois bem, José Augusto, o «twist» começa pelo balanceamento dos braços, assim, veja,
depois, as pernas bamboleando de um lado para o outro, com movimentos acentuados
das ancas e da coluna vertebral; olhe bem, assim.
Isso mesmo. Não mexa os pés do
mesmo sitio. Formidável! Estupendíssimo!
O baile terminou a altas horas.
Os periódicos no dia seguinte podiam
ter feito uma boa tiragem explorando o acontecimento, contudo, olvidaram-no,
não porque José Augusto lhes tivesse assobiado aos ouvidos para que não fizessem
alarde do seu à vontade, mas sim, porque em toda
a gente e em todos os sectores contava com um amigo. Com todos podia estar
tranquilo porque a sua honestidade o impunham e o que ele fizera, muitos milhares
de mortais o faziam; com a única diferença de que nem todos são ministros.
Meio azamboado por aquele prefácio
de entrada em contacto com a sociedade de preocupações camufladas e disfarçadas
nestas diversões, sem alfarrábios mas com muitíssimas formas, fazia-o divagar
esbanjando ideias de momento.
"Diverti-me! Diverti-me! Foi
uma noite em cheio, sim senhor! Quem o havia de dizer! Dim,
dam, dom.
Cantarolando, passava a mão pelo
queixo, via-se ao espelho da casa de banho, esticava bem o pescoço e de mão
na garganta, puxando bem a pele, mirava-se e remirava-se como que admirado
com o que se tinha passado e da cara amarelenta e dos olhos iterícicos.
"Dim,
dam, dom, estás com uma
cor terrosa, meu velho! Ai ai ai,
dim, dam, dom.
Deitou-se, o quarto girava à sua
volta em velocidade supersónica. Mal fechava os olhos, zuc,
parecia-lhe que tudo ia cair a todo o vapor; círculos coloridos, rodopiavam, rodopiavam formando um prisma de muitas cores,
com predominância do cinzento muito escuro a atirar para preto. Abria-os,
arregalava-os descomunalmente e segurava-se à cama com ambas as mãos.
" Miúdas! Miúdas! Miúdas!
Ena tanta gente! ... É desta vez.
A condessa é bem girinha! Gluc, gluc! Já deve ser entradota, mas bem conservada e dizia cada uma, gluc. O malvado do twist deu-me
cabo da tramontana e pôs-me o corpo num feixe; não, aquilo não é dança de
gente! Mas a Teresinha, ai a Teresinha, um amor, um autêntico amor!
Com estes pensamentos e com mais
volta menos volta lá se deixou dormir. Mal tinha pregado olho;
— Senhor doutor, ó senhor
doutor.
— Hum... Hum...
— Então não se levanta?
— Hum... Hum...
E esticava desmedidamente os braços,
levantando um pouco a cabeça no doce prazer de proporcionar maior elasticidade
aos músculos, usando, como qualquer burguês, o velho método de lançar a preguiça
para trás das costas. Sendo ministro era de carne e osso como qualquer seu
semelhante pior ou melhor vestido.
— Já telefonaram três pessoas.
— Oh! ai.
— Então, sempre quer o cafézinho na cama?
— Ai Joaquina, Joaquina. Deixa-me
dormir, deixas, sim?
— Então e há-de ficar assim? Era
num instante enquanto o enfiava pela goela abaixo.
— Não mulher, não, obrigado.
— Sempre ficava mais confortado.
Custa-me tanto vê-lo ficar sem nada no estômago.
Ao fazer a barba, ia recordando
por entre o esbatido do sabor a papel de música, misturado com o hálito
refrescante proporcionado pela pasta dentífrica:
" Que noite, que noite! Não
pode ser, devia tê-las feito lindas não haja dúvida! Estou mesmo a ver os
jornais, vai ser o bom e o bonito!
Mas não foi. A compreensão humana
estava ganhando terreno. Que os desregramentos sejam tornados públicos para
aqueles que os cometem se sentirem vexados, sim senhor. Mas que um caso esporádico
seja tomado como opróbrio da pessoa que o cometeu pela primeira vez, nunca.
Ao entrar mais tarde no
ministério, facto que toda a gente estranhou, mas sem que alguém comentasse o
caso com o vizinho do lado, foi visitar secção por secção para olhar bem todos
os funcionários que não podiam ir a chás de caridade, porque a caridade
tinha-os esquecido e o ordenado mal chegava para a renda da casa e para o
comer. No vestir, as mulheres faziam os milagres. Mas milagres, quantas e
quantas vezes com que sacrifícios, com quantas lágrimas e aborrecimentos?!
Não restavam dúvidas, a emancipação
da mulher em Portugal, mais cedo ou mais tarde, era evidente. E a razão saltava
à vista. Todos os casais em que marido e esposa estavam empregados, viviam
razoavelmente, os outros apertadamente. E a emancipação fazia-se porque a
mulher deixou de ser o bicho do mato, sempre encafuada
em casa, para contactar, com acerto, com ideias e com factos para a valorização
humana.
Regressou ao gabinete. Hoje, não
faria nada. Os papéis, se amontoados estavam, amontoados ficaram.
Feriado. Decretara descanso. Um
dia de folga depois de cinco anos de trabalho não faz mal a ninguém e não
há o perigo de se apanharem maus hábitos.
Olhando o jardim fronteiriço,
testa encostada à vidraça para acalmar o calor de que estava possuído,
continuava a ladainha matinal.
" Foi uma grande noite, foi
uma grande noite!
Não cheguei a conhecer no íntimo
qualquer pessoa que me foi apresentada ou com quem dancei. Mas foi muitíssimo
bom, muitíssimo bom!
Está resolvido, até ao fim do
ano tenho que me casar. Estamos em Fevereiro; até Dezembro tens que arranjar
mais um entretenimento, meu velho.
A condessazinha
é simpática. Porém, fuma, fuma, fuma como uma locomotiva a carvão. Mas parece
boa pessoa. Mas a idade? Isto é uma encrenca!
A Teresinha é bem bonitinha! Talvez
dezassete, talvez dezanove; e a maneira como dança o twist, uf! «Ná», dá cabo do rapaz enquanto o diabo esfrega um olho. Isso não
pode ser.
A Leonor, vinte e dois, vinte e
três, um ar púdico, quase candura em botão, pode ser.
Dancei três vezes com ela, de vez
em quando sentia a sua pequenina mão apertar-me a minha com toda a sua minúscula
força. Nunca levantava os olhos e quando lhe falava, num gesto de agradecimento
pelas minhas palavras, tlac, uma apertadela de mão
e um encosto peitoral mais violento.
Boa
pequena, não restam
dúvidas.
Ou eu me engano muito, ou ela é
filha do industrial Azeredo que meu infeliz irmão convenceu, em curtas penadas,
a fazer uma obra social como não existe ainda segunda. Talvez. Tudo pode acontecer.
Quando as ideias começam a borbulhar
e as sensações volitivas lhes dão razão, o desejo toma-se uma ordem imperativa
e não há ninguém que o sustenha.
O doutor José Augusto Barbas, depois
de alguns dias, em que o trabalho não lhe luzia nem um centésimo do costumado,
habituou-se à ideia do facto a consumar.
Casamento, casamento, casamento
era a sua obcecação entre umas correcções às propostas a apresentar ou um
ofício para um organismo chorudo e que tinha de assinar.
Contra o hábito, lia por vezes
uma coisa oito ou nove vezes sem ter percebido nada do que acabara de
vistoriar, olhando. Arreliava-se, andava cansado, tudo lhe corria ao contrário
do que imaginara. Eu sei lá, um conjunto de factores conjugava-se para o levar
a dar o Nó fatal.
Começara a aceitar todos os
convites onde teria probabilidades de encontrar a filha do industrial e, em
verdade, topava-a sempre.
A luta para dançar mais vezes com
a já imaginada futura esposa do que com as outras admiradoras ministeriais,
era exaustiva.
— Senhor ministro, tenho um
assunto muito importante a revelar a V. Ex.ª Posso dançar a seguir com o
senhor?
— Certamente, certamente; - respondia
com sorriso amarelo, mas muito bem disfarçado. Lá no interior ficava pior
do que uma barata.
— Óh
filha, o ministro é cá uma destas brasas! E sai-se com cada uma!
— Dançaste com ele?
— Dancei; maravilhoso, maravilhoso.
Maravilhoso e sabidão.
— Presa pelo beicinho!
- Também tu ficavas. Ouvi dizer
que vai ao baile da Faculdade de Letras para conhecer problemas no próprio
local. Contudo, parece-me que antes, inaugura não
sei o quê. Tu sabes, qualquer coisa que eles inventaram, para
dar mais pompa ao acto.
Se quiseres ir...
— Aceito. Já agora também quero
conhecer pessoalmente essa especialidade.
— Mas repara que é dificílimo de
caçar. Tens que te valer de todos os expedientes. Dos lícitos e dos ilícitos.
— Valerei.
Porém, José Augusto remava em
direcção a Leonor e Leonor nadava em direcção ao ministro; e, ainda que com
muitas dificuldades os encontros podiam-se considerar bons, atendendo à enormíssima
concorrência.
A notícia soube-se em fins de
Maio.
O doutor José Augusto Barbas
casaria em Outubro com a maravilhosa Leonor Azeredo de Castro.
O acontecimento, comentado em todos
os palmos de terra, habitados neste país, era fruto de todas as conversas.
Também num pequeno território como este, a um espirro dado por José Augusto
em Lisboa, os do Porto responderiam com toda a facilidade dizendo: "Saúde
e bichas, senhor ministro". A que ele, com aquela fleuma que lhe era
peculiar, diria: "bem hajam." E toda a gente meteria o nariz no
que estava a fazer, sem mais interrupções, até nova espirradela.
Leonor levava como prenda e dote
de casamento, uma herdade enorme junto de Évora, um pequeno barco, um automóvel
e dois mil contos para as primeiras impressões.
O ministro punha, segundo a voz
abafada da coscuvilhice: O título ministerial e o físico incorrupto, pleno de
toda a sua força potencial nunca antes desbaratada em qualquer espécie de cabotinice ou acto menos próprio de alguém que deseja ter
filhos sãos de corpo e escorreitos de pensamento.
O casamento realizou-se em Outubro
como fora marcado e, ainda que tivesse sido um acontecimento de truz, deixou
muita gente desiludida. E eu já lhes vou dizer porquê.
O casal, numa medida que devia
só ter partido do ministro pois, segundo as linguazinhas
esparvoadas da ignorância; tinha os gostos estragados
para determinadas coisas, em vez de seguir em viagem
de núpcias para o estrangeiro, porque é chique, porque é gaiteiro, porque
é... parvoíce de quem pleita uma causa destas sem
conhecer bem o nosso país, sejamos francos e sem papas na língua, porque o
papão já ficou há mais de um quarto de século atrás. Mas com este desabafo
já nem sei onde íamos. Ah, sim! Pois, em vez de seguirem para
o estrangeiro a estafar a dinheirama
ganha com tantas gotas de suor pelo industrial e pelos seus empregados, não
senhor. Resolveram passar o mês de férias, que o titular da pasta da Educação
tirara para o encaixe nupcial, visitando o país.
A paisagem e o colorido da região
compreendida entre Alenquer, Olhalvo, Cadaval e
Óbidos foi o prefácio da primeira noite feita de timidez, de indecisões e
do arrojo oferecido pelas dádivas totais e que tiveram por cenário
a calma pousada de Óbidos; toda ela e o burgo, envolvido
pelas muralhas, com ruas estreitas e floridas, relembrando os séculos primeiros
da nossa emancipação.
Na dia seguinte, direcção a
Peniche onde apreciaram o labutar dos pescadores logo de manhãzinha.
Almoço na pequena ilha da Berlenga.
Novamente Óbidos, Caldas da Rainha onde visitaram o Museu José Malhoa, o Hospital rainha D. Leonor e onde compraram,
para comerem pelo caminho, as afamadas cavacas das Caldas; fizeram compras
de loiças típicas e partiram com destino a Alcobaça.
Foram, muito aconchegados, prestar
homenagem a outros grandes amantes que tanto tinham
sofrido alguns séculos atrás. Visitaram, no cruzeiro da igreja, os túmulos
góticos de D. Pedro e D. Inês considerados como os mais ricos naquele estilo.
Passaram à cozinha para verem correr o rio Baça e lembraram que a junção das duas correntes, Alcoa e Baça, próximo da povoação, lhe deram o nome. Na sala
dos reis, apreciaram os quadros e azulejos que se referem à construção do
templo se os Portugueses ficassem vitoriosos na batalha da tomada de Santarém.
Na Batalha, e ainda com dia, percorreram
o mosteiro do mesmo nome (Igreja de Nossa Senhora da Vitória), o qual era
dos frades dominicanos e que começou a ser construído em 1388 em estilo gótico.
O marido recordou-lhe que o edifício foi construído como celebração da batalha
de Aljubarrota, na qual os Portugueses demonstraram bem o posterior ditado:
«que um homem vale tanto em sua casa que, mesmo depois de morto, são precisos
quatro para o tirar» e a tosa que pregámos no invasor foi digna de registo.
Na capela do fundador visitaram
os túmulos de D. João I, de D. Filipa de Lencastre e o de seus filhos, D.
Fernando, D. João, D. Henrique o navegador; o homem que fez brotar da terra
mais terras, e o de D. Pedro, o filósofo. Depois, os túmulos de D. Afonso
V, D. João II e de seu filho D. Afonso que morreu tão desastrosamente. Foram
às capelas imperfeitas destinadas a ser panteão real e onde se encontra o
túmulo de D. Duarte. Já quase noite, rodaram em direcção
a Fátima onde viram a basílica e a capela das aparições.
Leiria, com seu castelo fundado
por D. Afonso Henriques em 1135, esperava-os e seria o seu lar por mais uma
noite.
As ruínas de Conimbriga
e, mais adiante, a alguns quilómetros, Coimbra com sua universidade transferida
para ali por D. João III, tem como notável, a sala dos Capelos, a capela e
a biblioteca; as duas últimas em estilo D. João V. Viram a famosa torre, a
Sé velha, românica, do século XII e a igreja de Santa Cruz onde se encontram os túmulos de D. Afonso Henriques e
de D. Sancho I. Passaram ao Museu Machado de Castro e, rodando sempre, deram
ao velho mosteiro de Santa Clara quase submerso e o convento de Santa Clara
a Nova com o riquíssimo túmulo de rainha Santa Isabel. A quinta das lágrimas,
onde D. Inês chorava as ausências do seu amado D. Pedro, não podia ser esquecida,
assim como o jardim Botânico e o Penedo da Saudade.
Leonor interessou-se por saber
o que era a «Praxe Académica» e o marido, que a tinha estudado, como esmiuçava
tudo quanto estivesse ligado à juventude, explicou-lhe: «Constitui Praxe Académica,
o conjunto de usos e costumes, tradicionalmente existentes entre os estudantes
da cidade de Coimbra e os que forem decretados pelo conselho
de Veteranos.
Só o estudante de Coimbra está,
em princípio, vinculado à Praxe. Porém, os estudantes de qualquer outro estabelecimento
do país, quando acidentalmente em Coimbra e usando capa e batina, ficam de
igual modo a ela passivamente ligados.
A hierarquia da Praxe, em escala
ascendente, é a seguinte: bichos, pára-quedistas, Caloiros, semi-putos, putos,
quartanistas, quintanistas e veteranos, encimada
com o Dux-Veteranorum.
A Praxe começa três dias antes
da abertura oficial da Universidade e finda, normalmente, na hora do primeiro
toque matutino da Cabra e no primeiro dia de Queima das Fitas.
As categorias de bicho e caloiro
têm a designação genérica de animais e as de semi-puto ou superior a de doutores.
A hierarquia dos animais, em ordem
descendente, é: bicho, cão, polícia e caloiro».
Por último, nomeou-lhe as insígnias
da Praxe: moca, colher e tesoura; e disse-lhe que
a Cabra, relógio que existe na Torre da Universidade, tem aquele nome porque
em determinadas horas não toca.
Continuaram a romagem em direcção
à Figueira da Foz, onde a praia, nesta época do ano, quase deserta,
se mostrava em toda a sua magnitude.
O Luso com as termas e jardins
e o Buçaco com o palácio, as matas soberbas, plenas de frescura e de beleza,
quase paradisíaca, completada com a magnífica vista da Cruz
Alta.
Aveiro com os seus saborosos ovos
moles, o farol da Barra com trezentos e oito degraus, o túmulo de santa Joana,
a paisagem da ria, a seca do bacalhau e os característicos barcos moliceiros.
Do Porto admiraram a vista que
se desfruta sobre Vila Nova de Gaia com o rio e as
pontes; a Torre dos Clérigos, os jardins do palácio de Cristal e, nos cais de
Vila Nova, alguns barcos Rabelos que, segundo me tem soado
aos ouvidos, estão em vias de desaparecer; o porto de Leixões, a serra do
Pilar.
Barcelos, a beleza harmoniosa dos
jardins, o rio com a piscina encaixada e, por isso
mesmo, a mais saudável que podemos desejar, os seus galos, tão típicos e tão
característicos, que o mundo inteiro os reconhece.
Viana do Castelo onde do alto do
Monte de Santa Luzia se vê uma das mais belas conjugações da Natureza que,
mesmo em nossas mentes, se possa idealizar: aterra, o rio,
o céu e o mar em harmonia perfeitíssima. E os trajos típicos? E os bordados
de toda a gama? E a Câmara Municipal? E a fonte do mestre João Lopes?
Monção, maravilha em flor e em
frescura, com o seu palácio da Brejoeira.
Braga, com o Bom Jesus e o Sameiro.
Guimarães e o castelo, berço da
nacionalidade, a torre de menagem do século XII, a capela de S. Miguel do
castelo, românica e da mesma data, o paço dos duques
de Guimarães, a Penha e S. Torcato.
Felgueiras, com as mulheres
bordando à beira da estrada.
Amarante com a ponte, a casa de
Seixedo, as igrejas e depois a paisagem deslumbrante do Marão
onde a pousada os esperava para passarem dois dias.
Vila Real, o solar dos condes de
Mateus, a casa natal de Diogo Cão, a torre de Quintela
e a paisagem que se desfruta junto da cemitério de S. Dinis sobre o monte
da Meia Laranja, paisagem, que me faz quebrar o coração quando lembro, que
o poder descritivo é tão fraco, que nem uma amarelenta ideia
vos posso oferecer daquilo que, íntima e intensamente, desejo que os vossos
olhos um dia possam admirar, se ainda não tiveram oportunidade de ver.
Mil e mil vezes me choro de as
garatujas que planto no papel, e que às vezes
até a mim me custam a ler, não sejam visagens televisionáticas
que vos possam satisfazer senão cabalmente, pelo menos, dar uma minúscula
ideia do real.
Bragança, o castelo, o Domus Municipalis, e convento de
Castro de Avelãs.
Guarda, a forte, feia, fria, farta
e franca cidade egitaniense, além de lhes ter oferecido
um magot esvoaçante
de capas negras, outra segunda Coimbra em miniatura, cheia do riso e da alegria
esfuziante dos estudantes que a povoam, mostrou-lhe a Sé e o castelo Afonsino
do Jarmelo com as sepulturas antropomórficas e cabeçais medievais.
Manteigas e o seu vale mágico.
Covilhã com suas fábricas de
tecidos e a serra da Estrela ali a dois passos.
O Fundão com seus panoramas,
assim como Alpedrinha com seus solares e fontanários.
O ministro ainda pensou dar uma
saltada a Penamacor. Porém, como a estrada do Sabugal e a partir de Vale de
Lobos para lá, estava numa miséria, preferiu não oferecer essa triste visão
de desmazelo à mulher e fez por esquecer.
Castelo Branco, com o antigo Paço Episcopal, os seus jardins e o seu bulício, bastante notável
para uma cidade de província.
Vila Velha de Ródão com as
portas de Ródão.
Castelo de Vide, o castelo e as
ruas do velho bairro.
Portalegre, cidade de palácios
e conventos. Estremoz, com suas loiças e costumes típicos, o seu artesanato,
a sua torre de menagem.
Vila Viçosa, o palácio ducal, os
conventos, o castelo, o panteão dos duques de Bragança e a porta do Nó.
Évora, a cidade museu, como é apelidada
e com razão. Com a Sé do século XII, o templo de Diana, dos séculos I, II,
ou III, a Universidade de 1551, o palácio de D. Manuel nos jardins públicos,
o seminário do século XVI, o claustro do convento de Santa Clara, a igreja
e o convento dos Loios do século XV, a igreja de
S. Francisco e a sua capela dos ossos, o largo das portas de Moura, várias
fontes, portas e monumentos na cidade em que se encontram traçados os estilos
Manuelino, gótico, mourisco e renascença.
Leonor delirava com o Portugal
que não conhecia e que só agora começava a compreender em toda a sua força,
precisamente por o ir dissecando aos poucos. Mas isto que lhes estou a contar,
assim desnudado da realidade dos lugares por onde passaram, em virtude de
não me ser possível transplantá-los para o papel, com muita mágoa minha, como
há pouco lhes disse, de maneira que todos pudessem deleitar a vista por todo
este país, de adjectivação ainda não inventada para o classificar, tal é a
magia que dele ressalta, tocou Leonor no seu mais fundo. As características
das diversas regiões faziam-na pensar se estava dando a volta a muitos ou
a um só pequeníssimo território.
Beja, a torre de menagem e o
convento da concepção.
Monte-Gordo, com seu hotel de piscina e praia, onde ainda tomaram.
uns agradabilíssimos banhos sob os raios do sol Algarvio.
Tavira, com as fábricas de conservas,
as armações para a pesca do atum, naquela época do ano já desmontadas, e as
suas ruas velhas.
Olhão, qual bairro árabe de
casas cubistas e brancas, tão brancas, que mais parecem salpicos de neve na
longa planície.
Faro com a catedral e a ilha em
desenvolvimento.
S. Brás de Alportel com uma
paisagem magnífica.
Loulé e, em maior profusão
Quarteira, cheias de chaminés de gosto requintado e de um sabor típico
inesquecível.
Lagos, de praias em abundância, separadas umas das outras
por tabiques, transformados em rochas e ainda tão mal conhecidas, com suas
grutas onde os pombinhos se banharam, naquelas apelidadas de sala de estar
e sala de jantar, tal é a sua largura. Em Lagos fizeram
compras de artigos típicos e encheram-se de figos, de dons rodrigos, de uma chusma de doces
Algarvios!
Sagres, com o promontório e a fortaleza
onde Henrique, o Navegador, estudava o envio das caravelas à descoberta de
outros mundos, é bem um local para novos pensamentos, para outras ideias sem
serem as do dia a dia.
Santiago de Cacém e as suas vistas.
Setúbal, com sua fruta, seu
convento, seus estaleiros.
A Serra da Arrábida com seus panoramas
para o mar, esse mar muito azul e muito límpido. A serra com seu convento.
Por fim, eis o Tejo que Leonor
e o marido, naquele suave embalar de barco pequeno, deleitando-se, atravessavam
pensando.
Agora tinham a certeza do que,
no princípio do mundo e quando o motor primeiro fazia as partilhas, disse
para os ajudantes: parem lá com isso! Esse é um bocado à parte. É um
naco de terreno, que quero guardar, para um povo teimoso como não haverá outro,
mas que será sempre leal e hospitaleiro.
Será um país que desenvolverão
construindo estradas, aeroportos, gares marítimas. e
que, depois de muito terem tirado ao solo, desenvolverão as indústrias, altura
em que o povo entrará no apogeu, tendo todos trabalho bem remunerado e conhecendo
que a concórdia e a verdadeira amizade entre os seres racionais gera a felicidade.
Porém, uma das suas fontes de riqueza,
a qual será reputada como das principais, será a do Turismo. Para isso, eles
farão do seu país o paraíso onde todas as pessoas, de qualquer continente,
se sintam como as mentes idealizam o bem-estar.
Leonor, que ao princípio teria
preferido o estrangeiro, ficou contentíssima com a escolha do marido. Para
mais, e à semelhança de muitos patrícios seus, conhecia melhor a Espanha e
a França do que o seu país. Ficara radiante, não restavam dúvidas. Sempre
pensara encontrar o seu povo muito diferente, quase meio selvagem, para as
regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos, mas enganou-se; tudo sorrisos,
tudo amabilidades e sensibilidades, na maneira chã de contactarem com as pessoas.
Quando paravam numa terriola qualquer, vinha a garotada a olhá-los, primeiro,
meio assarapantados, depois mais afoitos apontando para o carro luzidio.
— Olha, aquele és tu!
— Eh, pá, não apontes
que é feio.
— Ora! Se tivesses um carro como
este, o que fazias?
— Mas não o tenho!
—Mas, se tivesses.
— P’ra
qu’é que eu o queria. Não sei guiar!
— Mas, se soubesses?
— Ora, deixa-me, já disse que não
sei, e pronto!
— Eh, pázinhos,
chegai-vos p’rá qui todos, ii, que carantonha que tu tens e que pança!
— Está quieto e calado que
parece mal.
Leonor, embevecida com tanta simplicidade,
olhava-os amorosamente.
— Quantos anos
tens?
— Eu?
— Sim, tu.
— Tenho sete, e este tem seis,
e aquele sete, e aqueles não me lembra.
— Então, não tiveram escola
— Tivemos sim senhora, mas já
acabou. Este, ainda lá não anda. Ainda é um caganito.
— Ai
sou! Já sei contar até cinquenta.
— Olha que grande avaria!
— Está-te cá a meter comigo!
Olha, Hum!
— Deixa-o, ele é mais pequenito
que tu.
— Pois é minha senhora, é uma pitorrazinha.
—Hum!
— Só com um assopro até voava.
— Ai voava?
Então, atreve-te.
— Deixa-o e diz cá, o que fazem
teus pais?
— Trabalham.
As conversas ficavam pouco mais
ou menos por ali porque, entretanto, o ministro chegava da sua visita extra-oficial
à escola do pequeno burgo ou do lugar propício, onde, fora das vistas mundanas,
pudesse verter águas.
— Que tal se portaram os nossos
homens?
— Compraste rebuçados?
— Comprei, mas só havia dos de
meio tostão. São um bocado enfezados mas paciência!
— Que pena! Mas não encontraste
outros? Até me envergonho de os dar.
— Envergonhas? Pensa que eles não
são fidalgos e que ficam tanto ou mais contentes com esses do que com outros
quaisquer, pois sempre comem mais e a quantidade para estes inocentes
é que tem valor. Foram habituados nessa medida e enquanto isto não mudar têm
que continuar assim. E, acerca de rebuçados ou de qualquer outra coisa, põe
isto na tua maravilhosa mente: qualquer analogia que queiras fazer entre uma
pequena terra como esta e Lisboa é simples sonho.
— Querem rebuçados?
Nem resposta, moita-carrasco.
Porém, lá estava o olhar guloso, cheio de afirmações, mas também de orgulho,
em cada face dos filhos deserdados da fortuna. O pensamento dizendo que sim,
com toda a força, sem contudo conseguir fazer vibrar o corporal.
O silêncio era bem sintomático. «Quem cala, aceita».
— Quantos são ao todo?
— Somos, um, dois, três,
— Tira daí, que tu não sabes
contar.
— Mania!
— Vê lá se queres? Dois, quatro,
seis, oito. Somos oito.
— Qual é o mais velho e o mais
ajuizado?
— O mais velho é aquele, mas o
mais ajuizado sou eu. Isto diz o senhor professor, que eu bem finjo que não
ouço, mas entendo-o bem. Não é verdade?
Os outros pimpões, olharam-no
com ar afirmativo e um deles lá desembuchou, talvez mais para apressar a distribuição do que por ter vontade de confirmar
o que o companheiro tinha acabado de dizer.
— Bem, então, toma lá e faz a
distribuição igualmente por todos; devem calhar uns dez a cada um. Se sobrarem
dois ou três, dá-os aos mais novos. De acordo?
— De acordo. Bem
haja, minha senhora.
— Bem haja.
- disseram em coro.
— Vamos, meu amor? Adeus, estudai
bastante e sede sempre bem educados.
— Adeus, adeus, adeus, ade...
Adeus, diziam as suas mãozinhas,
de dedos gorduchos, sorrindo despedidas, adeus, diziam bocas e corações sem
mancha.
O ministro partia sempre com o
espírito inundado de uma tristeza contente.
Via os pequenos seres, meio inconscientes
perante o que é a vida, e qual a sua finalidade, rirem, sorrirem apardalados com as inovações do progresso e com os senhores
que lhe ofereciam rebuçados sem estenderem a mão.
O mundo continuava a ser muito
estranho:
Se acossados pela fome pediam algum
óbulo, levavam respostonas que os deixavam mudos e meio revoltados.
— Vai-te embora, rapaz! Não
sabes que não se pode pedir?
— Mas eu tenho fome.
— Tu o que queres é comprar bonecos
da bola. Põe-te ao fresco. Não ouviste? Desanda.
Que remédio senão desandar. Quando
não pediam, inesperadamente, vinham senhores e senhoras da cidade e era encherem
a barriga de rebuçados e de sentirem o olhar doce, quase protector que há
tanto tempo estavam desacostumados.
Por que será que as pessoas da
cidade são mais humanas do que as dos meios pequenos? E, ali à soalheira,
se deixavam ficar parados, matutando naquilo que não compreendiam, enquanto
um dos companheiros não os desassossegava para nova brincadeira.
Passados momentos, já nem se lembravam
que por ali tinha passado alguém que os acarinhara e lhes falara de igual
para igual. Só mais tarde, quando da rememoração dos tempos passados, eles
voltam a pensar nos carros luzidios e nas anónimas personagens que neles viajam
e, então sim, nessa altura ficam verdadeiramente gratos e se esforçam por
os localizar e lhes agradecer o bem que proporcionaram.
VII
Sete meses depois do casamento,
José e Leonor continuavam vivendo naquela harmonia só realizada pelo amor
e compreensão. Pouco tempo mais, porém, viveria o ministro em paz; naquele
sossego que todas as pessoas anseiam por encontrar, sintetizado em alguém
que seja o corpo ideal para a transmigração perfeita, alguém que entenda as
nossas lutas e canseiras, alguém que nos compreenda completamente e seja a
perfeita continuação de nós mesmos, alguém que saiba rir quando rimos e saiba
guardar silêncio quando meditamos.
Arrasado pelo trabalho,
regressava a casa mal terminava a última nota ou assinava um derradeiro
despacho.
A mulher, numa recordação viva
do tempo que levemente passara em solteira e que seria normal esquecer depois
de casada, incompreensivelmente, deixava a casa e ia para o lar de uma ou
outra amiga.
O ministro, primeiro triste, depois
aborrecido, notava com mágoa profunda o desbaratamento da vida da mulher.
Após o matrimónio, ela
dissera-lhe:
— José Augusto,
tenho-te a pedir um favor.
— Diz, meu bem, meu amor, minha
vida; - pedia o ministro beijando os cabelos em suspenso e muito finos da
mulher. -Diz, meu amor, sabes que coisa alguma te posso
negar.
— Prometes?
— Sabes que sim, meu bem
terrestre.
— Juras?
— Concordo.
-
Este dois anos a seguir ao nosso casamento vamos
fazer os possíveis por não termos filhos.
E, ternamente, puxava-lhe a
cabeça meio inclinada, beijava-lhe a face, mordiscava-lhe a orelha esquerda,
beijava-lhe as fontes e os lábios, sussurrava-lhe doçuras, tentava provocar as
reacções que toldam o pensamento e nos fazem comparar aos animais.
José Augusto com um rebate de arrependimento
pela promessa apanhada no meio do «ronrom» amoroso, escondendo os olhos nos
cabelos da esposa, para ela não ler as nuvens, que subitamente caíram neles,
frestas indiscretas da alma e do pensamento, prometeu, sufocando a rouquidão
da voz, a porta quadrilheira do pensamento verbal
e das irreverências humanas.
Leonor, ou porque não quisesse
perceber o fluído telepático, que certamente lhe dizia quanto aquela restrição
de alcançar o que o amor tem de mais sublime, de mais nobre, o motivo principal
por que dois racionais se unem e que por tudo isso, nunca por que quer que
seja, se deve condicionar; ou porque talvez não compreendera, agradeceu-lhe
efusiva quase histericamente.
— Oh, Zé, Zé! Zé maravilhoso, havemos
de ser muito, imensamente felizes, seremos a mulher e o marido ideais, estou
certa disso, querido. — E ronrom para aqui, ronrom para ali, beijo deste lado,
beijo daquele, beijo do outro, punha-o em vibração, todo treme treme.
Porém, o ministro, mesmo com altos
e baixos fisiológicos, já não tinha a mesma certeza do primeiro dia, das primeiras
horas de casados, dos dias em que a conhecera ou que não conhecera, mas em
que a desejara, em que tinha idealizado não a mulher com a fortuna com que
a recebera. Não. Necessitava sim da esposa amorosa, compreensiva, da esposa
que lhe traria filhos ou não, segundo o entendimento dos órgãos genitais e
nunca, segundo a determinação preconcebida de conceber ou não conceber.
Molemente, os braços descendo sobre
os braços, um ósculo na testa, como quem diz: fui
muito bem levado, um sorriso forçado no qual pôs toda a sua boa vontade, um
beijo nos olhos, um murmurar labial e um beijo profundo fecharam o pedido
da não criação e selaram o primeiro contrato ilegal entre marido e mulher.
José Augusto, que durante esses
primeiros meses, apesar da restrição forçada, vivera quase feliz ou mesmo
completamente feliz, principiou a ficar sombrio, macambúzio quando, ao regressar
a casa, não encontrava a mulher. Nos primeiros tempos em que isto assim decorria,
tentou por todos os meios, procurando todos os pontos nevrálgicos, dar a conhecer
à esposa que não estava nada contente por ela aparecer depois dele, por fumar
desalmadamente, pelas constantes reuniões a que ia, por parecer esquecer que
tinha um marido que a adorava e com uma posição na sociedade a respeitar,
qual chefe corporal e mentor da juventude portuguesa. Mas mesmo que não tivesse
essa posição seria o mesmo; Leonor devia compreender que estava procedendo
erradamente. É certo que mulher não é sinónimo de escrava, mas também o não
é de cabeça de vento.
Nada, nada parecia entender.
Quando chegava, depois de ir mudar
de vestido, dirigia-se ao pequeno escritório-biblioteca,
sala de estar do ministro.
— Muito trabalho?
— Sim, algum.
— Está um frio insuportável.
O ministro, olhava-a introspectivamente,
meio amoroso, meio reprovador, para, numa esperança retroactiva, lhe fazer
ver que o seu lugar era em sua casa e não o entrar e sair de automóvel, para
entrar e sair na das amigas.
— Deve estar, deve.
— Deve? Está.
- Talvez tenhas razão.
— O quê, não sentiste?
— Nem sequer me apercebi do tempo,
para te ser franco. Saí do Ministério e vim direitinho
para aqui para sentir a presença agradável de minha mulher. E foi talvez essa
ideia que me deu calor e fez que eu não desse pelo tempo.
Leonor, tirando um cigarro, perna
cruzada, coxas descobertas, cabelos soltos, sentou-se em frente do marido.
De repente, levanta-se, ajoelha-se na alcatifa diante dele, põe-lhe os cotovelos
nas pernas, tira-lhe o livro das mãos, agarra-lhe a cabeça e beija-o sensualmente.
O doutor parece não reagir, mas ela não desiste, sabe bem como levar a água
ao seu moinho. Tenta novo ataque alvejando novos centros sensitivos e ainda
que sinta as reacções do marido, ainda desta vez
não consegue levar a melhor.
Sem nada dizer, sentada nas
pernas, com a cabeça de José Augusto sempre presa, o que o obrigava a uma
posição incómoda, olha-o fixamente, torna a soerguer-se, mesma reacção e
posição inicial.
— Está zangadinho
o meu amor, está? Não seja assim, não? Um beijo grande, muito grande, sim?
O marido continuava olhando-a com
ar distante, com o olhar vago que faz compreender às
pessoas que estão perto, que elas são a razão do tumulto interior no reflexo
desses olhos.
— Responde.
José Augusto desprendeu levemente
o braço esquerdo da mulher e com a mão esquerda agarrou a pequena face amorenada,
entre os seus dedos. Em movimentos ascendentes, descendentes e laterais acariciava-a
ternamente; ia até aos cabelos, brincava com o dedo indicador por sobre a
orelha pequenina e bem feita e continuava olhando-a fixamente.
— Amo-te muito, mesmo muito.
— Também eu, José.
— Verdade?
— Sabes bem que sim.
— Então...
— Diz.
— Então, faz por me compreender.
— Mas eu compreendo-te, meu
amor. — E agarrando-lhe a cara entre as mãos, beijava-o com sofreguidão.
— Eu sei que gostas de mim;
contudo, não é só isso que satisfaz um ser humano. Peço-te que me compreendas.
— E eu compreendo-te.
— Onde estiveste hoje? Perdoa a
pergunta.
— Fui a casa de Margarida.
— Fazer?
— Jogámos um pouco a canasta mais
as amigas do costume, tomámos chá, conversámos
e aqui estou. Achas por acaso que fiz algum mal?
— Não, meu amor. És capaz de desviar
o fumo do cigarro? Obrigado. Não, não fizeste mal algum. Mas, por acaso, reputas
de alguma utilidade esses teus chás canasta, essa tua conversa com as tuas
amigas que, desculpa, as penso bastante fúteis, sem outro qualquer interesse
a não ser o de terem dois palminhos de cara engraçados, mas que teimam em
estragar carregando-os de cosméticos.
— Oh, José!
— Tem paciência, os teus cigarros,
sim, pensas tudo isso de alguma utilidade?
— Porque és assim? Como querias
que passasse o tempo? Tu estás sempre encafuado no Ministério. Quando vens
para casa ainda trazes papelada para ver, nunca tenho companhia, sinto-me
tão só!
E a sua cabecita, de lágrimas bailando-lhe
nos olhos, apoiava-se nas pernas de José Augusto e seus roliços braços tentavam
envolvê-lo, ainda que fossem demasiadamente pequenos.
— Não sejas assim, não? Amo-te
tanto, tenho tanta admiração por ti, tanto orgulho, tanta amizade!
— Acredito, mas responde
francamente. Reputas de alguma utilidade essas tardes?
— Passo
o tempo. Julgo divertir-me.
— Mas têm utilidade? Enfim,
qualquer coisa por onde se lhe peguem?
— Relativa, passo
o tempo, divirto-me um pouco, não me aborreço durante aqueles curtos momentos.
Não tenho nada para fazer!
— Pois bem, amanhã vou visitar
uma escola para atrasados mentais. Queres ir?
— Mas já combinei onde estar
amanhã.
— Telefona. — E as suas mãos tentaram
realizar o resto, levantando-lhe a cabeça com os dois polegares, olhando-a,
beijando-a, quase debicando, tentando, em estudo psíquico, dobrar aquele interior
feminino, ainda um pouco volúvel, ainda esquecida de que com o casamento terminavam
todas as concessões de solteira a menos que o marido esteja de acordo.
— Amanhã não, outro dia.
— Está bem, outro dia. Já tens
mais dias marcados?
— Sim, tenho, deixa-me ver: hoje
é terça, a quantos estamos hoje?
— Oito.
- Dia oito. Nove Cassilda, dez Manuela, onze Teresa Maria, doze; olha, tenho a semana toda ocupada.
— Bem, muito bem, muito
proveitoso. Esta semana é tua, continua a ser tua.
— Não sejas sádico, não? Sabes quanto
te quero. Porque me tentas fazer mal? Nunca me tinhas pedido para que eu não
fizesse isto.
— Tens razão e não te quero
fazer mal algum, antes pelo contrário. Porém, a outra e as outras semanas
passam a ser minhas, melhor, passam também a ser minhas.
Estamos casados há quase dois
anos, não é verdade?
— É.
— Pois bem, está bem. As outras
semanas passarão também a ser minhas, concordas?
— Sabes bem que sim. — Sorriso
amarelo e um beijo amolengado
e sensaborão.
— Vamos jantar?
— Não tenho muito apetite.
Agarrando-a pelos braços, ergueu-a
à altura dos joelhos, uma inclinação para a esquerda e hope! Sentada neles, lábios muito unidos, um ronrom maior,
muito maior e o segundo contrato estava celebrado e com muitas possibilidades
de continuar.
— Noc,
noc. Noc, noc. O jantar está na mesa.
— Ah!
— Está na mesa.
— Está bem. Ana, está bem.
— A sopa arrefece.
Aquilo é que era empata!
Os hábitos do marido em culinária,
pelo menos tinham singrado. E assim, continuava a sopa em vez dos pequenos
aperitivos; de melão com presunto, das cenouras rapadas, da salada mista,
eu sei lá, de umas poucas de mexordices juntas e
sem algo de interesse para o estômago.
Sopa, a sopinha era bem a entrada
Portuguesa e que ainda, e embora não sem custo, se mantinha de pé em casa
do ministro.
VIII
Com um ataque cardíaco, no preciso
momento em que, sem papel na mão e com o à-vontade que sempre lhe caracterizara
a vida, mesmo nos momentos de grandes preocupações, se preparava para falar,
morreu o ministro José Augusto Barbas.
As suas aspirações, o seu grande
amor ao país, a loucura apaixonada pelos problemas da educação, o desejo de
fazer sempre melhor e melhor, tudo, tudo isso acabara em dois segundos: o
curto espaço entre o levantar e o cair para o lado, perante o olhar esgazeado
do director da escola que ele ia pessoalmente inaugurar em virtude do subsecretário
estar doente.
Quando as senhoras se deram verdadeiramente
conta do sucedido, gritinhos a medo saíram de seus frágeis e delicados peitos
e ouviu-se em seguida o ruído semelhante que uma
misturadora costuma fazer em funcionamento; o choro brotou espontâneo.
Corridas de um para o outro lado,
empurrões para a esquerda e para a direita, vozes gritando: afastem-se, afastem-se
por favor, não vêm que é necessário muito ar.
Esperanças vãs; com ar ou sem ele,
o ministro partira sem se despedir. Sempre lhe fugira o pé, sempre, até mesmo
no último momento, desaparecera sem dizer água vai.
Seria o calcanhar a fugir-lhe ou
seria o prelúdio da renovação e do desagregamento dos
conceitos ridículos da sociedade e que só servem para se perderem horas de
vida nesta curta vida?
A estudar bem o tempo que passara
na terra, ninguém notara nele incorrecções, quando se tratava de algo de útil
para o seu país, para os semelhantes que dele necessitavam, fossem eles de
cor ou não, e seguissem o seu credo ou outro qualquer. As praxes convencionais,
que parecia quebrar inadvertidamente, a pensar-se bem nelas ver-se-ia que
não transportavam proveito para ninguém. O
beijar a mão a esta ou àquela senhora, além de ser anti-higiénico, não
lhe dizia nada de especial a não ser, símbolo de pedantismo afectado; o dobrar
a espinha até ao chão para cumprimentar o doutor tal e tal, o usar fraque
em vez de casaco, nas cerimónias oficiais e assim por diante, falando de outras
ninharias semelhantes, como ele lhes chamava; as quais, fazem mentalizar quem
recebe estes salamaleques, quase sempre hipócritas, de seres superiores a
quem todas as homenagens são devidas; o pobre, que não lhas faz, porque não
se lembra ou por que a distracção não ligou imediatamente coluna vertebral,
é que paga as favas e pode bem contar que na primeira ocasião em que o senhor
Fulano lhe possa ser bom, não hesitará duas vezes.
Leonor não soube da morte do
marido senão vinte dias depois.
Encontrava-se numa casa de saúde,
incomparável com alguns hospitais de quartos interiores, sem ventilação, com
camas pelos corredores, cheios de doentes tapados por pseudo-colchas meio imundas e de lençóis encardidos, em suma,
de uma série de nenhumas condições de sanidade; essa casa fazia lembrar aqueles
palácios dourados que a nossa imaginação de criança nos apresenta e onde a
alvura, dada pela limpeza, pela desinfecção e pelo Sol que parece querer chamar
à vida as pessoas, foi o local escolhido para ali mesmo receber o fruto da
ligação entre Leonor e José.
Leonor estava em período de
gestação e bastante mal.
Razão tinha para desejar um filho
só passados dois anos. A vontade tinha-lhe sido feita, por acaso ou sem acaso,
mas o desejo e a promessa tinham sido respeitados. A verdade e, passado o
prazo, e outra vez por acaso ou sem acaso, sentiu o pequeno feto dentro de
si mal findara o tempo do contrato que celebrará com o marido e, agora, ali
estava esperando entre as dores terríveis que a atormentavam, misturadas com
o prazer imenso que iria causar ao marido ao lhe oferecer um pouco do «eu»
duplo, concretizado no bebé que iria abarcar o mundo com as mãozinhas.
Os últimos dez dias foram os piores,
temia-se uma cesariana a todo o momento. Ao esgotar-se o décimo primeiro,
uma encantadora miúda, muito rechonchudinha, de
olhos vivos, muito abertos, apareceu com o sorriso,
com que a inocência encara a vida e esperneando com toda a pequenina força
que lhe permitiam os seus frágeis membros motores, qual sede
de liberdade depois de duzentos e setenta e poucos dias encolhidos.
Ao saber do sucedido, ao conhecer
que ao marido não fora ao menos dado o prazer de olhar parte do seu ser, a
parte que ele tanto desejara e que já amava tanto, caiu bastante doente e
chegou-se a temer novamente pela sua vida. Porém, com o pai à cabeceira, lembrando-lhe
a todos os instantes que não se podia deixar abater, pois não tinha ficado
só, que tinha que viver para que a filha não singrasse desamparada pela vida
fora. Tanto disse, tanto arengou que o amor materno foi espevitado e em poucos
dias estava salva.
Por entre os carinhos que dispensava
à filha ia-se lembrando do esposo, da sua luta contra a inveja, contra o poderio
dos mentecaptos, dos acéfalos que em lugares alcançados com méritos duvidosos
ou com pedidos ditavam as suas asneiras e forçavam os seus subordinados a
colaborarem nelas sem sequer as poderem analisar.
Estivera
casada quase três anos.
Contudo, só durante um ano e poucos meses, compreendera José em toda a sua
acepção. Quando, influenciada por ele, comparara a olho nu a miséria e a sumptuosidade,
a falta de meios de subsistência com que tantos seus semelhantes ainda lutam
e o desperdício dos que não tendo consciência do verdadeiro sentido da solidariedade
humana lançam dinheiro ao desbarato sem um mínimo de proveito. Que tristeza
ver: uns, porque nada têm e que por isso vivem quase como irracionais os outros,
porque vivendo no meio de luxos supérfluos dão uma paupérrima ideia de suas
mentalidades.
Iria ter com pessoas influentes,
com amigos de seu pai e com amigos de seu marido e pedir-lhes-ia apoio para
montar uma obra para a reabilitação de pessoas com quaisquer deformações físicas.
Faria o possível por substituir homens válidos que, andando a vender lotaria, ou pentes, ou capas de plástico, ou cabides ou quaisquer
outras bugigangas pelas ruas, poderiam ser empregados em fábricas ou noutro
lado qualquer e não andarem num trabalho vexante para pessoas robustas que,
com ele só, são diminuídas. Esse entretenimento de utilidade que imaginava
arranjar como ajuda de ganha pão para outros seres
mais debilitados e que não quisessem aderir à possível reabilitação e educação
que lhes oferecia em casas próprias.
O baptizado de Beatriz Azeredo
Barbas foi marcado para princípios de Julho, a despeito de a mãe só querer
registar a filha.
— Meu marido nunca simpatizou com
padres e, se por acaso, se matrimoniou pela igreja,
foi porque gostava muito de mim e porque respeitava a minha crença. Ele só
acreditava no mundo e nos ditames da consciência. Porém, pediu-me logo que
nunca mais o metesse em assuntos de igual teor.
Não sei se com isto me queria prevenir
de que, tendo filhos, eles só seriam registados e que o baptizado seria, sim
feito, mas por suas livres vontades quando atingissem a idade em que as mentes
já sabem escolher o que querem ou que não querem.
— Não, minha filha, teu marido
tinha muitíssimo bom-senso. Tinha as suas ideias,
mas nunca te forçou, segundo penso, a que faltasses às
tuas devoções; ias, se te apetecia, se não, ficavas em casa, é ou não verdade?
—Sim, é verdade.
— Então vês, não queiras ser mais
papista que o Papa. Sabes bem que não ficaria contente de ter uma neta sem
baptismo. E tu sabes que precisas de ajuda para as obras que queres fomentar.
Vá lá, tenta compreender. — E com duas palmadinhas na face, sempre a convenceu.
O dia dez de Julho estava soberbo,
o Sol iluminava em profusão sem que o calor sufocasse. Lisboa brilhava, não
debaixo de focos artificiais, mas debaixo do bom Sol Lusitano, vivificador
de almas e corações, de corpos jovens ou de velhinhos
meio caquécticos que tentam distrair o resto dos seus dias contando, a quem
apanham a jeito, as recordações do seu passado já muito bem passado.
Tudo, tudo parecia respirar a alegria
benfazeja de urna quadra festiva. E era, os sinos tocavam de alegria saudando
o pequenino ser que apareceu no mundo sem o braço do pai para o amparar.
E os sinos tocavam, tocavam,
respirando festa, felicidade, alegria, amor, fraternidade, fraternidade!
A cerimónia tinha terminado; beijos,
muitos beijos na testazinha do bebé risonho que,
de tempos a tempos, fazia uma careta e tentava expelir um grão de sal que
lhe tinha ficado na boquinha. Brr, Brr, fazia, sem a aparência de uma zanga, parecendo compreender,
botãozinho lançado ao vento do mundo, que a revolta gera a revolta e que na
revolta ninguém se entende; e, no final, todos são prejudicados.
O brilho que o acontecimento deveria
ter foi em parte ofuscado pela morte do pai que não conhecera e que tanto
a desejara. Esse pai que, a ser vivo, louco de felicidade, rompendo mais urna
vez com o protocolo, a agarraria ternamente em seus braços robustos transformados
em berço de veludo, lhe pegaria perante o olhar reprovador das pessoas «bem»,
mas que por vezes se esquecem dos pergaminhos a honrar e nessas alturas dão
cabeçadas muitíssimo «mal».
A vida! A parvoíce! A educação
em excesso que vira em mau viver, pois já ninguém está disposto a perder tempo
com fantochadas. Outras, a falta dela. E outras a falta de conhecimento do
mundo.
As pessoas habituam-se a ver só
a elas, quais apaixonadas eufemísticas, só elas são
Sol, só elas podem brilhar e o resto da humanidade nem pequenos gorgulhos tem
direito de ser.
O mundo! O olhar vesgo dos
racionais.
O avô de Beatriz resolvera fazer
uma distribuição equitativa de dinheiro pelos seus operários. Tinha quinhentos
e noventa e oito. Estava resolvido, daria mil escudos a cada um. Quinhentos
e noventa e oito contos não era muito. Possuía uma
fortuna em terras, fábricas e casas avaliada em quarenta e três mil... Quinhentos
e noventa e oito contos não fariam soçobrar a balança.
Exposto o que tencionava fazer à
filha, esta opôs-se peremptoriamente.
— Quer dar esse dinheiro todo,
repartindo-o pelos operários aos bocados?
— Quero.
— Não faça isso, pai. O gesto é
muito lindo, digamos mesmo, pomposo; eles, ficam
muito contentes, todos vão querer felicitar e desejar uma longa vida a Beatriz.
Aqueles que aqui vierem vão lamentar a morte de José e, assim, avivar recordações
bastante penosas. Eu sei lá, uma série de movimento, de preocupações, para
quê? Por quem, afinal? Beatriz não os entende e eu dispenso toda essa gente.
Sou muito amiga deles para lhes querer causar qualquer maçada.
O pai tem ainda alguns operários
sem casa, não tem?
— Não, não tenho. Onde queres
chegar?
— Bom.
— Espera aí. Não, parece-me que
não, aquele maroto do teu cunhado que nunca mais apareceu falou-me de tal
maneira, disse-me tais laironas... Parece-me que
o estou a ouvir: Senhor Azeredo, se tiver os operários a trabalhar junto das
fábricas, certamente que lhe darão muito maior rendimento porque estão perto
do emprego e não se arreliam logo de manhã por virem, como sardinha em canastra,
no meio de transporte que utilizam; tendo uma casa limpa e com condições,
para seres humanos e não para animais, fá-los andar sempre bem dispostos,
sempre cheios de actividade, porque eles são, na verdade e ainda que muita
gente queira desconhecer, seres como o senhor ou como eu. E se tem dúvidas,
oiça: «Nasceram nuzinhos como qualquer um de nós,
dormem, comem e fazem as suas necessidades tal e qual como qualquer ser dotado
de razão. Perdoe-me que isto lhe diga»; e para a esquerda e para a direita,
convenceu-me enquanto o diabo esfrega um olho.
Bom homem, grande homem! Mal empregado!
— Então, todos têm casa?
— Todos.
— E os trabalhadores rurais?
— Esses, bem, esses, é que, mau!
mau! Esses, talvez tenhas
razão e segundo penso estão um bocado mal, mas, aquilo também não dá rendimento
nenhum.
— O pai desculpe que lhe diga,
mas também não tem desenvolvido convenientemente a agricultura.
— Para quê?
— Para quê, então para que havia
de ser?
— Para me pagarem a batata a pataco,
o azeite a tostão e o pão a dois réis de mel mal
coado o alqueire? Ná, minha filha, lá nessa é que
eu não caio. E a perder mercados estrangeiros como estamos, não, não é o Azeredo
que se vai meter em apuros enquanto isto assim continuar. Recebi as quintas
de teus avós e tenho-as conservado mais por
respeito, para com aqueles queridos antepassados, do que por aquilo que elas
realmente dão. Mas, qualquer dia ponho-as com dono. Mais conto menos conto...
— Está assim tão desanimado?
— Estou. Quase que não dão para
pagar ao pessoal, ainda que este esteja muitíssimo mal pago.
— Se bem que não concorde com qualquer
espécie de venda, elas são do pai e o pai sabe o que deve fazer e não tem
necessidade de conselheiros inexperientes no campo da agricultura.
— Dizes bem, inexperientes. Este
é o nosso grande mal. Gritamos aos sete ventos que somos um país essencialmente
agrícola e nem desenvolvemos convenientemente a agricultura, nem mandamos
especializar técnicos para que o rendimento a tirar do solo seja o máximo
com um mínimo de desgaste. Depois, para agravar a situação, vem a perca de
mercados por querermos ganhar, em pouco tempo, quase o impossível e, então,
sucede que, em vez de lucrarmos, ainda perdemos. Isto é pior do que tu pensas!
— Não tenho, como lhe disse,
conhecimento suficiente para rebater o pai. Contudo, antes de consumar o que
está idealizando, vai-me fazer um favor.
— Se puder.
— Pode sim. Nesta vida podemos tudo, desde que assim o desejemos ardentemente.
O pai manda saber quais os trabalhadores
que não foram da outra vez beneficiados com casa,
ou aqueles que, entrando depois das primeiras habitações construídas, estão
nessa situação. E agarra nesses quinhentos e tal contos e manda construir
habitações decentes, em substituição das palhotas em que se albergam.
— Mas vamos sacrificar muitas
pessoas para beneficiar um pequeno número.
— O pai diga-me, faz favor: Que
vão fazer essas pessoas que quer contemplar, com mil escudos? Uns, o menor
número é capaz de os arrecadar e vai-lhes fazer um sofrível arranjo. Os outros,
como o dinheiro vem sem esperarem, vão gastá-lo sem pensar duas vezes. Domingo
sim, domingo não acompanham o clube de futebol da sua simpatia, apanham uma
bebedeira, vão durante curtos dias ao café ou ao cinema sem ser o da fábrica
porque, como não é a pagar, não presta. E em três tempos estão sem um chavo!
E no fim de contas, quantos são os que beneficiam com essa desperdiçada generosidade?
Uma minoria. Mas, mesmo esses poucos, beneficiam bem ou mal? Mal. Porque mil
escudos, para os tempos que correm, não são quase nada; e por esse motivo
não ficam mais ricos com a oferta; fez-lhes jeito, como certamente dirão,
mas não chegou a aquecer nem a arrefecer.
Ora, se mandar construir as casas,
beneficiarão na mesma, essa minoria, mas com muito mais vantagens.
— Pronto, venceste, venceste,
escusas de gastar mais o teu latim.
— Não, pai, não venci, não foi
essa a minha intenção, quis simplesmente mostrar-lhe a maneira como penso.
Se quiser aceitar a ideia, aceita, se não quiser põe-a de parte: O dinheiro
é seu e não quero, de modo algum, que fique contrariado por não fazer o que
deseja.
E não ficou. O industrial Azeredo
que era caturra como um americano e quando se lhe metia uma ideia na cabeça
tinha que ser como pensava, não esteve com meias medidas, utilizou na mesma
a válvula de escape, distribuiu o dinheiro como primeiro tinha pensado e construiu,
do mesmo modo, as casas alvitradas pela filha. Assim, tanto um como outro
ficou com a sua e ninguém ficou prejudicado.
— Ficaste satisfeita com a
solução?
— O pai é terrível, tem que fazer
sempre o que pensa, felizmente que nunca prejudica ninguém.
— Olha, minha filha, se eu visse
que era mal não o realizaria. Sabes bem que não sou pessoa que ao ver que
não estou a seguir o caminho direito não dê o braço a torcer, e me mantenha
a defender esse ponto de vista, obstinadamente, porque não tenha lhaneza suficiente
para dizer: Pronto, sim senhor, tem ou tens razão, vamos fazer como pensam
porque ninguém é infalível por mais anos que viva neste mundo. Quando estou
errado, dou a mão à palmatória e sinto-me bem contente
porque é sinal que ainda tenho muito para aprender.
Este ano tencionava comprar outro
carro, não o compro e, pronto, satisfiz os dois apetites.
Sabes, isto foi um bem. Um dos,
males do mundo está no desejo louco que as pessoas têm de luxar, de mostrarem
aos outros; que têm mundos e fundos, em suma, de aparentarem grandeza quando
às vezes nem podem com uma gata pelo rabo. Olha, casacos
de peles estão bem para as regiões do norte da Europa onde o frio é intenso,
mas aqui em Portugal, bah! Assim como os automóveis.
Não chega bem um para quem necessita mesmo dele? Para quê, para quê ter uma
garagem cheia e tanta miséria ainda a debelar ou a orientar! Mas as pessoas
e eu incluo-me nelas, com bastante arrependimento, porque com a minha idade
já devia ter juízo, esquecem-se que podem empregar melhor o dinheiro que lhes
sobra do que a comprar objectos inúteis; e estragam-no para aí ao desbarato,
olvidando, quantos e quantos com aquele capital, tão mal empregue, podiam
fazer, se não felizes, mas pelo menos minorar-lhes o sofrimento, diminuindo-lhes
as faltas que sofrem de pão, agasalhos ou lar.
O industrial, depois de ter
ficado só, estirado num cadeirão bem estofado, olhar
no vácuo, pensamento em voo, qual radar procurando algo nos céus, viu a filha:
"Vinte e cinco anos. Até aos
vinte e um, altura em que casara, nada parava com ela, apesar do ar cândido
que sempre a acompanhava. Bailes, cinemas, festas de toda a espécie pareciam
ser o centro dominante do pequeno ser mimado, cheio de dinheiro e fazendo
tudo o que lhe dava na gana.
A mãe, bondosa senhora, nunca se
opusera a que fizesse fosse o que fosse e ele, muito menos.
Casara. O marido, por artes mágicas,
quebrara-lhe aos poucos os pequenos defeitos e agora, ali estava já uma mulher,
pensando em todos os pormenores pequenos ou grandes que possam minimizar a
infelicidade dos seus semelhantes.
Querida filha! Tão nova e já tão
experimentada pela vida! E eu, tão entrado em anos e de tempos a tempos
falhando com os meus esbanjamentos que, bem encaminhados, tanta utilidade
poderiam ter.
Se tivesse possibilidade de
recordar ponto por ponto todas as etapas
da vida desde que me conheço, quantos erros e quantas faltas não iria
certamente encontrar? E tudo isto porquê?
Porque não soube comparar como
devia, a maneira fácil como entrei na vida e como os entes que me rodeiam foram
nela introduzidos.
Fui um cego. Fui um cego não por
não querer ver, mas sim por não saber ver; saber é o termo correcto. Está
no conhecimento dos nossos semelhantes o nosso próprio conhecimento, e sem
os estudarmos, sem se dissecarem, temos a sensação, quando chegamos à minha
idade, que algo falhou, que algo nos faltou para nos realizarmos cabalmente.
E a morte o que será, se a vida
assim foi?!
IX
Três meses após a morte do
ministro, D. Leonor não conseguiu resistir mais tempo ao olhar mudo das
paredes, dos quadros, dos livros, de tudo quanto o marido fora parte e que por
isso mesmo o lembravam a todo o momento e foi viver com o pai.
A pequenina Beatriz tornou-se o
fulcro dominante das atenções do avô e era um regalo ver como lhe queria e
a ternura que punha quando lhe pegava. Nela, o senhor via que mais se consolidara
a sua existência, a sua vida e a felicidade de que era possuído fazia-o desejar
a felicidade de todos os que o rodeavam.
Cultivava a amizade com prazer,
tendo sempre em mente que quantos mais amigos fizesse e mais lhes desse a
conhecer a sinceridade que punha em todas as suas acções, a boa vontade com
que pretendia realizar ainda algo de útil, mesmo no fim da vida, mais espalharia
a compreensão humana por intermédio deles.
Enquanto noutros tempos se encerrava
no escritório ditando ordens telefonicamente, hoje misturava-se com os empregados,
ia ao âmago das suas lutas e daquilo que faziam; e, se ao princípio se sentiam
acanhados, meio encolhidos por ver o patrão ali a dois passos, olhando-os,
tudo querendo saber depois, a pouco e pouco foram tomando consciência de que
ele e eles eram feitos da mesma massa; simplesmente
um vencera, talvez porque os antepassados já tinham vencido e eles precisavam
de oferecer ainda a gema do seu esforço para poderem
subir e alcançar postos directivos, só possíveis quando os patrões têm plena
consciência do valor de cada um.
Azeredo de Castro misturou-se com
os artífices e Leonor também; ambos iam a festas que incitavam e apoiavam
como meio seguro para os desenvolver no contacto com o mundo dos pseudo-preceitos sociais. Por vezes almoçavam na cantina para
bem dar a conhecer que eram iguais em tudo ou quase tudo, pois o dinheiro
em quantidade é sempre produto de sorte ou do trabalho feito excepcionalmente.
Criaram um centro onde as filhas
dos operários aprendiam além das letras normais, pintura, música e a bordar,
estendendo assim às camadas, que o vulgo auto-apelida de inferiores, todas
as facilidades dadas aos descendentes de ministros, de generais ou de indivíduos
formados. A simplicidade com que realizavam isso,
maravilhava todos pela maneira itinerante de espalhar fraternidade.
Beatriz crescia a olhos vistos,
e a comparar as escadas que o pai fora obrigado a subir com as dela; as primeiras
seriam de pedra já moída pelo tempo e portanto resvaladiças; as outras, as da miúda, eram os novos
degraus rolantes feitos para poupar energias; mesmo assim, sempre foi para
um jardim de infância e, em seguida, ingressou na escola primária
que frequentavam as filhas dos trabalhadores. Este contacto
primeiro não lhe fez nada mal, pois se serviam para
elas, a neta do capitalista não era diferente. E só as largou quando mudou
para o liceu.
Com o desenrolar do tempo e sem
que o industrial conseguisse suster a queda, os produtos manufacturados foram
decaindo aos poucos e poucos e temia-se a cada hora uma crise que aparentava
ser aterradora. Azeredo de Castro via-se impotente para isso evitar e, a certa
altura, seguiu-se o calamitoso desfecho.
— Estou perdido, estou perdido!
Nada me pode salvar! Que vergonha, que vergonha! É a falência, é talvez a
miséria, é a chacota dos amigos falsos, dos hipócritas que só se riem dos males
dos outros e só se sentem contentes quando vêm os seus semelhantes em precárias
situações. Que vergonha! Não há nada que a possa impedir. Ontem fechou a última
fábrica. Pobres operários, eles bem não queriam, mas tinha que ser. Onde ia
arranjar o dinheiro para lhes pagar, onde? Foi melhor assim.
Que pouca sorte! Quem diria,
quem? Quem seria capaz de imaginar que há pouco tempo fabulosamente rico e de
um dia para o outro me vejo nesta precária situação. Quem?
Não tenho outro caminho, vou
vender o monte e as herdades. Mas para quê? O dinheiro está praticamente sem
valor e se vou vender fico quase na mesma. Acabou-se, é o fim.
Pobre neta, com dezassete anos,
sempre habituada a nada lhe faltar, qual será a sua reacção. Que lhe irá
acontecer por esse mundo fora sem a boa capa do metal sonante?
A criada bateu e anunciou a visita
de uma representação de operários.
O industrial quase a não ouviu,
tal o estado de excitação em que se encontrava, mas perante nova pergunta
meia lacrimejante da velha criada, que vivia tão intensamente como
os amos os problemas deles, lá respondeu atabalhoadamente, parecendo que o
cansaço o tinha invadido numa preparação finalizante
dos seus afazeres sobre a terra:
- Que entrem, que entrem esses
pobres amigos.
- Dá licença, senhor Azeredo?
- Meus senhores, que desgraça!
- A vida tem destas surpresas,
senhor Azeredo, e ninguém está livre de lhe acontecer uma coisa semelhante.
- Pois tem, pois tem, mas não
devia ter.
Fez-se o silêncio que normalmente
segue a uma hesitação ou a situações melindrosas,
em que os assuntos a tratar não são suficientemente fáceis de expor com aquele
à-vontade que forja todas as conversas, sejam elas banais, e sem qualquer
sumo útil ou de verdadeiro interesse.
Os operários iam-se empurrando
mutuamente e tentando não ficar na fila dianteira.
Quando o ruído
cavo de arrastar dos pés acalmou, o industrial, para dizer qualquer coisa,
prosseguiu com a obcecação inicial.
— Que desgraça, que desgraça
para todos.
O operário mais antigo aproveitou
a deixa e foi direito ao que ali os levara.
— Senhor Azeredo V. Ex.a desculpe de cá virmos incomodá-lo a estas horas, mas
depois de muito discutirmos sobre o sucedido, depois de termos pesado, como
pensamos que deve ser, os prós e os contras, resolvemos falar com o senhor
sobre o que nos parece certo e mais justo.
— O certo e o justo?
— Nós pensamos; assim estamos convencidos.
— Então, façam favor de dizer e
creiam que ninguém mais que eu está pronto a tentar resolver a crise que nos
deitou abaixo a todos, tanto a industriais como a empregados.
Mas se têm qualquer ideia façam
favor.
— Se me permite, eu explico: Estamos
desempregados, não ganhamos coisa alguma e ainda criamos vícios. O senhor
foi mais que nosso protector e a menina assim como a netinha todos as adoram,
para as quais desejamos todas as felicidades possíveis.
Com a protecção, que sempre beneficiámos,
conseguimos algumas economias e aprendemos bem que a igualdade entre pobres
e ricos já não é um mito quando lidamos com pessoas como V. Ex.ª
E, o que nos traz aqui, em algumas
palavras é o seguinte: o senhor Azeredo abre as fábricas novamente e nós estamos
dispostos a trabalhar durante dois ou mais meses, todos aqueles que forem
necessários sem nos dar um tostão.
— Mas eu não posso fazer isso!
— Pode sim. E a nosso pedido faz
simplesmente isto: põe todos os produtos manufacturados a preços sem concorrência,
não lhe interesse ganhar mais que o suficiente para sustentar as compras de
mercadoria e os encargos de família. Como não nos paga durante todo esse tempo,
nada perderá e os resultados logo se verão.
— Mas isso não pode ser, os
senhores têm família a sustentar.
— Se nos permite, isso é connosco,
V. Ex.a faça-nos a vontade e verá como o bem será
para todos.
Tanto insistiram, tantos argumentos
apresentaram, que as fábricas entraram em laboração.
Os produtos a sair para o mercado
internacional vinham ainda melhor apresentados do que anteriormente em virtude
de os operários tentarem dar o melhor do seu esforço, porém, a situação agravava-se
dia a dia. Tinham perdido mercados e tornar a alcançá-los não era assim do
pé para a mão.
Os meses foram correndo e um
dia, numa sequência de acontecimentos inesperados a encantadora Beatriz gritava
esbaforida por toda a casa:
— Avô, avô.
— Não está, menina.
— Onde foi?
— Não sei, menina. Mas porque
está tão excitada? Olhe que até lhe pode fazer mal.
— E a mãe?
— A mamã está na biblioteca.
— Mamã, mamã. - gritava a miúda,
meia mulher, pelas escadas acima, mamã.
— Diz Beatriz diz, que alvoroço
o teu filha!
- Oh, mamã, mamã leia isto.
Uma carta de Penamacor, com o
timbre notarial, comunicava que Beatriz Azeredo Barbas era instituída herdeira
legítima do doutor Inácio Cosme, falecido há dois
meses, desde que Vítor Manuel Barbas, desaparecido há vinte e três anos não
tivesse descendentes, os quais instituía também herdeiros em partes equitativas.
Como, continuava o notário, mandara
proceder à distribuição dos editais que procuravam o ex-ministro Vítor
Manuel ou seus herdeiros directos e como ninguém aparecera no prazo indicado
pelo Dr. Inácio, tornava-se por, esse motivo, Beatriz Barbas a herdeira universal.
O contentamento daquela criança
já tão crescida não tinha limites.
— Ai,
ai, ai, vai ser lindo, ai, ai, vai ser o bom e o bonito eu herdeira de uma
pessoa que nem conheço. Com certeza que foi algum apaixonado que morreu de
amores.
— Oh, Beatriz!
— Oh mamã, mamã, já estou uma mulher,
não estou?
E corria a abraçar e a beijar D.
Leonor.
— Está quieta, que maçadora!
— Mãezinha, linda mãezinha,
desculpa lá a tua filhinha, desculpas? Eu gosto tanto de ti.
Pela alegria eufórica que por vezes
se apodera dos jovens e que não conseguem dominar, quando algo os parece fazer
felizes, estava Beatriz possuída. E com meiguices de toda a espécie não deixava
a mãe reflectir nem um só momento.
— Parece impossível, eu não me
quero aborrecer, mas por favor, minha filha, deixa-me pensar quem é este doutor
Inácio.
— A mamã não sabe?
E olhou D. Leonor com as pupilas
muito abertas.
— Não, não sei.
— Então?
— Então, talvez teu avô saiba
alguma coisa.
— Deve ser engano.
— Engano? Mas pode haver duas Beatriz Azeredo Barbas?
— Claro que sim, minha tontinha.
Cada pessoa pode pôr o nome que quiser ao filho ou à filha, todas são livres
para o fazer. Não é contudo muito natural aparecerem
dois nomes precisamente iguais, mas pode acontecer muito bem.
— O mamã, não diga isso. O notário
fala no tio que nunca conheci, por isso não deve haver engano.
— Tens razão, mas não diz o que
te deixaram. Isto é, se alguém, na verdade, te deixou alguma coisa.
— Oxalá que o avô venha
depressa.
E veio. Porém, tanto ele como os
descendentes, estavam todos a zero.
— Deixa cá ver os óculos.
— Os seus óculos?
— Sim, os de aros de tartaruga,
os mais grossos.
É com esses que estou habituado
a olhar o mundo, a olhar-me a mim próprio e à minha querida família.
Teu marido era, na verdade, dessa
terra. Qual é o nome? Qual é?
- Penamacor.
- É isso, Penamacor.
- O avô foi lá alguma vez?
- Eu?! Tu estás a sonhar! Ali para
aqueles lados é «Marrocos» como se diz na Beira Alta.
Teu pai falou-me algumas vezes
em darmos por lá uma saltada. Falávamos de tempos a tempos nos seus campos
entremeados de oliveiras, sobreiros, vinhas, de serras plenas de pinheiros
e pedregulhos; e ali ao lado, a uns escassos quilómetros, Monsanto, a aldeia
mais Portuguesa. Porém, para se ir até lá, para admirar as típicas casas encaixadas
nas rochas e para se ver o soberbo panorama do castelo tinha-se que ir sempre
com o credo na boca, não se fosse partir alguma mola do carro.
Já tinhas ouvido dizer que Monsanto
é a aldeia mais Portuguesa? E que por isso mesmo, foi premiada com um galo
de Prata?
— Não avô, não sabia da sua
existência nem da oferta do galaripo. De Penamacor é
que já tinha ouvido falar.
— Parece impossível. Mas que vos
ensinam no liceu? Eu não sei francamente onde é que iremos ter! Se calhar
querem começar especializando os miúdos para que se tornem máquinas autênticas,
e de cultura geral se tornem uns brutinhos! Cada vez percebo
menos do mundo.
— Mas avô,
olhe que nós estudamos variadíssimos assuntos. E segundo tenho ouvido dizer
somos dos poucos povos que temos uma cultura geral bastante boa.
— Pois sim, pois sim, mas só fama
não interessa. O preciso é sabermos um pouco de tudo, é, eu sei lá, é sermos
um pouco filósofos.
— Então que fazemos?
— Que fazemos? Que remédio senão irmos até Penamacor. E olha, eu estou bem
precisado de uma mudança de ares para ver se desanuvio um pouco.
Levamos o carro grande, para o
que der e vier, não vão as estradas se encontrarem como há vinte anos teu
marido as descrevia e arranjarmos alguma carga de trabalhos e de poeirada.
- O pai, não acha melhor telefonar
primeiro para o notário?
— Bem, a ideia não é má, até me
parece mesmo com muito acerto. Tens razão, é melhor
telefonar-se.
— Ó avô, quando partimos?
— Espera, deixa ver primeiro
onde param as modas e depois toca de meter os pés a caminho.
— Ó avôzinho
fale a sério, fale!
— Nunca falei tão a sério na
minha vida, posso afirmar-te. É simplesmente confirmar a verdade da cartinha e
vais ver se não é certo o que te acabei de dizer.
— Beatriz, não maces o avô. Julgas que ele é da tua idade? Olha que tens
dezassete anos feitos, não és nenhuma criança.
— Deixa-a lá. Hoje tem desculpa.
— É já, avôzinho
da minha alma!
Depois de se terem certificado
que era, bem Beatriz, a herdeira indicada na carta do notário e de terem falado
com ele longamente pelo telefone, o senhor Azeredo resolveu que partiriam
na sexta-feira seguinte.
— Partimos sexta-feira.
Concordas?
— Está bem pai, mas Beatriz tem
liceu e não sei se terá algum ponto. Ela está tão fraca em latim que não adivinho
o que por ali virá este ano.
— Deixa lá, se aparecer alguma
raposa o mais que tens a fazer é conformares-te.
— O pai, nem me diga uma coisa
dessas. Então admite-se que uma pessoa reprove no liceu? Não, não. Nem tal
quero imaginar. Ela anda ali é para estudar e passar, não tem outro serviço
a fazer. Se reprova é pelo menos uma grande falta de consideração pelas pessoas
que se interessam pelo seu futuro.
— Ainda são crianças. Não vêem
bem o mal que a si próprios fazem. As pequenas mentes não as deixam descortinar
que, quando reprovam, lhes passam centenas de colegas à frente e que, por
tal motivo, o lugar que poderiam alcançar, com pouco esforço, mal terminassem
o curso, depois será um cabo dos trabalhos para o obter.
— Mas estes miúdos de hoje parece
que não pensam em mais nada do que na brincadeira ou nos namoricos. Não se
dão conta que o mundo corre e que é preciso acompanhá-lo a todo o custo, sob
pena de ficarem para trás como qualquer enjeitado.
— Isso,
tem paciência, também não. Ela vai e por esta vez escapa, porém, se continuar
a mandriar, sou de opinião que na verdade têm de se lhe apertar um pouco as
regalias.
— Não tenha o pai dúvidas. Não
serei clemente nessa altura e tanto faz que me envie mensageiros de paz como
não. Arranjar-lhe-ei tal castigo que nunca mais tornará a cometer outra facécia
semelhante. As festas acabam-se-lhe imediatamente, assim como quaisquer outros
privilégios.
— Descansa que nada disso há-de
ser preciso, ela estudará.
— Oxalá que não se engane.
O industrial Azeredo, a braços
com a crise que afectara grandemente todo o país, quando da compreensão e
do gesto espontâneo de todos os seus operários que lhe pagavam com trabalho
não remunerado e desassombradamente o que tinha feito por eles há alguns anos
atrás, num entendimento fraternal entre patrão e obreiros, começara a encarar
a vida mais sorridente ainda e concluíra que ela será sempre bem passada se
os pequenos racionais se compreenderem em toda a sua amplidão. Contudo, pensava
de si para si:
"Porque existem diferenças
entre os homens? Porque não consegue o povo subir airosamente as escadas da
igualdade? Porque não sabe trepar e se perde na escalada que tenta fazer,
esbanjando pessimamente o dinheiro que ganha com o trabalho honrado? Porquê,
sim porquê? Por isso mesmo, porque não lhe ensinaram a canalizá-lo como seria
lógico e então, ou se transforma num pedante tolo e julgando-se um ser muitíssimo
importante ou o gasta sem proveito.
Pobre povo! Mas podes estar certo
que me tens incondicionalmente ao teu lado.
O notário deixara-lhe muitas dúvidas
sobre o doutor Inácio, mas dera-lhe a primeira pista que considerava de grande
utilidade: ele dera aulas no internato em que seu genro fora aluno.
Tendo já um princípio para poder deslindar algo sobre a vida de um benemérito que nem
sua filha nem sua neta, nem ele próprio tinha ouvido falar, não hesitou um
segundo.
— Cá está; é aqui mesmo. Peço
para falar ao director.
— Deseja alguma coisa? Faz
favor.
— Perdão,
quero, quero meu filho. Desejo falar com o senhor director.
— Ainda não está, deve chegar aí
por volta das dez e meia, onze horas.
- Dez e meia, onze horas? Mas
ele não é director desde as nove da manhã até às...
-...Às dezassete e trinta e durante
um ano escolar, respondeu o gaiato com ar agarotado, sem papas
na língua, e todo sorridente por poder demonstrar a alguém que lhe ligava
alguma importância, que também achava aquele entrar tarde pouco coerente;
mas um director é sempre um director e com um director ninguém se meta, ou
então, se o fizer que vá bem escorado.
— E eu com tanto que fazer.
Olhem que isto!
— E nós com aulas para dar, pois
temos, melhor, tínhamos aula de literatura, mas como a gente já tem a língua
desenferrujada até demais e como o idioma é o nosso, meio ano, chega para
fazermos figura sem muito esforço.
— Quantos anos
tens?
— Dezassete, senhor.
— Em que ano estás?
— No último, por isso é que tenho
lições com o senhor director, dá só lições ao terceiro ciclo: duas horas por
dia, durante três vezes por semana, das nove às onze; hoje
por acaso é dia. Depois, parece que se vai embora, deixa uma resma de telefones
para o procurarem, caso haja algum assunto mais urgente a resolver e isto
cá vai correndo. Umas vezes bem, outras, tem-te não caias.
Aí vem quem espera. Tem sorte,
não demorou.
- Bons dias.
- Bons dias senhor director.
Adeus Raúl.
- Este senhor.
António Manuel. E simpaticamente
como um bom diplomata que sabe cativar meio mundo, estendeu a mão ao industrial.
- Azeredo de Castro, muito
prazer.
Azeredo de Castro, deixe-me ver. Azeredo Castro, mas nós já nos conhecemos!
É possível senhor director, mas
não me recordo.
- Vimo-nos, pela primeira vez,
há vinte anos.
O catraio com ar divertido, afastado
dos dois, de mãos nos bolsos, não perdia pitada do prefácio deste encontro
feito ali à porta.
— Há vinte anos! Vinte anos, só
se...
— Isso mesmo, diga
diga, foi no casamento
do infeliz ministro José Augusto com a filha de V. Ex.ª Oxalá que a terra
lhe seja leve.
- Que memória a minha!
— Não tem importância. Isto é uma
questão de hábito, temos por força das circunstâncias que fixar muita trapalhada
e a certa altura estamos de tal maneira entranhados que retemos tudo quanto
se passa à nossa volta.
— Senhor
director, minha neta foi instituída, herdeira...
— Entre, entre, desculpe, faça
favor de se sentar e de se pôr à sua vontade. Faça favor de continuar, sua
neta, filha de José Augusto.
— Sim senhor
director, filha de meu genro, foi instituída herdeira universal do
doutor Inácio Cosme que foi aqui professor.
— Lembro-me, lembro-me
perfeitamente, era um bom companheiro, sempre atormentado por algo que nunca
consegui entender, mas um óptimo professor, um camaradão
sem igual, mas sempre triste, sempre pensativo.
Amava os alunos como se fosse
pai deles e os alunos adoravam-no.
Quando se foi embora, isto fica
entre nós, pois até parece mal, porque a mim nunca se lembraram de o fazer,
talvez porque não me preocupo tanto com eles como seria para desejar, ofereceram-lhe
uma fotografia de todos com uma pequena dedicatória que ainda hoje recordo
de cor:
«Bem haja
senhor doutor, V. Ex. substituiu
amplamente os pais que nunca tivemos a felicidade de conhecer ou que conhecemos
bastante mal; receba a gratidão sincera de todos os alunos que jamais o esquecerão.
Que todo o mundo seja feito de
pessoas como o doutor Inácio são os votos de coração e de todo o nosso pequeno
pensamento.»
Era uma jóia
meu caro, uma jóia. E eu que o diga!
Sim senhor, lembro-me bastante
bem dele, tanto eu como os alunos nunca o poderemos esquecer; e ele amava
bastante o seu genro e o Vítor Manuel, tenho até a impressão que mais ainda
do que aos outros rapazes. Também, nunca cheguei a saber o motivo, eles não
faziam nada por isso. Talvez por serem bastante bem comportados nas aulas
e por serem uns alunos que até dava gosto ensinar, contudo nos intervalos
eram o diabo à solta; mas nas horas em que havia estudo lá isso era uma verdade,
os diabretes compenetravam-se no sentido da vida e sabiam bem distinguir as
horas do trabalho e as horas da brincadeira; e escusavam de os companheiros
os desencaminhar, enquanto não sabiam as lições ninguém era capaz de os desviar
dos livros; embrenhavam-se neles de tal maneira que não pensavam em mais nada
naqueles momentos. Mas, como ia dizendo, talvez por serem uns alunos muitíssimo
bons ou por serem da mesma terra, nunca cheguei bem a compreender e ainda
que tentasse disfarçar, eu percebia nitidamente que ele tinha um fraco pelos
irmãos «Barbas», como eram então conhecidos os dois futuros ministros, e ministros
a valer, não quaisquer borra-botas,
como de vez em quando aparecem nos ministérios, os quais só querem penacho
e vénias e nunca descem até ao povo para ver o que ele necessita. Sim, porque
uma coisa é ver, e outra é escutar da boca não se sabe de quem.
E a confirmar a minha afirmação,
vem que ele pagou os estudos universitários aos dois, ainda que eles nunca
o tivessem nem sonhado sequer. E eu, só agora o revelo porque o doutor, como
o senhor disse, morreu, eu nem o soube. O genro de V. Ex.ª
infelizmente também e o Vítor Manuel levou tal sumiço que nunca ninguém mais
lhe pôs a vista em cima.
Foram os primeiros que ajudou,
depois, enquanto cá esteve escolheu sempre dois alunos que auxiliava, e o
que tem graça e por mais que pareça estranho, por vezes não eram os que obtinham
melhores classificações que escolhia, mas sim aqueles, que a sua psicologia
lhe indicava; e digo-lhe meu prezado amigo, nunca falhou. Todos os que ajudou
estão muitíssimo bem colocados e não iludiram as esperanças de quem à distância
os via singrar, talvez contente de não deixar perder rapazes que sem a sua
ajuda terminariam num simples escritório ou num empregozito
de Estado, ganhando dois vinténs até ao fim da vida.
Era um grande Homem, um grande
Homem com letra maiúscula.
Agora, segundo o senhor, deixa a
sua neta toda a sua fortuna.
— É verdade.
— Ele que assim escreveu é
porque pensou fazer algo de útil, porque de outra maneira não teria dado
semelhante passo.
— Mas por acaso, V. Ex.ª não me
sabe dizer se haveria alguma coisa, sei lá, aquilo na aldeia, bem, na cidade é
muito pior, mas às vezes os patrões.
— Nem pense nisso meu amigo, tire
essa ideia imediatamente da cabeça.
— Mas por que carga de alhos, havia
de fazer semelhante testamento?
— Para lhe ser franco, não sei.
Quando se ofereceu para pagar os estudos aos irmãos sem eles saberem, ainda
tentei descortinar porque o faria, mas a verdade, permita-me a expressão «não
tenho tempo nem para me coçar». É o colégio, é o banco, são as duas fábricas,
etc., etc.; eu sei lá meu amigo, é um andar de manhã
até à noite para se ganharem uns cobres que mal chegam para as despesas.
" Pois sim, pois sim,"
pensava o industrial lá para com os seus botões: "para este melro ter
uma chusma de empregos, andam para aí outros de corpo ao alto a chucharem
pelo dedo por não conseguirem nem um. Lamenta-te, lamenta-te ainda, meu filho;
mas quantos, quantos, não se dariam por bem felizes se tivessem um só dos
teus muitos, ou melhor,
das tuas assinaturas em cada um deles e da meia hora de aula que deves dar
aqui. Contudo, não parece que sejas má pessoa; mas com mil bombas! Há para
aí muito e muito racional que não são mesmo nada más pessoas e não têm a tua
sorte!
Paciência, o mundo é assim,
pobres e ricos, ricos e pobres, hão-de sempre existir segundo o pensamento de
muito boa gente. Contudo eu não penso assim:
Na educação está a base da evolução
dos povos e quando o saber for extensivo a todos, ninguém mais será privado
de uma casinha, do seu pequeno carro, da sua televisão, e de ter sempre amealhado
algumas economias, pois que a educação fará mostrar a todos que o desperdiçar
dinheiro sem proveito é o único bacilo que pode levar à miséria. Nisto, acredito
firmemente.
Feitas estas considerações interiores,
e as despedidas, o industrial partiu como tinha chegado, sem ter adiantado
alguma coisa ao que, já lhe fora dado a conhecer.
A incógnita do pensamento, a do
gesto humano, mais uma vez ficaria por se revelar?
X
Nessa manhã de sexta-feira, o Sol,
talvez triste e cansado de aquecer só mentira e devassidão na terra, fez gazeta
como qualquer aluno que não estudou a lição e tem receio do raspanete que
vai apanhar do mestre se a falta ficar castigada só por palavras. O dia apareceu
um pouco frio e acinzentado.
— Beatriz.
— Mamã.
— Agasalha-te bem, olha que está
frio, e pela Beira Baixa deve estar pior.
— Levo o casaco de gola cinzenta
que é bastante quente e a blusa da mesma cor. Não
tenha receio que não me constipo.
— Não te esqueças das luvas.
Meteste na mala as botas forradas e meias de lã?
— O quê, também as botas? Ó mamã não, não é preciso, para mais, fazem-me um
andar muito feio.
—Mas são quentes.
— Mas eu não tenho frio nos pés.
— Não sejas teimosa. Leva-as sempre, se achares que não as precisas, não as calças.
— Pronto, levarei as botas.
— Que remédio senão obedecer, eram
capazes de se arrepender, lembrarem-se do malfadado latinório
e lá estava o caldo entornado.
— Por onde vamos, avôzinho?
— Por onde quê?
— Qual é o caminho que seguimos?
— São uns trezentos e três quilómetros.
Indo devagar, talvez cinco horas sejam o suficiente.
— Almoçamos no caminho?
— Almoçamos. Que horas são?
— São sete, sete e meia, oito.
Bem, partimos talvez às oito. Oito e cinco
treze. Como almoçamos pelo caminho, um bocado de paleio, etecetra
e tal, vamos partir do princípio que não chegamos antes das dezasseis ou dezassete,
pois aproveitamos e podemos admirar um pouco do país.
— E o caminho que tomamos?
— Vamos daqui até Vila-Franca onde com certeza verás os campinos com os trajos
típicos ou sem eles, mas sempre com um certo garbo conduzindo manadas de toiros;
para isso temos de passar a ponte em direcção a Santarém, onde daremos uma
vista de olhos pela cidade e onde apreciarás o soberbo panorama
das Portas do Sol. A seguir, tomaremos a direcção de Almeirim ou Torres Novas.
— Vamos por Torres Novas, avô,
gostava tanto de ir ao castelo de Almourol!
— Não deves poder
lá entrar. O Tejo vai com uma enchente extraordinária e eu não estou para que a
minha netinha seja uma ninfa encantada nas águas do rio.
— Mas vamos, se não pudermos lá entrar, não entramos, mas vemo-lo de perto. Só
o tenho admirado nos calendários e nalguns cartazes de turismo.
— Sim.
— Parece tão bonito! Rodeado
pelo Tejo, mais tem a aparência de um castelo de sonho. Era capaz de se fazer
ali um bom hotel, não fazia?
— Lá estás tu a imaginar.
— Mas olhe que fazia! Quem não
gosta de viver entre os muros de um castelo lendário, rodeado pelas águas
límpidas de um rio encantador e por pinheiros e eucaliptos,
afastado do convívio humano e tão perto da natureza?
O avô conhece a lenda?
— Não, tenho a impressão que, se
a soube, já a esqueci.
— Pois saiba que uma das protagonistas
tem o meu nome. Quer que lhe a conte para ver como é bonita e porque tanto desejo visitar
o castelo?
— Conta lá, mas avia-te.
Há muitos séculos atrás, D. Ramiro,
o senhor do castelo e que tinha fama de ser muito mau e o proveito também,
matou a mãe e a irmã de um mouro chamado Aladil.
Quando fez aquela cruel acção, por elas, coitadinhas, cheias de medo, terem
deixado cair as bilhas por onde queria beber água, olhou para o lado e viu
o miúdo que chorava abundantemente. Nesta altura, aquele coração de pedra
condoeu-se e perguntou ao rapazinho se queria ir para o seu castelo e fazer
companhia a sua filha Beatriz. Lá foi. Beatriz delirou de contente por ter
alguém da sua idade e com quem brincar. Os anos foram passando e os dois amigos
tomaram-se de amores, até que, chegando a idade que as suas mentes e as suas
sensações os levaram a desejar o casamento, Beatriz convenceu Aladil para a ir pedir em casamento ao pai. Ele não queria
porque tinha receio de D. Ramiro, mas por fim lá foi; então, o feroz guerreiro
encheu-se de cólera, chamou-lhe cão e mandou-o prender.
A noiva banhada em lágrimas foi
ter com o seu amado por meio de uns corredores secretos do castelo e pediu-lhe
perdão do mal que lhe causara.
Aladil disse-lhe então que fosse junto de um dos lados da
pequena ilhota, chamasse pelo gigante Almourol e
lhe contasse o sucedido. Assim fez e o gigante prometeu ajudá-lo. Porém, quando
voltou para o castelo viu Aladil rodeado por soldados
e o pai com eles. Foi para uma janela do castelo e viu que o iam matar. De
repente as águas do Tejo, começaram num redemoinho
de loucura e envolveram em altas vagas soldados e guerreiros, sem contudo
tocarem em Aladil. Mas Beatriz que, de tempos a
tempos, não o conseguia ver, desesperada e pensando que parte de sua vida
ia ali perecer, atirou-se de um dos lados do castelo, todavia nunca chegou
a atingir solo duro pois as águas envolveram-na e colocaram-na junto do noivo,
perto do seu Aladil do qual teve uma descendência enorme.
D. Ramiro ficou para sempre prisioneiro
do gigante Almourol e, de vez em quando, em dias
de borrasca, podem ouvir-se nitidamente os seus lamentos.
O avô já viu agora porque tenho
tanto interesse em lá ir? Sabe, as lendas nos próprios locais até parecem
verdadeiras, não parecem?
— Parecem, minha querida
netinha.
— E gostou?
— Muitíssimo.
— Lindo quadro,
sim senhor. Avô e neta entretidos a contar histórias!
— Deixa-me cá mais a minha nétinha pois já temos tudo preparado e estamos simplesmente
à tua espera. Bem e aqui para nós e em voz baixa, deixa-me que te diga que
ainda não sabia a historieta.
Queres saber o resto do
itinerário, não é verdade?
— Quero sim, avô.
— Vamos por Torres Novas, passamos
o teu castelo encantado e almoçamos no hotel de Turismo de Abrantes, admirando
uma bela paisagem a nossos pés enquanto damos trabalho ao estômago.
Seguimos pelo Gavião, Nisa, onde
poderás comprar umas bilhas que além de fazerem uma água fresquíssima são
bastante típicas. Passaremos, em Vila Velha de Rodão, as afamadas
portas de Rodão com o Sol já meio a dormir.
Em Castelo Branco, além de tudo
o mais, iremos ver as colchas de seda natural, todas
bordadas à mão, onde escolherás uma para o teu enxoval quando te casares.
— Não esqueço o prometido.
— Também eu me lembrarei e, finalmente...
— Finalmente, deixe a maçadora e
vamo-nos embora que já não se pode dizer que é cedo.
— Pronto, não se torna a repetir duas vezes. O comandante não manda, comanda
e a gente obedece, não é verdade minha filhinha? Dá cá um beijo ao vovô.
— O pai, por favor, despache-se.
Não deve dar confiança a essa pequena cábula que devia cá ficar. Mas até ao
lavar da loiça ainda vai muito tempo.
Avô e neta piscaram o olho sorrateiramente
e desceram as escadas em três tempos com grande esforço do simpático velhinho.
Depois de uns bons quilómetros
andados, a entrada no paraíso prometido foi uma satisfação para todos.
A estrada, já às portas de Penamacor,
rodeada de árvores, plena de camponeses, de enxada ao ombro, com os burros
caminhado pachorrentamente à frente do dono, o cheiro agradável a terra revolvida
de fresco, a paz que tudo parecia respirar, fez aparecer no íntimo de cada
um o desejo imediato de ali voltarem calmamente para umas férias em banhos
campestres, longe dos ruídos dos grandes centros.
Ao pararem o carro, para saber onde era o notário, em vez de um informador, apareceram
uns quatro ou cinco, todos tentando ser prestáveis, sem qualquer deles o conseguir,
porque como todos falavam ao mesmo tempo, ninguém se entendia.
Por fim, um cachopo vivaço e bem parecido prontificou-se
a ir mostrar onde o homem de leis tinha o seu cartório.
— Entra para aqui.
— «Nã»
senhora, «nã» é preciso, é já ali acima. Eu «boto» a
correr à frente do carro e ensino.
— Anda entra.
— Vá, disseram os outros. Anda
que sempre chupas uma cavalada.
— Entra, entra que sempre é mais
rápido.
— Mas é já ali!
— Entra.
Quando, no minuto seguinte, o
miúdo disse, já cá estamos, o senhor Azeredo tirou da bolsinha de prata vinte
e cinco tostões e deu-lhos.
— Toma para comprares rebuçados.
— Não senhor não quero, bem-haja.
— Toma meu tontinho; não sabes
que, quem faz um serviço, merece sempre paga? E tu fizeste.
— Mas também dei uma cavalada.
— Aceita, disse Beatriz, acariciando
o cabelo encaracolado do gaiato.
— Bem-haja, mas esse dinheiro é
muito, e depois levo alguma cossa, lá em casa de
minha mãe, porque pensa que lho tirei. Não senhor.
— Mas compras rebuçados já.
— Aceita rapaz, não vês que é má
educação. Estes senhores têm vontade de te dar esse dinheiro e tu aceitas.
- disse o notário, saindo do seu pequeno gabinete de trabalho, onde fazia
escrituras, lia testamentos, escrevia testamentos, dava conselhos
e recebia inspecções.
— São a família Azeredo, não é
verdade? Muito prazer.
— Muito prazer, senhor doutor.
— Façam favor de entrar e de estarem
à vontade, não reparem é para esta desarrumação e desculpem não ter
melhores cadeiras para oferecer. Mas certamente já tiveram ocasião de apreciar
que a terra é pequena, por conseguinte, não nos podemos
dar a grandes luxos.
— Por favor, não se incomode
connosco, doutor.
Para não perderem tempo, o notário
explicou, em poucas palavras, que o doutor Inácio Cosme
o tinha procurado ali mesmo ao entardecer e que lhe tinha declarado à queima roupa que desejava fazer um testamento cerrado.
— Expliquei-lhe o que devia fazer
visto ele, me querer dar parte do assunto na altura e, no dia seguinte, limitei-me
a contar as linhas e as folhas por que era constituído e a lançar isso no
meu livro, enfim, as sequências que a lei determina.
Em seguida deu-o a ler ao industrial,
pelo qual ele ficou sabendo que sua neta era a proprietária legítima de duas
boas quintas e uma casa em Penamacor. Três prédios de rendimento em Lisboa
e uma quintarola na Beira Alta.
Depois de terem ido tomar café
para recobrarem forças, o doutor foi-lhes mostrar a residência na vila, a
qual tinha mandado limpar e preparar ainda que com bastantes dificuldades,
pois com a mania que todas as criadas têm de irem servir para as cidades,
viu-se e desejou-se para encontrar uma mulher-a-dias que lhe fizesse o serviço.
No entanto, pedia desculpa se
tinha abusado dos poderes.
— Por quem é, doutor! Nós é que lhe estamos gratíssimos por todas as maçadas. E
escusamos de ir para o hotel, ficamos aqui muito bem.
— Hotel? O senhor Azeredo
esquece que está numa vila desterrada do resto do país.
Para cá termos uma pensão, sempre
com meia porta para fechar definitivamente, vimo-nos
e desejamo-nos. E não é porque não existam condições que possam fazer atrair
os visitantes! Vistas esplêndidas e bons ares; bem saudáveis, por sinal. Vim
para aqui um pouco abalado dos pulmões e hoje encontro-me rijo e cheio de
saúde.
Mas deixemos esta minha divagação
para poderem apreciar bem o pequeno paraíso, durante
o tempo que aqui ficarem.
— Nós demoramo-nos pouco.
— Mas chega perfeitamente, isto
corre-se em três pulos: visitam a mata, onde se poderia construir um bom hotel
que serviria de casa de repouso e de saúde, pois tem panoramas formidáveis
e sempre o cheiro vivificante dos pinheiros. As ruínas do castelo e das muralhas,
com os antigos paços do concelho para ver, assim
como o pelourinho, a porta da Misericórdia, o convento de Santo António e
a torre da Igreja matriz, a qual, se alguém não lhe deita a mão, em breve
rivalizará com a célebre torre de Pisa, tal é a sua inclinação. E a paz, a
quietude que vossas Excelências respiram?
— Nota-se bem, que o doutor é um
apaixonado pelo meio.
— Não tenha dúvidas, a terra merece-o,
e a gente simples e sã que nela vive, também.
Por vezes há uma questiúncula aqui
ou ali, porém é sol de pouca dura; passados alguns instantes tudo volta à
normalidade.
Se não fosse Beatriz e ainda a
vontade de passar pela propriedade, perto de Travanca, para a ficarem a conhecer
e saberem se o rendeiro que lá estava queria continuar, em vez de três dias
como lá passaram, nos quais mal tiveram tempo de darem uma vista de olhos
pelo Pedrogão, Aldeia de Bispo, Águas, Aranhas, Meimão, Meimoa, Vale de Lobos,
Bemquerença, Bemposta, Salvador e Aldeia de João Pires, a grande maioria com
péssimas ligações. Os senhores directores das estradas, do infeliz
distrito, e infeliz por naquele tempo não ter alguém, nesse lugar, de visão
mais larga que os deixasse descortinar que os cargos não são somente para
emproarem mais as pessoas, mas sim para lutarem pelo bem da colectividade
nos serviços em que estão ligados; enfim, uma melhoria de condições de vida.
Em vez de lá terem passado somente três dias como íamos dizendo, teriam ficado
pelo menos uns quinze.
O notário, na medida do possível,
explicou ao industrial quais os motivos que deveriam ter influído para o testamento
ter sido elaborado como foi, e ao falar-lhe de Teresa e do marido, levou o
bom do velhote a querer visitar os pais adoptivos do genro sem, contudo, revelar
estes propósitos nem à filha nem à neta para que naquelas cabecitas de cabelos
compridos não surgissem confusões ou quaisquer mal
entendidos.
Quando chegaram à quinta estava
o chefe ordenhando uma bela vaca.
— Podemos
entrar?
— Olha quem vem aí, o senhor
doutor! Faça favor, a casa é sua e a porta está sempre aberta para todas as
pessoas de bem.
— Já sei, já sei. Para
principiar, bons dias.
— Bons dias meus senhores.
— Continue o seu trabalho. É um
belo exemplar!
— Isto é uma jóia, cá a minha
branquinha.
O senhor doutor sabe quanto deve
estar aqui de leite, pouco mais ou menos?
— Dez ou onze litros.
— Dez ou onze? Estás a ouvir isto branquinha?!
— Era uma verdadeira central leiteira
ambulante.
— Não tenha dúvidas, senhor
doutor.
— Agora, deixe-me dizer-lhe quem
é este senhor.
— Não tenho esse prazer.
— Pois fique sabendo que tem à
sua frente o sogro do José Augusto por quem vocês tanto se lamentam.
— O senhor?
— Eu mesmo.
— Ó Teresa, Teresa, — e largou
a correr tropegamente.
— Acalme-se homem, acalme-se; o
mundo é feito de morrer e viver e nós não lhe podemos
deitar a mão.
Depois de um pequeno silêncio,
feito de embaraço pelo assunto debatido, o Joaquim quis por força que as
visitas bebessem uma copana.
— O senhor Azeredo virá noutra
altura e com mais vagar, com a neta e, então, terá tempo de lhe oferecer alguma
coisa.
— Aprecio sim senhor e dão-me
até muito prazer, porém, como acabei de tomar o pequeno
almoço....
— Tenham paciência, mas têm que
provar a pinga e comer alguma coisa, nem que sejam somente algumas azeitonas.
— Ela há-de
cá vir, esteja descansado.
— Enquanto não vier pode Vossa
Excelência estar certo que não estou, não senhor. Desculpe que lho diga, mas
é a verdade.
— Agora se me permite vou-lhe dizer
o que além de este senhor o querer cumprimentar, nos trouxe por aqui.
— Ouvi falar. Isto corre logo.
— Enquanto vínhamos pelo caminho
este senhor lembrou-se que o meu amigo era a pessoa indicada para lhe
dirigir a herança e tomar conta de tudo.
— Teresa, ó Teresa, avia-te.
— Já vou. Que pressa. Parece que
é morte de homem!
— Eu gostava de tomar conta das
terras, mas na verdade a canga é demasiada para os meus ombros, e eu já mal
posso com uma gata pelo rabo.
— Agora, o senhor contrata
trabalhadores, faz o melhor que puder e quando tiver
quaisquer dúvidas escreve para o senhor Azeredo e ele lhe dirá o que houver por
bem.
— Escrever? Isso queria eu, nunca
soube, em toda a minha vida, acasalar duas letras!
Com vontade ou sem ela o industrial
e o doutor lá beberam do maduro da região acompanhado de umas lascas de presunto
e da tagarelice da Teresa que nunca mais parou de fazer perguntas, de soltar
exclamações e de chorar. Quando soube que a nétinha estava ali a dois passos já não parou enquanto não
pôs pernas a caminho, e as foi ver com um cesto cheio de hortaliça, com galinhas,
ovos, etc. tudo o que lá coube. Mãe e filha ficaram muito admiradas e sem
nada compreender, mas quando perceberam toda a grandeza daquela alma sã não
puderam conter as lágrimas.
Depois de ficar assente em como
o Joaquim não tinha outro remédio senão ficar com a direcção de tudo, lá partiram
numa nuvem de beijos, abraços, choros e com o porta-bagagens
cheinho das dádivas campestres.
A viagem
de regresso fez-se pela Beira-Alta apesar da estrada Penamacor-Sabugal, estar quase intransitável em parte, na
parte que cabe à direcção de estradas do poeirento distrito de Castelo Branco.
Nos arredores da Guarda
visitaram o dólmen da Pêra do Moço e o castro do Tintinolho.
Em Viseu, viram a Cova de Viriato,
as Portas do solar e dos Cavaleiros e o Museu Grão Vasco.
Por S. Pedro do Sul e arredores,
demoraram-se imenso, na contemplação do panorama que se avista da capela de
S. Macário. Visitaram a piscina de D. Afonso Henriques, o balneário Romano,
o Castro da Cárcova, o convento de S. Cristóvão
e a aldeia de Manhouce.
Com esta paragem inesperada só
tiveram tempo de almoçar, já muito perto das quatro horas da tarde em Santo
António de Serém, e de seguirem direitinhos para
Lisboa para não chegarem a altas horas, segundo os dizeres de D. Leonor que,
a todo o momento, lembrava o latim que a filha tinha para estudar.
XI
— «Hoc
enim sentio, nisi in bonis
viris amititiam esse non
posse». Já escreveu?
— Já sim professorzinho,
mas palavrinha que não percebi quase nada.
— A linguagem, Beatriz, essa
linguagem. E vamos lá ver a frase com calma.
— Mas eu estou calma, doutor, o
que não percebo é nadinha disto, franqueza, franquezinha.
— Então porque não estuda?
— O latim devia ser só para os
padres.
— Mas como não é... O melhor é
deixarmos de analisar as suas ideias, pois por ora, não nos interessa saber
para quem devem ser ou para quem não devem ser as matérias, mas limitar-se,
isso sim, a estudá-las.
— Está a ver como tudo isto está
errado. Vamos meter uma chusma de coisas na cabeça durante uma resma de anos,
atafulhamos, atafulhamos sem nunca saber para que servem; e, depois, quando
estão quase esquecidas é que, por meio da prática da vida, como dizem os mestres,
vemos qual a sua utilidade. Isto, está tudo errado!
— Oh, Beatriz!
— É o que lhe digo, doutor.
— Mas não é o seu caso.
— Sim, não é bem o meu caso porque
fiz as minhas investigações particulares. Tenho horror ao desconhecido.
— Então, sabe que o latim tem
bastante utilidade.
— Admitamos que tem alguma.
— Bem, então, admitamos e vamos
lá traduzir a frase, sem mais conversas. Traduza.
— Não sei.
— Faça um esforço.
— Já fiz, mas não sei.
— Sabe.
— Não sei.
— Não brinque com assuntos
sérios, Beatriz, peço-lhe.
- Verdade que não brinco. Da frase só entendi: Uma coisa, não sei quê, não sei quê e depois amizade. Como só estas
palavras não bastam para a traduzir, o lógico é responder não sei. Ou não será?
— Está bem, está bem. Vá assim
fazendo, se quer ver o lindo enterro que leva. A frase traduz-se: «Uma coisa
eu penso com efeito, é que a amizade não pode existir senão entre pessoas de
bem».
— Cada vez estou
a gostar mais do latim. Tem cada tirada que a pensar-se nelas até dá vontade
de termos vivido no Lácio, no século segundo antes
de Cristo, para ouvirmos falar um Cícero e aprender o muito dos seus ensinamentos.
— Deixe-se de brincadeiras,
estamos a dois passos do exame e está atrasadíssima.
— Não diga isso, falta-me só um
bocado de vocabulário. A gramática sei-a toda na ponta
da língua.
— «Hoc»
o que vem a ser?
— É um pronome demonstrativo e
cá estão eles: «Hic, Haec, Hoc» sei ou não sei?
— Sabe e não sabe.
— Ó doutorzinho,
doutorzinho, deixe-me contar-lhe esta.
— Não conta nada, vamos à lição
e deixemo-nos das suas historietas.
— Mas isto não é historieta, é
verdade, a gente inventou.
— Inventou o quê?
— Conhece o mano Zé?
— Conheço, mas não me interessa
saber coisa alguma.
— Primeiro, pergunta-me o que
inventámos e agora não me deixa contar! Olhem que isto! E o senhor sempre a
dizer-me para ser coerente. Por favor, agora, deixe-me desembuchar.
— Fale,
fale, desembuche para aí.
— Zangado não. Assim não conto
nada.
— Está bem, fale,
não estou zangado.
— Assim é outra conversa.
— Mas que termos, Beatriz!
Francamente!
— O professorzinho
desculpe lá o meu jeito. Mas, a propósito dos pronomes relativos e como os
alunos fazem um salsifré medonho na aula do mano Zé,
os rapazes inventaram esta: «Qui, Quae,
Quod, quem tem barba tem bigode e na aula do mano Zé,
cada um faz o que pode».
Está com laracha, não está?
— Emprega-me cada palavra, que
eu cada vez compreendo menos onde tudo isto vai parar, com
as inovações e os termos linguísticos usados pela juventude.
— Oh, doutor, não seja assim, está a tornar-se rabugento. Não sei se
está notando.
— Estou notando que passámos uma
hora inteirinha e não fizemos quase nada.
— Não fizemos? Até terminámos com
uma frase bombástica, mas na verdade e sem pilhéria, correctíssima.
— Eu não quero saber de conclusão
alguma. A única que tiro é: se não estuda apanha um chumbo de tal ordem que,
caso o liceu não tenha as paredes bem firmes, cai de certezinha, sou eu quem
lho garante.
— Então sempre tirou alguma
conclusão; o capítulo é que variou.
— Vou-me embora. Para amanhã, continua
com revisões, vê ainda os pronomes e sabe-me ,na ponta da língua, os verbos
defectivos.
— Vai ver que a sei de fio a
pavio. É uma capicua a duo, nove-nove.
— Deixe-se de brincadeiras e de
superstições reveladoras de mentalidade em atraso.
— Ó professorinho!
— Respeito.
— Porque é assim tão mal
encarado quando quer?
— Não se esqueça de estudar bem
o que lhe marquei e...
— Não seja assim, não...
— E de saber a lição como
prometeu, na ponta da língua. O dicionário não se fez para estar na estante sem
ser aberto. Se não o for, daqui até ao exame o resultado é...
— «Não conseguir fazer umas
traduções com pés nem cabeça». Porque repete todos os dias o mesmo sermão?
— Beatriz.
— Doutor.
— Deixe-se das suas.
— Dá licença?
— Por favor D. Leonor.
— Então, o latim vai ou não vai?
— Há-de ir, há-de ir.
— Nota-lhe alguns progressos, doutor?
— Mas eu estudo, e passo de certeza absoluta, ainda que não me desagrade ir passar
as férias para Penamacor. Foi o único lugar onde até hoje encontrei um pouco
de sossego.
— Doutor.
— Vossa Excelência tem passado
bem?
— Ultimamente nem por isso, insónias
sobre insónias. Sabe, a velhice que se aproxima.
— Não se nota, minha cara
senhora, os anos parecem ter esquecido D. Leonor.
— Engano, meu amigo, sinto-me cansada.
— Não diga isso, mamã, prometo-lhe
que passo e não se entristeça por minha causa. Passeie,
divirta-se; ainda é tão nova! Parecemos quase irmãs e com pouca diferença
de idades, não parecemos doutor?
— Não tenha dúvidas, minha senhora.
Beatriz não a tenta animar, ela diz-lhe o que muita gente pensa. E diz-lho
francamente, orgulhosa de ter a mamã tão jovem.
— Mas o interior, o interior também
conta. As pessoas, habituam-se a ver caras e esquecem
o pensamento do seu semelhante; lembram-se só dos seus problemas íntimos;
porém, quando analisam as outras pessoas esquecem que elas também os têm,
para lhes olharem simplesmente a aparência exterior.
A conversa prolongou-se por mais
um quarto de hora.
Vendo que não conseguia ir a exame
pela nota baixíssima que lhe apareceu na pauta no fim do primeiro período
escolar, D. Leonor, em concordância com a filha, resolveu tirá-la do liceu
e fazer a disciplina por fora; daí, a contratar o doutor Anacleto, um cabo-verdiano
bastante vivaço apesar dos seus quarenta anos e
com muito tacto para ensinar os alunos.
Beatriz gostava bem dele e provava-o
estudando afincadamente o detestado latim. Uma vez por outra, quando a lição
ia mal sabida, o doutor Anacleto não lhe dizia nada, mas amuava como os miúdos
pequenos e sentia-se ofendido com aquela falta de consideração. Nesses dias,
bem raros felizmente, além de não cantar uma suave, doce, uma muito quente
morna, como só os naturais do Arquipélago o sabem fazer, brotando nostalgia,
o doutor punha um olhar tão triste, tão magoado, que Beatriz jurava ao seu
«ego» preguiçoso nunca mais lhe tornar a fazer a vontade.
Os meses, disputando uns aos outros
o menor tempo, no tempo passavam velozmente. Não aqueles meses que parecem
intermináveis quando as idades oscilam entre os sete e os onze anos, mas aqueles,
que já parecem correr aos dezassete e que, conforme a idade vai aumentando,
também eles parecem ir teimosamente diminuindo na escala da vida, quase se
tocando o princípio com o fim de um ano, tão meteórica parece a sua
passagem.
Os meses de Beatriz ainda não eram
destes, porém, já ensaiavam muito bem os seus passos de fuga, e assim, em
menos de um esfregar de olhos, fez o seu latim.
Julho, o mês das raposas e de férias
em perspectiva; o mês em que o turista percorre Lisboa de lés-a-lés desde
o Castelo de S. Jorge à Torre de Belém, passando pelos miradouros da Senhora
do Monte, de Santa Luzia, o típico bairro de Alfama onde casas há unidas pelos telhados tal é a pequenez das ruas; a Feira da
Ladra, a igreja da Madre de Deus, a Sé Catedral, a Casa dos Bicos, que tanto
tem de justa fama como de inqualificável desprezo a que tem estado votada,
a praça do Comércio, o Parque Eduardo VII e a sua Estufa
Fria, o Areeiro com as construções ultra modernas, o Museu dos Coches,
o Mosteiro dos Jerónimos, o monumento aos Descobrimentos, a célebre Torre;
e no fim do dia, pleno de satisfação de quanto viu e admirou, vai jantar a
um restaurante ou a uma adega típica no Bairro Alto ou em Alfama, onde ouvirá
os fados bem tiradinhos, bem castiços e bem Portugueses. No outro dia prepara-se
e dá uma saltada ao Estoril, a Cascais, Sintra e Mafra e, se por acaso não
tem mais dias, com muita mágoa nossa, para cá ficar, já ficou pelo menos com
uma ideia deste país sempre pronto a recebê-lo de braços abertos.
Pois, esse Julho, o Julho Português
apresentava-se pleno de promessas, de um Sol esfuziante, cheio, amigo, o indicador
imperativo das praias que se estendem ao longo da costa numa profusidade
tal e todas tão simples e convidativas que ninguém resiste aos seus olhos
hipnóticos.
Algumas
estâncias há, ainda tão mal
conhecidas e tão pouco exploradas que encontramos nelas somente pessoas sedentas
de solidão. Os sonhadores, os admiradores mudos da natureza. Noutras, o bulício
é tal, o ciciar das crianças tostadas pelo meigo Sol Lusitano, a alegria dos
jovens papás e mamãs, o desejo dos mais antigos, tão sedentos do seu Sol,
do iodo do mar como dos casinos, dos campos de golfe e de ténis, é tal que
mais semelham vilas e aldeias sempre em festa.
Beatriz passou e bastante bem.
O bicho-de-sete-cabeças, o malfadado latim não resistiu a tanta graça e sabedoria
e apareceu com dezoito valores; Literatura quinze, História quinze, Filosofia
dezasseis. Opa (Organização Política) dezasseis, Alemão dezassete.
O trampolim para a faculdade tinha
sido muito bem batido assim como o exame de admissão que não tivera o gosto
de a ver aparecer pelas brilhantes notas que a isentaram automaticamente do
sacrifício, mas, na verdade, necessário.
- O pai não compra o carro. Eu
não quero que ao entrar na faculdade de Direito se pense completamente
emancipada e possa fazer tudo o que quiser.
— Mas ela não faz.
— Faz sim, pai.
— Mas Beatriz já sabe o que lhe
tencionava oferecer.
— Pois sim, mas agora mudou de
ideias, diga-lhe que fui eu, diga-lhe qualquer coisa ou não lhe dê mesmo explicações,
ela não tem querer nem meio querer.
— Senão, oferece-lho tu, não é
verdade?
— Nada posso afirmar, tudo é possível.
Mas como nunca podemos afirmar com toda a convicção
que vamos fazer isto ou aquilo em determinado dia, por esse motivo, não posso
dar-lhe uma certeza, se é isso que deseja.
— Eu estou a brincar.
— E eu também pai, mas fica assente:
n ão lhe compra o carro.
— Não lhe compro o carro, está
prometido, embora isso me custe. Ai, isto de os filhos
mandarem mais que os pais! No meu tempo não era assim.
— No seu tempo não havia
automóveis.
Com um beijo despediu-se do pai
antes que ele com os subterfúgios que o tempo lhe tinha ensinado conseguisse
modificar-lhe a opinião.
— Ficaste aborrecida?
— Não avô, nada mesmo; já estou
habituada. Sempre os pais mandaram nos filhos, sempre!
O simpático velhote não deu resposta,
mas lá no fundo não estava muito de acordo com a frase da neta. E dizia de
si para si:" às vezes, às vezes."
— Então o que resolves?
— Já tinha resolvido. Sempre pensei:
o avô não o compra porque a mamã não concorda e acertei em cheio, foi ou não
foi?
— Estás uma grande psicóloga.
— Que remédio; o mal era só meu.
Se não estudasse não tinha carro nem curso e por isso preferi fingir que acreditava
ter as duas coisas no fim do ano.
— Prometo e a tua mãe anuiu. Nessa
altura, não ponhas sequer dúvidas; quer o comandante queira ou não queira
tens carripana pela certa.
E agora o que queres?
— Agora, quero passar as férias
em Cabo Verde.
— Cabo Verde?
— Sim, Cabo Verde.
— Tu tens cada ideia! Mas deve
lá estar urna temperatura insuportável.
— Não está, avô.
— Mas já pensaste bem.
— Não lhe disse que sabia que
não me davam o carro? Como sabia, resolvi ir pensando aquilo que eu poderia ir
escolhendo e, então, cá está, Cabo Verde.
— Neste momento, Beatriz lembrou
tudo quanto o explicador lhe tinha contado sobre as ilhas:
— Já sei, já sei; deram-lhe um
pontapé no cesto, ficou sem os bolos e quer que eu a reembolse do prejuízo;
é isso ou não é?
— É sim, senhor reitor.
- Tenho-a avisado que não deve
vender a doçarada ali tão perto do portão. A senhora
sabe muito bem que é muito mais fácil convencer uma pessoa só, do que trinta
e quatro que são os mariolas desse terrível terceiro ano. Foram os mariolas
de sempre, não foram?
— Parece que sim, senhor reitor.
— Mas já sabe, deve afastar-se.
— É a minha vida, senhor reitor.
Não tenho homenzinho que ganhe para mim.
— Bem, bem, quanto valia o
cesto?
— Ele foi todo.
— Vai sempre todo.
— Coitadinhos têm apetite e os
bolos são muito bons.
— Quanto quer?
— Cinquenta e cinco escudos.
— Pague-se lá alminha e veja se
consegue evitar estes desacatos que eu por meu lado farei outro tanto.
— Muito obrigado senhor reitor,
que seja pela saúdinha de todos os meninos. — e
saía toda lampeira pelo bom negócio que tinha feito.
Para o reitor a coisa ainda não
tinha acabado e toca de chamar a turma de ataque à farinha e ao açúcar, passar-lhe
um bom ralhete, vá de os contar não tivesse faltado
algum e dividir o estrago pelas portas. Ao fim e ao cabo, ainda ficavam os
pãezinhos com açúcar mais caros. Porém, assim sabia-lhes melhor, era o fruto
proibido a acenar-lhes e o espírito que lhes deu a maravilhosa miscigenação a empurrá-los para o campo vedado.
Beatriz continuava a ver, a ver
Cabo Verde, sem nunca lá ter estado: os homens com os olhos postos no céu,
numa expectativa dolorosa do aparecimento de algumas gotas de água. As conversas, a partir de Julho nos que vivem da terra; passam
a ser chuva ou não chuva; enquanto que os mais novos e alguns dos mais velhos
também, orgulho da cultura Luso-Tropical, exemplo
flagrante da fraternidade entre todos os povos; brancos ou mestiços, negros
ou vermelhos ou amarelos. Esta fusão heterogénea de todos eles, dá ao cabo-verdiano um tipo de beleza inigualável à face
da terra.
Tudo lhes serve para em três tempos
arranjarem uma festa; desde os casamentos e baptizados até à morte. E as suas
danças e cantares feitos de um sabor quase irreal: as coladeiras, o torno, a taca, o landau e a morna. A morna! A morna poema, sonho, melodia ou
bailada é o teste onde o cabo-verdiano se analisa, onde mostra a sua mestiçagem
étnica, cultural e espiritual. No amor, na languidez da morna, ele entrechocou
a atávica tristeza negra com o saudosismo Lusitano.
— Beatriz.
— Avô.
— Estás a sonhar ou estás
pensando?
— Nada, nada.
— Bem, então temos que comunicar
ao comandante a resolução.
— Vai dizer à mãe?
— A quem querias que dissesse?
— Mas isto não é a compra do
automóvel.
— Mas sempre tem de saber, e quer
se oponha ou não, desta vez não se sairá como da outra podes ficar descansada;
agora, unimos forças para o combate pois só assim poderemos vencer.
— Vamos passar as férias a Cabo
Verde exista ou não oposição.
— Vamos?
— Sim, vamos. Ou importas-te que
eu possa fazer umas pescarias de umas ilhas para as outras. Quantas são?
— Dez ilhas e umas cinco
ilhotas.
— Deves estar forte na geografia
do arquipélago.
— Passei uma boa parte do ano
pensando nele — suspirou profundamente.
— Pois eu só sei que vou pescar,
que quero visitar as salinas da Pedra do Lume, exploradas na cratera do vulcão
extinto; e que tomarei umas banhocas na praia da
Palmeira para ver se rejuvenesço.
— E a mãe?
— Primeiro, fazemos os planos e
depois, apresentamo-los como um ultimato.
— Se formos de avião aterramos
em que ilha?
— Na do Sal.
— Vamos de barco, sempre passamos
uns dias no mar e para cá, se não tivermos gostado, vimos de avião. Concorda,
avô?
—Sem objecções.
— Ao falarem com D. Leonor, esta
achou bastante interessante a ideia, porém, como não tinha vontade de passar
férias fora de Lisboa, resolvia ficar.
— Mas por que não vem, mamã?
— Não me apetece, tenho assuntos
a tratar que tu não podes entender e tenho que ficar, quero ficar. Tens
autorização para poderes ir e pronto. Combina com o
avô o dia da abalada e eu lá irei despedir-me.
— A miúda olhou a mãe, decepcionada
e saiu da sala pensativa: sempre fora muito esquisita, tanto a tratava como
uma mulher, como de súbito lhe dizia que havia assuntos que ela não entendia
e dava por encerradas as conversas.
Dirigiu os passos para os
aposentos do avô e foi-lhe comunicar as últimas novidades.
— Ai
não quer ir!? Tanto melhor, vai ver como nos divertimos fora do olhar do
general.
Olha, convidamos o teu professor
para nos guiar e aí vamos de mala aviada.
— Ele não pode ir.
— Já lhe falaste nisto?
- Telefonei-lhe. Disse-me que este
ano não podia deslocar-se às suas amadas ilhas e mais nada.
— Assim só?
— Sim, só assim.
— Deixa lá, não faz mal. Não nos
havemos de perder, ninguém, nos come e vamos fazer um sucesso, sou eu que te o digo.
O simpático senhor Azeredo tinha
razão. As almas simples, os desprovidos das invejas e das maldades tristes
deste mundo, fazem sempre sucesso onde quer que estejam e para onde quer que
caminhem.
XII
A notícia de que a mãe ia casar,
encheu-a de alegria, mesmo tendo-a sabido só no próprio momento em que tinha
chegado das ilhas que amara com todo o seu espírito feito de irreais, há procura
de irreais e escrevendo sobre irreais nos seus poemas plenos de esperanças
e de algumas dúvidas, das dúvidas sobre que todos os jovens escrevem quando
o amor, o supremo bem da vida, começa ou ameaça despontar.
Beatriz trazia uma produção poética
vastíssima do Arquipélago. Também as mornas, a beleza dos seus semelhantes
e da paisagem, completamente feita de contrastes a tocara, a possuíra, a fizera
entrar em êxtase, e os seus poemas tinham mesmo surgido com o acento
nostálgico, quase preguiçoso mas pleno do encanto benéfico dos pequenos pedaços
de terra envolvidos pelo mar calmo e convidativo. Pedaços que visitara e onde
os olhos ficaram gravados.
Ao lhe comunicarem o novo enlace
materno, esqueceram-se de lhe dizer quem seria o feliz padrasto; e assim,
avivada a curiosidade e contente por saber quanto a mãe devia estar brotando
alegria e felicidade, pediu para a conduzirem a casa o mais rapidamente possível.
— Mamã!
— Filha, meu pequenino amor! Que
saudades! Como estás queimada! Mas que bom parecer. Que bem que te fizeram
estes dois meses por lá. Gostaste?
— Simplesmente magnífico, mamã.
O paraíso terrestre em miniatura, uma delícia, nunca pensei, só vendo.
— Então, aconselhas-me?
— Peço-lhe que vá mamã, vá que
não se arrepende.
— Vou sim, minha querida filha,
vou lá passar a lua-de-mel.
— Ah, é
verdade, conte-me, conte-me mamã, quem vou ter por protector?
— Adivinha?
— Não sei, não faço a mínima
ideia.
— É uma pessoa que tu conheces
muito bem.
— Não adivinho de certeza
absoluta, contudo, o pequeno coraçãozinho deu-lhe um
estalo.
— Diga, mamã, por favor.
— Faz um esforço.
— Não consigo — e o peito
batia-lhe desordenadamente.
— O doutor Anacleto.
— O doutor Anacleto!
— Sim, mas que grande admiração.
Não gostas dele?
— Gosto, gostava muitíssimo.
Os olhos de mãe, aquelas pequenas
gretas do corpo que tudo vêm, que tudo observam quando os filhos dizem o que
não pensam ou
D. Leonor, nublada pelo egoísmo
que por momentos toma as pessoas que se pensam felizes, não sentiu naquelas
poucas palavras «gosto, gostava muitíssimo», toda a dor de uma alma pequenina,
tentando debater-se para não se esfarolar.
O casamento realizou-se quase
sem pompa, mesmo apagado, muito sumido.
As críticas citadinas optaram
pelo mutismo para que no meio de algum louvor a pena ou a língua não
escorregasse e fugisse para uma reverberação.
O industrial não se conformava
e dizia para com os seus botões: "tempos modernos, tempos modernos!
O casal que antes do nó que os
unira para sempre, para os bons e félicos momentos,
tinha pensado em passar os primeiros dias de felicidade em Cabo Verde, mudou
de opinião e vá de voltar a ideia para a Europa e nela se entranharam.
Beatriz, que se contivera durante
todo o tempo que meneou entre a sua chegada e a partida do ditoso par, não
se susteve por mais tempo, logo que os sentiu longe, as lágrimas rolaram-lhe,
aos pares, pelas magníficas faces torradinhas pelo Sol profundo dos trópicos.
" Sou muito infeliz, hum,
não posso suportar mais esta vida!" — E agora mais uma assoadela, agora
mais uma limpeza das bochechas sem quaisquer pinturas, agora um soluço abafado,
ia aumentando em ebulição, pensando o rumo de vida que iria tomar.
Tinha feito dezoito anos durante
todas estas andanças e pedira para se emancipar. A mãe, no delírio que dá
a felicidade nupcial, anuíra e dera-lhe a sua autorização.
Deixaria a casa que durante dezoito
Primaveras a vira crescer em sensibilidade e beleza e iria viver ainda não
sabia para onde, mas iria.
A resolução firme e patética estava tomada.
"Naquela casa não podia ficar
mais tempo. Ali, nunca! Ficar debaixo do mesmo tecto que... não, não, nunca!
Pensou no avô, no desgosto que o
afável velhinho iria ter, mas, o seu eu refractário a pieguices familiares
arrancou-a da fraqueza que por certo se deixaria possuir com o perigo de poder mudar de ideias.
O rendimento da herança, que ainda
não tinha bem sabido explicar como a recebera, era de noventa e tal contos
por ano. Como se emancipara, podia já levantar os do ano passado para as primeiras
despesas e, depois, ordenaria que lhe fizessem os pagamentos directamente.
Se bem tudo pensou, melhor o fez.
Aproveitou uma saída do avô para o Alentejo e vá de se mudar com armas e bagagens
para Caxias onde arranjou uma pequena casa quase sobre o mar, para poder sonhar e carpir as suas mágoas enquanto novo amor, secreto,
mesmo tão platónico como tinha sido o primeiro, sem contudo ter deixado de
ser bastante intenso, mas tão sem maldade que o tinha perdido, viesse.
"E tanto que tinha estudado!
Quando se lembrava disto sorria
e dizia: «ainda há males que vêm por bem».
O arranjo da casa, as compras a
fazer, o pagamento dos contadores da água, da luz e do gás, os contratos a
assinar fizeram-na esquecer em pouco tempo as arrelias recalcadas e a todo
o momento dizer na mesma linguagem que o pai empregara há vinte anos: “Vou-me
divertir, vou-me divertir e há-de ser à grande e à francesa. Quero que todos
tenham muita saúde, mas que não pensem em me demover destas ideias”.
Terminadas as compras, completadas
com um pequeno carro, dispôs-se a enfrentar e a arrojar candidamente com as
surpresas que a vida a todos apresenta, mesmo até aos muito, muitíssimo calejados
e aos que já levaram muito pontapézinho.
A inexperiência levou-a a começar
pelo divertimento trivial; o cinema, e aí passava as suas tardes, vendo fitas
boas e más e apreciando sobretudo a multidão que a rodeava e para a qual antes
nunca voltara o pensamento.
"Porque fumarão as pessoas?
Algumas, por vício, outras, outras, talvez por pedantismo e outras ainda,
para darem algum movimento às mãos e aos lábios quando estão sozinhas e entranhadas
na multidão, sem saber como hão-de reagir perante uma assembleia que não lhes
liga nenhuma importância, mas a qual, eles pensam, tem toda a sua atenção
concentrada neles próprios.
"No mundo, haverá na verdade
uma necessidade imperiosa de um povo combater outro?" Não, sem sombra
de dúvidas que não havia. Por ventura, esse povo, ávido do que é dos outros
tem o seu território de tal maneira bem organizado, vivendo cada um dentro
dele bastante feliz que se expande somente porque precisa de mais espaço vital
ou simplesmente por concupiscência? Sim, só por inveja, por «se ter mais olhos
que barriga» se pode fazer uma guerra. Porque, mesmo faltando espaço vital
a um país, os seus naturais podem procurar nos outros países riqueza e depois
regressarem para viver os últimos dias felizes, na medida do alcance da felicidade
na sua terra de origem. Não, a guerra não tem explicação plausível.
Ao fim; de alguns dias já estava
ficando saturada do mundo que a envolvia, do seu falar alto, parecendo que
em cada grupo, alguém se estava querendo fazer ouvir nos outros, numa falta
de polimento que a começava a indispor.
No último dia em que, por ter visto
todos os cinemas da capital tinha pensado visitar cabarés; no raio telepático
e introspectivo, assestado no intervalo do filme, apareceu um rapaz de estatura
mediana, pele bronzeada, olhos muitíssimo escuros e cabelo meio encaracolado.
O olhar fixo de Beatriz serviu de magnete sem ela quase se dar conta.
— Menina sozinha precisa
companhia.
Beatriz estremeceu dos pés à cabeça,
fora certamente longe demais no estudo e aí estava o resultado.
Tinha-lhe somente querido analisar
o intelecto e a maneira como ele encararia a vida, sendo homem; mas, afinal,
era bem giro exteriormente.
— Posso saber o seu nome?
Olhou-o novamente, sorriu contente por sentir alguém interessar-se por ela e continuou
sorrindo com rosto franco e simpático.
Era um incentivo e o jovem
prosseguiu:— o filme está mauzinho, não está?
- Hum,
- fez Beatriz encolhendo os ombros.
— Eu digo que por fim acabam por
casar, não pensa?
— Não sei, talvez não.
A conversa estava pegada, o
mudarem de lugares para dois dedos de paleio durante o filme, em voz
sussurrada, foi um ápice.
Saíram juntos e com as
apresentações feitas.
— Tem onde ir?
— Eu? — Pergunta escusada e que
denuncia imediatamente o principiante em assunto de saias.
— Sim, você. Não há mais
ninguém.
— Desculpe, sou um distraído
medonho.
- Não; não tenho onde ir, estou
fazendo matrícula e ainda não tenho nada para estudar.
— Que curso vai seguir?
— Medicina.
— Faz bem. Nós estamos mesmo
muito mal de médicos. E gosta?
— Penso que sim. Na roça, quem
servia de endireita às cabras que se aleijavam
era eu e todas saíam certinho.
Aposto que é Cabo-verdiano.
— Sou.
— Não tem sítio algum especial
para onde ir. Verdade?
— Verdade,
ia somente jantar, mas posso muito bem ir para outro lado. Não tenho contas a oferecer seja a quem
for, estou livre.
— Então vem, comigo.
Artur já tinha ouvido falar muito
das extravagâncias e das coisas mais absurdas que podiam acontecer nesta capital
de Sol, pequenas elevações, praias e monumentos de toda a espécie. Contudo,
não esperava começar assim a sua entrada.
O pai tinha-lhe dito: «Vais aprender
muito, vais saber a valer do teu trabalho porque encontrarás em Lisboa professores
competentíssimos e também, bastante exigentes. Porém, não só aprenderás isso,
mas serás tentado a aprender muito da vida. Não te quero dar conselhos, neste momento; já o fiz quando eras mais novo, agora
vais entrar na faculdade e aprender à tua custa, saberes-te defender e compreenderes
o mundo. A tua idade é outra e o teu mundo passará também a ser diferente.
Vais ter oportunidade de pôr à prova aquilo que vales. Se conseguires vencer,
a vitória foi boa, porque a alcançarás com o teu próprio esforço e sem a ajuda
de ninguém. Se voltares derrotado e desiludido tens muito recanto para meditares
nas desilusões e ilusões e em tudo o que viste e ouviste.
Vai e usa sempre a cabeça e o
coração. Nunca desligues muito a primeira do segundo.
— Nestas idades e mesmo nas
outras a grande maioria das vezes o coração é mais potente e, aí estava Artur
pensando o que se iria passar com aquela morena de aparência tão simples e com
um olhar tão doce.
— Emudeceu?
— Não, não, estava a pensar,
desculpe, tudo me parece um sonho, vou e vou com muitíssimo prazer.
— Entre.
— O carro é seu?
— De quem havia de ser? Leia.
— Beatriz Azeredo Barbas.
— Bah!
Sempre está resolvido ou tem medo.
— Medo? Sim, tenho receio da
felicidade, medo de cair das nuvens, de acordar de um momento para o outro e a
ver desaparecer. Porém, sonho ou não, o caminho é para a frente, vamos.
— Por acaso acertou, vamos para
Caxias. Conhece Caxias?
— Não.
— Pois vai conhecer e gostar.
— Tem mar à frente?
— Tem.
— Então gosto e gosto bem.
— Vai lá jantar comigo. Certo?
— E seus pais que dirão?
— Quem lhe disse que eu tinha
pais?
— É normal.
— Pois é, mas eu estou sozinha.
— Sozinha!? Claro que aceito —
cada vez entendia menos de tudo, mas o momento não era para hesitações.
— Chegámos.
— Foi rápido.
— Feche a porta e despache-se pois tem muito que trabalhar.
— Gosto de tudo.
— Fazemos umas salsichas, uma omeleta,
batatas fritas e salada de alface; vinho tinto, fruta e café.
— Bem, muitíssimo bem.
E Artur começava a descontrair,
a fazer uns passos de dança cheios de contentamento.
— Está satisfeito?
— Muitíssimo, imensamente feliz.
— Vá lá dentro à salinha e ponha
o giradiscos a trabalhar, ponha o que quiser, há discos para todos os gostos.
Vasculhou a pilha enorme de gravações
porque lhe cheirava a existência das mornas que lhe fariam completar aqueles
momentos felizes, com melodias que lhe lembrariam as suas ilhas. Não se enganou,
lá estavam e em quantidade. Quando os viu, olhou para a porta para se certificar
que a anfitriã não estava, agarrou os discos, colocou-os junto do coração
e a seguir beijou, com os olhos rasos de lágrimas, os cartõezinhos que encerravam
um pouco da sua terra. Carregou a maquineta só de música do arquipélago e
toca de ir para a cozinha.
— As batatas estão aí. Não há
criada.
— Eu descasco.
0 som
dolente, nostálgico convidando ao amor e ao sonho começou enchendo o ar.
No fim do repasto, olhos
brilhantes nos olhos, coração bac, bac, bac, vá de voltar os discos
e baile à meia luz na salinha de estar.
A poesia caboverdiana
começou a crescer, a crescer e Beatriz via-se sem forças, sem descortinar
como reagir.
— Artur.
— Beatriz.
— Vamos ver o luar e o bater das
ondas nas rochas.
— Só mais uma voltinha Bea.
— Não, Artur.
E, sem o entristecer, aos poucos,
foi-o encaminhando para o ar fresco da noite, naquela varanda iluminada pelo
luar.
Braço sobre o ombro, apertando-a
de mansinho contra si, Artur, estava louco de indecisões
— Beatriz.
— Artur.
As faces ardentes, afogueadas,
brotando desejos e pedindo carícias teimavam em aproximar-se e faziam-no quase
a medo, temendo talvez que um ou outro, dois saudáveis inexperientes, desistisse
daquela dádiva que se ofereciam mutuamente no primeiro encontro de cada um
e com a simplicidade e a timidez com que se comete a primeira má acção; os
lábios tocaram-se como nos filmes que tinham presenciado, mas sem quaisquer
variações porque ambos estavam verdes e eram simples.
Nova insistência labial e o
luar, as ondas e o mar e os olhos, e os cabelos dos amantes, sãos, puros e bons
entrechocavam-se, misturavam-se, uniam-se, sentiam-se bem. A febre, a febre da
grande amizade avassalava-os, os braços de Artur fechavam-se em torno da frágil
Beatriz e Beatriz anichava-se no seu Artur.
O amor seria aquilo? O verem-se, olharem-se, o continuarem por aí fora
sem tento nem tino? Sem se conhecerem, sem antes nunca se terem visto, sem
protocolares apresentações. Seria aquilo o amor?
Era, era pelo menos o princípio de uma grande amizade.
O amor é a juventude, o amor é
o pulsar de almas em botão e depois em flor, o amor é o raiar da manhã primaveril
e o entardecer de brumas esbatidas de nuvens em farrapos mas rubras, muito
rubras, do cansaço final do Sol na despedida, e num arranco de potência e
de vida.
— Artur!
— Beatriz amor, Beatriz ternura,
Beatriz doçura, Beatriz, Beatriz!
—Artur.
— Beatriz.
—Onde vives?
— Aluguei um quarto no Campo
Grande
— Já alguma vez tinhas vindo à
magnífica?
— Não, nunca tinha vindo a
Lisboa.
— Já...
- Diz.
— Já alguma vez tinhas beijado
alguém?
— Não. E tu?
— Também não.
— Estamos quites. Mas porque
vives sozinha?
— São histórias complicadas.
Queres cá ficar em casa?
A pergunta feita de chofre deixou-o
embatucado.
— Eu?
Parece-me que continuamos só os
dois.
— Mas...
— Mas se tens receio, não
aceites e então ponho-te em casa num instante.
— Já?
São quase duas horas.
— Fico, minha querida, fico.
Dizendo isto, mãos nos ombros,
faces iluminadas de felicidade e um beijo suave selou
o pacto.
— Escuta. Tenho dois quartos voltados
para o mar e outros que deitam para o pinhal, escolhe.
— Fico num voltado para o mar,
se não te importas.
— Não, nada mesmo, o outro é o
meu.
Outra olhadela de cumplicidade e
um beijo mais forte.
Como duas crianças crescidas que
ainda eram, resolveram fazer o regulamento da casa para fazer face ao que desse
e viesse e evitar possíveis complicações.
«Não haveria criada.
A mesada de Artur entrava para
as despesas.
Faziam o serviço ajudando-se mutuamente.
Prometiam ser os melhores alunos dos respectivos cursos.
O levantar seria às sete e o
deitar às onze da noite.
Nunca podia haver discussões.
A grande amizade seria traduzida
só em beijos, olhares e alguns chis coração.
No fim do curso casariam caso ainda
perfilhassem as mesmas ideias.
O que ultrapassasse as marcas e
não respeitasse o combinado, o desfavorecido seria Artur que iria para a rua
com os trapos com que entrara no prazo de quarenta e oito horas»
Assinado e aprovado o
regulamento, beijo de despedida e cada um para o seu quarto.
— Artur.
—
Sim.
— Como hoje não tens cá pijama
empresto-te um dos meus.
— Havia de ser bonito! Pensas
que estamos no Carnaval?
— Assim não ficas bem. Olha que
te servem.
— Mas não quero. Obrigado e
adeusinho, até amanhã.
— Abre a porta.
— Já estou despido.
— Abre só uma fisga.
- Aí vai. Hope!
— Com pijama ou sem ele,
terminou ali a primeira noite que tinha principiado e findado tão patuscamente.
XIII
Quando D. Leonor voltou da viagem pela Europa, ao ser-lhe contado o que a filha tinha
feito, teve um forte ataque nervoso que a deixou prostrada durante alguns dias.
— Mas meu pai, não fez nada?
— Fiz minha filha, fiz, mas perante
as decisões de que estava animada, resolvi deixá-la em paz e esperar que tu
viesses.
— Temos que solucionar este
assunto e sem delongas. É uma vergonha terrível. Que dizem os nossos
conhecidos?
— Que dizem? Eles não podem
atirar pedras. Também têm filhos e tu sabes bem como eles são agora.
— Mas Beatriz?
— Beatriz é desta geração, é
deste século atómico e reage como ele. É uma geração plena de partículas, sem
se lhe conhecer ainda verdadeiramente a sua potencialidade e até onde poderão
chegar sob o signo dessa poeirada composta de átomos.
— Pobre filha, não tinha motivo
para fazer o que fez.
Ai recordações, recordações.
— Por mais que insistisse para
que me dissesse porque tinha dado tal passo, respondeu-me
só: «Porque atingi a minha maioridade». Mas isso não é razão suficiente, rebati.
Contudo, não acrescentou mais nada e pediu-me para não insistir, em virtude
de não ter quaisquer tenções de capitular sobre qualquer pretexto.
— Oh pai, pai!
— Tem calma, tem calma. Sabes bem
que tua filha nunca mentiu e eu acredito-a plenamente.
— Mas conhece o ditado: «Estopa
ao pé do lume, não tardará a arder.»
— Ela tem cabeça.
— Mas ele,
será atilado?
— É, é. Pareceu-me um esplêndido
camarada para Beatriz.
— Mas que dirão de tudo isto as
pessoas que nos conhecem e mesmo as que não nos conhecem, mas que certamente
sabem do que se passa. Porque estas notícias voam. Não é exemplo a aconselhar
e eles estão dando um péssimo.
— Filha, deixa pensar o que quiserem.
Quanto ao imitarem, é mais grave, mas espero que os jovens não caiam nessa tontaria porque o que estão fazendo pode sempre
dar mau resultado; porém, Artur pareceu-me ser um amigo verdadeiro de tua
filha.
— Como é ele?
— É cabo-verdiano como teu
marido.
— Oh pai, pai! Beatriz em pouco
tempo dará uma cabeçada, uma grande cabeçada e não haverá remédio depois.
— Tenho a promessa de ambos, o
regulamento que os rege, e a sua inabalável decisão de não cederem perante
quaisquer pressões.
D.
Leonor examinou atentamente o panfleto que o pai lhe mostrou e abanou a cabeça.
— Verá que ou casam no tempo
marcado ou se aborrecem um do outro. Conheço isso por experiência própria,
perdoe-me que lho diga, mas o temperamento exótico dos cabo-verdianos, por
vezes, faz com que o norte desnorte.
— Está descansada, ele é bom
rapaz, e ela é a rectidão personificada e herdada do pai.
Não temas nem por um nem por
outro.
Nas horas em que o estudo os não
aperta, agarram no carrinho e vão visitar algumas casas de pobres. Por sinal,
contaram-me uma parte bastante pitoresca ainda que não seja para nosso regozijo
e que nos leva a pensar que temos ainda muito que fazer até atingirmos um bom
grau de civilidade.
Numa dessas visitas, tratava-se
de um casal que tinha sido há pouco deslocado de uma barraca de madeira para
uma casa pré-fabricada e oferecida pelo Estado a indivíduos em péssimas
condições de alojamento.
Sabes qual foi a serventia que
deram à banheira da casa de banho? Adivinha.
— Não faço a menor ideia.
— Uma salgadeira.
— Uma salgadeira? Não, não é
possível.
— Podes acreditar. E com
presuntos e com bons pedaços de toucinho.
— É inacreditável.
— Pois é. Casos destes, começam
a ser felizmente raros, contudo, ainda aparecem se bem que esporadicamente.
Indivíduos que só se lavam
quando lhes dão banho forçado ao nascer, quando vão às sortes e quando se casam.
Para que querem eles aquele
espantalho que está ali na retrete? E vá de lhe dar qualquer utilidade. Neste
caso foi o da salgadeira.
— E cheirosa com certeza.
— Sabes bem que barriga de pobre
não conhece mau pão.
— Oxalá que não se engane.
A que horas
posso encontrá-los em casa?
— À noite, depois das sete é a
melhor hora.
Passados dias, D. Leonor foi
visitar a filha.
Encontrou uma sala de estar,
transformada em sala de estudo com livros espalhados por todos os cantos.
Beatriz tinha esquecido completamente
a dor que sua mãe, involuntariamente, provocara e lhe fizera dar tal passo.
Se não lhe tinha telefonado foi porque não sabia da sua chegada.
— Minha filha!
— Mamã!
— Como estás bonita!
— Mãe, Artur.
— Muito prazer.
— Sente-se, sente-se e deixe ver
o casaco.
A conversa entre os três, demorou algumas horas; falaram de tudo, inclusive da viagem de núpcias.
— Tivemos um tempo estupendo. E
que cidades e que povos! Tudo alinhado, cada um parecendo saber bem o que
deseja; uma maravilha, uma maravilha!
Mas Portugal é sempre Portugal,
meus filhos. Podíamos ter ficado ainda mais tempo, mas não resistimos a esta
saudade, a este amor que lhe temos. Tudo é muito bonito, toda a Europa é beleza,
porém, Portugal, parece ser urna síntese, parece ser uma condensação de todas
as belezas europeias num pequeno país.
A variedade de província para província
ora nos faz ver a Suécia como a Holanda como a Inglaterra, em resumo, como
todos os países da Europa. Nele, temos um apanhado de todas as paisagens,
apresentando-se ainda mais realçadas por causa do nosso Sol.
Gostei muito de Copenhague e de Amsterdão, mas Lisboa! Incomparável! Podem ter a certeza que
capital, ou cidade como a nossa, não encontram na velha Europa por mais que
procurem.
Depois de muito falar sobre a viagem, sobre o que viu, sobre o que observou, sobre o que
comprou, para preparar o terreno, para dizer à filha que havia de ir lá a
casa para ver todas as recordações daquela enorme volta, tentou convencê-la
a regressar de novo ao lar, mas tudo foram esforços baldados e nada conseguiu.
Prevendo uma melhor solução noutra
altura, fez todos os esforços para terminar aquela visita sem se exaltar na
esperança de melhor oportunidade.
Não aceitou que a filha a fosse
levar no seu próprio carro, mas sim que o motorista a viesse buscar.
Chegou a casa banhada em lágrimas,
lágrimas magoadas, sentidas, lágrimas de mãe falhada e que a poderiam tornar
em poucos anos bastante mais velha.
Lamentou-se profundamente. Tinha
ganho um marido, bom, compreensivo, bastante meigo, mas o destino para se
cobrar deste bem-estar, tinha-lhe feito perder a filha que criara com tanto
amor, por quem tinha sacrificado a sua vida e a sua juventude, pondo de parte
quaisquer divertimentos que ela não pudesse ir.
"Que paga os filhos dão. É
a era atómica como diz meu pai. Hoje, estão muito bem, muito meigos, muito
carinhosos e pensando de uma maneira coerente e razoável. Amanhã, dá-lhes
na bolha e desaparecem; julgam poder viver por eles
próprios.
Que desgraça me veio com a herança
recebida. Que desgraça! Se não a tivesse, Beatriz nunca se teria abalançado
a sair de casa, a arrostar os perigos da vida, a ter de ganhá-la. Assim não
precisa, ou pensa não precisar
seja de quem for. Vive dos rendimentos e como sempre soube gerir bastante
bem o dinheiro que lhe davam, muito melhor saberá agora administrar o seu.
Que desgraça! Oxalá que não faça alguma que me envergonhe ainda mais. Mesmo
assim, devem dizê-las lindas. E eles não fazem nada de mal!
Nos seus colóquios íntimos de
mãe dorida, desculpava-os e perdoava-lhes os danos morais
que lhe davam e desejava ardentemente vê-los completamente felizes.
" Tenho que ir às respectivas
faculdades e saber como andam eles, não podem reprovar ou ter sequer más notas.
Ah, meus filhos, meus filhos! Que ralações!
Os dias, os meses e os anos
foram passando.
A vida entre os dois pombinhos
corria às mil maravilhas e, como óptimos alunos que eram, se ao princípio
os colegas não lhes prestavam a devida atenção por saberem que levavam vida
em comum sem estarem casados, ainda que não conhecessem que aquele viver comunal
era somente traduzido pelo tecto que os cobria aos dois, umas sopas, muito
estudo e dois dedos de conversa. Uma vez por outra e para a monotonia não
chegar a transpor a ombreira da porta ensaiavam uns passos de dança.
A certa altura, os camaradas, levados
ou pela simpatia que ambos irradiavam ou pelo saber de que davam provas, começaram
a conviver com eles, e por último iam para Caxias onde estudavam quantos quisessem,
dividindo-se os de direito para um lado, e os de medicina para outro.
Quando, fartos de estudo, chegava
a hora de dois dedos de cavaco, a maquineta dos discos era ligada e um bailarico
com muita pouca luz, ou só ao luar, realizava-se sem qualquer maldade porque
todos compreendiam perfeitamente o verdadeiro sentido das palavras camaradagem
e amizade.
A fraternidade encontrava-se naquela
casa de mãos dadas e despojada da inveja mesquinha e do egoísmo de que alguns
indivíduos, apelidados talvez por engano de racionais, estão eivados. Quem
lá entrava, sentia isso, e o conhecimento era vivificador.
Nos últimos dois anos, estudantes
pobres de ambos os cursos enchiam os quartos de toda a casa. Ali dormiam,
ali estudavam, ali ouviam rádio, viam televisão ou dançavam. O regulamento
feito no primeiro dia tinha sido adoptado por todos e a amizade não era uma
palavra vã, nem absurda.
A corroborar a boa organização
e o método empregado para estudar estava patente neles mesmo, porque todos
os que lá viviam ou que frequentavam aquela casa, senão eram os melhores,
pelo menos cotavam-se entre os melhores dos respectivos cursos.
A formatura dos dois amorosos, foi feita com a média de vinte valores.
Os Professores que, de uma
maneira geral, andam muito acima dos grandes e dos pequenos problemas dos
alunos, já havia muito que os tinham notado e bem.
O convite para assistentes foi
feito primeiro a Beatriz pois o seu curso demorava menos um ano do que o de
Artur, e, assim, enquanto ele não o completou, aceitou o encargo de conduzir
jovens como ela; porém, no fim do ano lectivo, quando o amado terminou a formatura
foi também convidado para assistente, ela deixou o lugar porque, segundo as
suas ideias, a juventude não só necessita de professores competentes e conhecedores
das matérias como também de bons psicólogos, e ela não o era, como lhe demonstrara
a experiência.
Artur não era assim; à primeira
vista conhecia uma pessoa por dentro e por fora, psicólogo nato, sabia quando
alguém tentava sobressair, pedantear-se, ou mostrar
a sua fortuna ou pseudo-fortuna. Via num abrir e
fechar de olhos os trapaceiros, os foliões, os cábulas, e depois, com a voz
cantante das ilhas, tentava
Artur durante todos aqueles anos
não fora visitar a família, mas escrevia-lhe todos os quinze dias, pois
conhecia bem quanto prazer lhes causava com duas letras ali escritas em três ou
quatro minutos sem custo nenhum, que para o pai e para a irmã representavam um
grande contentamento.
O seu pensamento justo e amante
da família era: se todos nós assim procedêssemos sempre, pais e filhos compreender-se-iam muito
melhor, mesmo estando muitas léguas afastados.
Quanto é fácil escrever e quanto
é bom sabermos que causamos alegria a alguém!
Em concordância com Beatriz, resolveram
apressar o casamento para o mais curto espaço de
tempo possível, mas pensaram antes, dar uma saltada até ao Arquipélago para
comunicarem a boa nova aos familiares de Artur, que não conheciam aquele idílio.
Participaram a D. Leonor, que com
três filhos nascidos em sete anos de casada, a fizeram esquecer um pouco os
cuidados que a filha mais velha lhe causara em tempos. Anuiu imediatamente
e suspirou aliviada por poder finalmente levantar
a cabeça, conforme desabafo seu.
Ficou então assente que o casamento
se realizaria em Lisboa, depois de regressarem de Cabo Verde onde iam tentar
convencer a família de Artur a deslocar-se à Metrópole para o casamento, o
que, no entanto, ele julgava difícil.
XIV
O pai do mocinho, a despeito de
todas as expectativas, não estava no cais esperando os noivos.
— Eu não te dizia? Meu pai procede
sempre assim. Bastante terra a terra, ainda que ande sempre com o olhar nas
nuvens.
- Por que se havia de incomodar
a mandar-nos esperar ou a vir ele próprio se sabe perfeitamente que nós o
vamos visitar, o vamos ver, o vamos amimar durante um ou dois meses?
- Sabes qual foi a resposta que
mandou quando lhe escrevi a dizer que tinha passado?
— Não.
— «Não fizeste mais que o teu dever».
Sobre os vinte valores foi um pouco mais expressivo: «Parabéns, orgulho-me
de ti».
Falava pouquíssimo e quando abria
a boca era para me dizer: «Olha que isso não se deve fazer por isto assim,
assim, daí advém, estas consequências e aquelas, contudo faz o que entenderes».
Mas, caturro como sempre fui, a despeito dos seus
avisos, fazia sempre aquilo, que antes tinha pensado e normalmente resultava
uma queda desastrosa em que ficava bem amachucado e da qual me lamentava depois.
Mas era engraçado, nunca tinha vergonha.
Penso que em miúdos somos todos
iguais quando crescemos ou divergimos para o caminho recto ou para a má conduta.
«Eu não te tinha avisado?» Não,
eu aprenderia por mim, são os trambolhões na vida que nos fazem espevitar,
e, sem eles, ela deixa de ter talvez o seu verdadeiro sentido.
Se singrei em Lisboa foi bem por
aquilo que aqui aprendi e com os teus incitamentos. Foste um verdadeiro amor.
Tinha-me dito antes de partir:
«Olha que a tua mesada é de mil e cem escudos por cada trinta dias, arranja-te,
não tenho mais para te enviar, e são os anos de curso e nem mais um, porque de
outra maneira...» — e eu já sabia, tinha que me formar quer tivesse vontade ou
não. Mas tive, ou melhor, tivemos, não tivemos meu bem?
— Não ponhas dúvidas.
— Treze mil e duzentos escudos
por ano e nem mais um tostão. Nas férias que poupasse; com a barraca que tenho
e de que tantas vezes nos servimos com a outra tua, fosse acampar junto de
uma praia durante as férias de verão, onde não só apanharia a brisa do mar
bem saudável, como pouparia a renda do quarto. Felizmente apareceste tu, minha
querida, e hoje sinto-me contentíssimo por ter aceite
a tua oferta de vivermos como dois irmãos debaixo do mesmo tecto. Contente,
não só por ambos termos vencido como ainda porque demonstrámos uma força de
vontade excepcional respeitando-nos mutuamente.
Felizmente que o casamento está
somente a poucos meses e tenho a certeza de que nesse e nos outros dias e
eternamente te amarei com toda a minha força.
— Também eu Artur. E desejo esse
maravilhoso momento com tanta ansiedade como tu. Amo-te tanto!
— Minha família vai adorar-te,
mas já sabes; amar-te-ão à sua maneira, meu pai dizendo só o essencial. Minha
irmã, essa é uma tagarela e tem corda para todo dia.
— Estou certa que os hei-de
amar.
— Como eu os amo. Dois feitios
completamente opostos, mas muito amigos.
Não sei se te ferirá a maneir como
meu pai e minha irmã lidam com os criados. Lá em
casa, empregados e patrões são tratados de igual para igual e nunca ali há
uma mínima falta de respeito. Tu terás ocasião de observar.
— Podes estar descansado que não
me admirarei. Fui habituada a olhar todos da mesma maneira e coisa alguma
me choca; entristece-me sim ver o pedantismo com que alguns seres, meio analfabetos,
desprezam os seus semelhantes; agora o contrário até me faz bem, leva-me sempre
a pensar em mim própria, e naquilo que eu poderia ser, se tivesse nascido
com igual falta de recursos.
Além disto, o que me faz pena é
a falta de educação das pessoas, o não saberem agradecer gentilmente e de
sorriso aberto um lugar sentado num autocarro ou um favor que se fez sem qualquer
interesse.
— Para minha família, a educação
tem sido a base fundamental para um bom entendimento entre eles e os trabalhadores.
E quanto a igualdade terás ocasião de olhar imensas vezes os problemas que
deviam ser o pensamento dominante de quem dirige a escalada social com o sentido
justo de a fazer rápida, mas ponderadamente, para não se sair de um erro e
se cair noutro de idêntica gravidade, o de tapar buracos atabalhoadamente
que a ninguém aproveita, pois mais cedo ou mais tarde se chega à conclusão
que foram simples obras de fachada.
— Estou ansiosa por chegar e
todos conhecer.
— Em três tempos estamos lá.
A viagem,
pouco mais demorou que meia hora, uma meia hora de recordações tanto da parte
de Artur, que conhecia a ilha a palmos, como de Beatriz. que
por ali andara quando da peregrinação que fez com o avô.
O pai do moço, se não os fora esperar
ao cais, parecia pelo menos aguardá-los à porta de casa, e, quando os viu
aproximar, foi em aparência calma ao seu encontro, embora o rosto o traísse,
o olhar aceso, brilhante, tentando a todo o custo disfarçar o nervosismo de
que estava possuído, calcando-o em grandes passadas, passadas sem ritmo, barulhentas
pelo estalar dos calhaus debaixo dos pés e que denunciam algo de anormal.
Abriu os braços para os receber
mais junto do coração:
— A minha futura nora!?
— Penso que sim.
— Pensa? Então não tem a
certeza?
— Neste mundo de mudanças contínuas
nunca poderemos ter a certeza absoluta seja do que for. Ainda não estamos
casados!
— Mas estarão em breve.
Sentados em cadeirões, olhando
o céu, o mar e a vegetação luxuriante que os rodeava, contaram minuciosamente
tudo quanto tinham passado e presenciado durante aqueles poucos dias, fazendo
um cruzeiro marítimo com dois portos de escala.
Nos dias seguintes, o pai de
Artur, contra os seus hábitos, tornou-se um conversador notável.
— E, minha filha, que a levou a
sair de casa de seus pais e a arranjar moradia em Caxias?
— De meus pais não. De minha
mãe, meu pai faleceu alguns dias antes de eu ter nascido e passado algum tempo;
segundo o que ouvi contar à mãe fomos morar com o avô.
— Sabia onde moravam seus pais
nessa altura ou por acaso nunca ouviu falar em tal?
— Para lhe ser franca, não me recordo.
- Mas que a levou a sair?
- Bem, senhor Vítor Manuel. Depois
de minha mãe voltar a casar...
— O quê, sua mãe voltou a casar?
— Casou sim. Ouviu falar nela ou
em meu pai?
— Por favor, continue, continue,
estou simplesmente ligando ideias.
— Depois do casamento, como ia
dizendo, não tive coragem de ficar em casa e fiz o que fiz.
— Ainda que desaprove o
procedimento, neste caso, penso que fez bem.
— Aprova!?
— Aprovo, melhor não aprovo, mas
neste caso, concordo.
— E concorda porquê? Perdoe-me a
minha insistência.
— Um dia mais tarde o saberá, no
entanto, se infelizmente for o que penso, contar-lhe-ei: pode estar descansada.
A conversa, ficou por ali naquele
dia, sem Beatriz ficar mesmo nada descansada. Era atraída para o futuro sogro
como se algo a fizesse caminhar sem querer na sua direcção. Parecia-lhe já
o ter visto; não sabia bem onde e se há muito ou pouco tempo, mas tinha quase
a certeza que o vira algures
" Tem um rosto tão simpático,
tão bondoso e tão triste que até faz pena nas pessoas. Mas por outro lado,
parece uma tristeza que não nos magoa e que nos faz
sentir bem. Não compreendo como o bem ou mal-estar de outro ser, tenha tal
influência em nós próprios. Sim, sim, compreendo., já compreendi, é tal e
qual como contribuirmos um pouco para a felicidade de outrém,
parece que também beneficiamos, é tal e qual a mesma coisa! Não me podem restar
dúvidas.
Em outra ocasião, durante uma curta
conversa, numa altura em que também divagando por entre toda aquela verdura
da ilha de Santiago o encontrara num penhasco com ar meditativo, talvez pensando
em tempos felizes já há muito passados, encetou diálogo:
— Aqui sozinho?
— Bons dias.
— Bons dias. Por aqui a esta
hora matinal?
— É verdade, gasto-me por estes
sítios todos os dias um pouco. É o meu ponto favorito; deste alto vejo terra
e mar, aqui é o meu poiso predilecto quando quero pensar no país que deixei há tantos, tantos anos e que
me rói de saudades. Não sei por quanto tempo mais serei capaz de ficar, ou
se serei capaz de partir.
— Não me diga que é
metropolitano.
— Sim, nasci em Portugal.
— Mas o senhor está na mesma em
Portugal, vivendo nesta maravilhosa ilha.
— Eu sei minha filha, mas
compreende, por exemplo, que, uma pessoa de Lisboa e que vive em Penamacor,
ambos na Metrópole, de tempos a tempos gosta de ir matar saudades a Lisboa ou
vice-versa.
— Penamacor!
— Sim Penamacor, ou Sortelha, ou
Carrapichana ou outra terra qualquer.
Pelo caminho, a conversa mudou
de rumo e falou-se de tudo menos do que no espírito agitado de Beatriz se ia
formando.
O carreiro era estreito e
inclinado; por esse motivo, fizeram o trajecto em escassos minutos.
À porta de casa estava Artur.
— Pensei que tinhas fugido aproveitando
o romper da manhã, bela madrugadora.
— Sabes que é impossível
deixar-te.
— No mundo não há impossíveis,
pode haver dificuldades, alguns escolhos, mas tudo é vencido, tudo é ultrapassado
pela vontade das pessoas.
— Porque te tinha a ti.
— Comigo ou sem mim, conseguias
na mesma lutar e levar a tu avante.
— Oxalá que sejamos sempre
assim.
— Seremos.
— Tens a certeza?
— Como a de ter nascido, já nos
conhecemos há tanto tempo!
Ao terminar qualquer conversa,
o pensamento de Beatriz rodava sempre para o mesmo «Penamacor-Lisboa».
"Porque teria o pai de Artur ter falado logo na terra, que um acaso a
fizera conhecer em circunstâncias tão estranhas, como fora o testamento inesperado,
o saber somente naquela altura que o pai era de lá e que vivera com aqueles
simpáticos velhinhos que a tratavam por neta, que tinham enchido o carro de
produtos de campo, lhe tinham dito que a quinta que agora era
deles, depois passaria para ela, e finalmente o poder viver fora da tutela
da mãe.
Em dias sucessivos, tentou
encontrar o futuro sogro, mas por um acaso ou por outro, sempre se viam só à
hora do almoço e do jantar, quando toda a família estava reunida.
Mas «Quem porfia mata caça».
— Senhor Vítor Manuel.
— Bom dia,
continua madrugadora pelo que vejo.
— Está uma manhã esplêndida,
segundo penso vamos ter chuva pela certa.
— Como sabe?
— Já me habituei a não me enganar.
Deste modo, quando o meu pensamento é: Chove!, O
ansiado fertilizante aparece como por magia.
— Sempre foi assim?
— Não, em outros tempos, as
minhas dúvidas transformavam-se em certezas e depois em desilusões.
— O senhor Vítor Manuel, sofreu certamente muito.
— Se sofri!
— Mas acredita na vida eterna.
— Leia o que está gravado
naquela pedra e dê-lhe a explicação que melhor entender.
Beatriz leu:
«Não sei se existe Deus.
Não sei se É ideia ou forma
Ou se nada É.
Mas Seja ou não Seja,
Sei que O imagino e O respeito.
Porque, não sendo, É
Na minha idealização;
E porque É,
existe
Só em mim, que O vejo bom e
justo
Sem alguém que O possa
corromper.
Se É nada, É tudo.
E se não É, devia Ser.
Porque eu O penso,
Ou eu O
criei.»
1935—V.
M. B.
- Talvez seja assim.
— Talvez, minha filha. Nós nunca
temos a certeza de coisa alguma antes de ela se revelar completamente.
— Permita-me outra pergunta.
—Diga, diga.
— Por que vem o senhor para os
pontos mais altos e passa aqui as manhãs e as tardes, até ao lusco-fusco?
— Eu procuro minha filha, procuro
a verdade da existência no meio de estes seres mudos, depois de estar cansado
de a procurar no meio dos racionais. Procuro a explicação do mundo e a possibilidade
de encontrar o princípio Motor que me faça chegar a um fim.
— Mas há muitos anos que aqui
está?
— Há bastantes. Primeiro, percorri
o mundo antes de aqui chegar.
— E que encontrou?
— Nada. É triste dizê-lo, mas é
verdade.
A devassidão e a falta de
entendimento entre as pessoas faz que existam ainda
grandes desníveis difíceis de aplanar.
O pedantismo das nações, fá-las
especializar homens, verdadeiros sábios do mal, que inventam sempre, e cada
vez com maior potência, fontes de extermínio de outros homens e por um reverso
da medalha o extermínio deles mesmos.
Ninguém pensa quão supersónica
é a vida, e que não interessam nem invejas nem ódios, já que o fim é rápido
e, com ele, nada podemos levar: o que ganhámos honradamente
ou o que roubámos.
Se as pessoas pensassem nisto,
muita miséria se evitaria. A longevidade lúcida seria a base das suas
descobertas, o aproveitamento dos outros planetas seria profundamente estudado
e o paraíso mitológico ou verdadeiro que nos habituámos a idealizar, seria uma
realidade criada pelo homem.
Ainda nesse dia Beatriz não conseguiu
saber o que o levava a procurar sistematicamente aquele estranho de olhos
muito azuis e de falas ora rudes ora suaves.
Os tempos continuaram correndo e
a altura do casamento aproximava-se a passes largos.
Um dia, sem Beatriz esperar.
— Quer dar um passeio?
— Estava aguardando alguém que
me convidasse.
— Então...
— Vamos — mas o coração batia-lhe
desordenadamente, parecia que as pernas não a queriam deixar andar, vergando
a todo o momento; lá foi fazendo do fígado coração e pedindo com toda a intensidade
que as forças a não abandonassem..
O Sol apertava e a lassidão
apossava-se dos seres viventes.
Vítor Manuel e a nora, ombro a
ombro, sem dizer palavra, pareciam estar ambos carregados de montes de
problemas que os emudecia.
Terreno e terreno foram passando,
olhando mar e Terra, Terra e mar.
— Alguma vez lhe falaram dos
avós de seu pai?
— Não, nunca. Só conheço os pais
adoptivos.
E Beatriz contou como os conhecera,
mas que, ao perguntar à mãe pelos avós verdadeiros, lhe tinha somente
respondido que tinham morrido pouco depois de o pai nascer.
— E nunca lhe mostraram
fotografias deles?
— Não, a única foto que temos é...
deixe ver, é a do irmão de meu pai que... se parece muitíssimo com o senhor! E
agora vejo, sim, de onde me parecia reconhecê-lo. A parecença é extraordinária,
embora muito mais novo.
— E se fosse eu mesmo?
— O senhor?
— Sim, eu. Desagrado-lhe como
tio?
— Não, nem por sombras! Tenho até
nisso muito orgulho e muito prazer.
Segundo me disseram, pareciam-se
extraordinariamente; e as fotografias que vi de um e outro davam uma certa
semelhança ainda que a do senhor tivesse sido tirada numa época que se adivinha
distante das do meu querido pai.
— Éramos bastante parecidos
tanto física como no campo das ideias. Ambos lutávamos com ardor por uma
melhoria de vida no mundo Português e ambos fracassámos, ainda que de maneiras
diferentes. Um, porque morreu, o outro porque não teve coragem de continuar.
Sabe, a grande maioria das pessoas,
quando começa a conhecer o mundo e vê como ele está torto, diz de si para
si e às vezes até para quem a quer ouvir: Para que me vou aborrecer e sacrificar
tentando endireitar o que está errado se isto não tem conserto? E como assim pensam e como a grande maioria é apologista
desta ideia, o pobre mundo continua na mesma ou pior.
Eu, ainda tentei lutar contra a corrente, mas fracassei e sinto-me um falhado.
Seu pai que estava imbuído dos mesmos pensamentos que eu e que certamente
conseguiria realizar algo de útil no seu campo, falhou do mesmo modo, porque
morreu e a morte é bem o falhanço total do homem e aquilo que lhe faz sentir
fundo o que ele é: nada, coisa alguma mais que poeira.
Por outro lado, ele conseguiu de
certa maneira realizar algo, pois não vergou enquanto foi vivo.
— Mas meu tio, meu tio!
— Sim, seu tio e contentíssimo
por vê-Ia e por a conhecer tão bela como é, e ao
mesmo tempo triste, muito triste, pelas preocupações que me traz.
— Pelas preocupações que lhe
trago?
— Sim, pelas preocupações e grandes
que carrega sem ainda sentir.
— Deixe-me contar-lhe um pouco
da minha vida e depois talvez me compreenda:
Seu tio não morreu. Depois de ter
procurado como já lhe contei, por todo o mundo a verdade e a justiça, veio
até esta pequena parcela de Portugal onde casou e onde teve estes dois filhos
que conhece.
Minha mulher que era uma crioula
lindíssima, depois do segundo filho, endoideceu e alguns anos mais tarde,
depois de muito sofrimento, morreu e deixou-me com estes encargos.
— Então nunca chegou a ser
feliz?
— Sim, fui feliz, tive uma visão
de felicidade na medida das possibilidades humanas. Minha mulher adorava-me e
meus filhos sempre me têm respeitado.
Antes de ser atacada de loucura,
nunca conheci dias tão suaves e tão bons neste mundo conturbado por guerras
e hipocrisias. A seguir sobreveio a desgraça e nunca, também, senti dias tão
terríveis.
Quando morreu, a paz voltou e
meus filhos são bem a luz dos meus olhos e o espírito bom da mãe que os gerou.
— Então agora é pelo menos um
pouco feliz?
— Era. Nada existe como o
casamento para nos fazer ser melhores. Só com ele o homem parece encontrar-se
completamente e o homem que não se case é sem dúvida um atormentado, um
infeliz, um insatisfeito, por maior bem que espalhe à sua volta.
— Mas disse: «era».
— Sim, depois que a conheci, depois
que soube que é a filha do meu jamais esquecido irmão, deixei de possuir o
pouco de bem-estar que me fazia crer feliz e sentir-me no campo oposto, ainda
que isso pareça uma falta de senso, pois o natural
seria sentir-me contentíssimo por a encontrar. Por este lado, estou sem dúvida
alguma contente.
— Mas fiz por acaso, algo que lhe
desagradasse?
— Não, nada fez que me desagradasse.
Parece-lhe estranho, não é?
— Mas tio, tem algo contra minha
família que o possa malquerer a minha presença, se nada fiz que o pudesse
aborrecer?
— Não minha querida filha, nada
tenho contra sua simpática família, no seio da qual meu irmão, segundo penso,
foi bastante feliz. E a si, sabe bem que a amo tanto como ao Artur ou à Maria
da Glória, porém...
— Hoje, sou eu a pedir-lhe para
continuar, por favor.
— Porém, não posso aceitar com
bons olhos que Beatriz e o Artur, os quais amo como se fossem ambos meus filhos,
se casem.
— Oh tio, tio, porque diz isso!?
— Acredite-me, não posso.
— Mas porquê?
- Beatriz,
é inteligente, sabe compreender perfeitamente as coisas, o que devemos e o
que não devemos fazer. Pois bem, se pensar uns curtos instantes, verá que
nunca poderei aprovar esse casamento, ainda que bem desejasse poder
fazê-lo.
— Mas eu e Artur, conhecemo-nos
há sete anos e alguns meses, sempre nos temos dado
muitíssimo bem.
— «Uns irmãos, disse bem e pense
ainda melhor, uns irmãos. Artur, é seu primo co-irmão
e felizmente minha filha que sempre se têm respeitado mutuamente e que coisa
alguma existiu entre vós que os pudesse manchar. Contudo, não aprovo o vosso
casamento. É o mesmo que ver casar o Artur com a Maria da Glória.
— Por favor, porque imagina
isso?
— Veja. o
Sol nunca se ligou à Lua. E porquê? Porque, não sendo irmãos, porque um, sendo
uma estrela e o outro um planeta têm as raízes comuns que os gerou no princípio
do mundo; e, porque esse princípio podia ser eivado de taras, de genes, assim,
a sua ligação nunca se concretizou, para que ela não fosse a destruição da
humanidade.
Numa imagem tosca do que lhe venho
a dizer, admire ao findar a tarde, quando o Sol se põe, a Lua aparece antes
do seu deitar e parece olhá-lo com ar melancólico mas resignado.
— Não quero compreender.
— Mas queira. Os sacrifícios na
terra não são impossíveis. Nada é impossível, e, se hoje, uma ferida nos faz
sofrer muito, amanhã quando estiver curada esquecemos imediatamente que a
tivemos e o sofrimento que nos causou. E parece mesmo que revigorámos.
O calor apertava, o zumbido dos
insectos barulhava o ar e as aves em voos razantes faziam prever mudança de tempo. Beatriz
abafava no meio daquela atmosfera que sempre lhe agradara e que hoje quase
chegava a maldizer.
— Mas o tio, soube logo que eu
era sua sobrinha?
— Não, mas tive qualquer pressentimento,
tive, como Beatriz, a certeza de que a conhecia, e não me enganei, assim como
não se enganou e desde essa altura, passei a viver mal, bastante mal mesmo.
Os dias pesavam-me e o mundo que tinha esquecido,
voltou a aparecer com toda a sua brutalidade e má face.
— Apareci-lhe eu assim?
— Não minha filha. Beatriz apareceu-me
como a reincarnação de meu irmão e de todo o meu passado. Nessa
altura, tudo me passou pela memória; desde os tempos em que a boa Teresa,
nos espaços de trabalho, nos deixava à rédea solta, descalços e às vezes com
o monco a cair, fazendo as piores tropelias, até à nossa subida ao ministério,
já bem engravatados e bem distantes daqueles dias e ao mesmo tempo tão perto,
porque eles tínhamos sido nós; e outros, muitos outros viveriam como nós vivemos.
Felizmente, nunca esquecemos que
viemos do nada e o poder, segundo penso, nunca subiu
à cabeça tanto a um como a outro. Porém, a vida, que não pode ver, por muito
tempo, a felicidade dos seus semelhantes desviou-nos como sabe do caminho
que nos tinham oferecido.
Um, deixando este triste mundo,
o outro varreu-se-lhe o sentido como se costuma dizer e, quando o encontrou
completamente, achou-se pouco mais ou menos onde o vê e sem forças para recomeçar.
— Então, porque tenta agora, desviar
também o curso da vida que nos estava destinado a mim e a Artur e nos quer
fazer infelizes como o senhor o foi?
— Tente compreender-me, eu não
posso sequer ter o pensamento de os poder fazer
infelizes e é por isso, por esse medo, que não posso ver com bons olhos esse
casamento.
— Mas, se nos ama como diz,
porque se opõe?
— Porque vos amo.
Pergunte ao Artur, depois de lhe
contar que é a sua prima directa, de lhe lembrar que a mãe morreu louca e
que tanto eu como seu pai, ainda que singrando
na vida, com muitíssima facilidade, sempre tivemos algo que nos diferenciasse
das outras pessoas, talvez, porque segundo se diz, e eu conto-lhe isto com
toda a franqueza, as pessoas excepcionalmente inteligentes, quase todas têm
tara.
Pergunte-lhe a ele que se acabou
de formar e com uma classificação que não deixa alguém ter dúvidas sobre a sua
forte sabedoria, porque temo o vosso casamento.
— Por que não me diz o senhor?
— Quer que seja eu?
— E porque não! Já começou a
fazê-lo, agora, peço-lhe que acabe.
— Está bem Beatriz, far-lhe-ei a
vontade:
A nossa família, sofreu bastantes
dissabores por causa dos seus tiques patológicos e é normal e, quase certo,
que ao casarem e ao aparecerem os vossos filhos, eles, que não têm culpa nenhuma
dos vossos erros, sujam deformados tanto física como
mentalmente. Portanto, e isto em poucas palavras, a vossa felicidade seria
quimérica, seria unicamente uma pequena passagem de prazer.
— Por favor, não me diga isso,
não me cause mal, peço-lhe.
— Estou-lhe dizendo o que penso
e a verdade.
— Por favor.
— Acredite-me, Beatriz, se quiserem
casar, isso é convosco e não me posso opor, somente sei dizer que têm muitíssimas
probabilidades de virem a ser bastante infelizes. Por um acaso qualquer pode
ser que assim não aconteça, porém, vocês, viverão sempre atormentados à espera
do pior.
— Mas não teremos filhos.
— Seria imperdoável modificar as
leis da natureza, fazer com que na terra apareçam as melhores criações do homem
e da mulher.
Deixe-me contar-lhe isto: antes
de me casar e mesmo depois, mas antes, porque ainda o não tinha feito; quando
passava por uma mulher em gestação dizia mentalmente: maravilhosa criatura,
quem me dera ser o pai do filho que trazes no ventre. E parecia-me, se o fosse,
que me deveria sentir o homem mais feliz que existiria à face da terra, quer
ela andasse bem ou mal vestida, rota ou coberta de jóias, o meu desejo era
sempre este. E enquanto não me casei, e no espaço em que não tive filhos,
senti sempre que algo me faltava. Sentia o vácuo da minha existência.
Minha
filha, jamais deveis
pensar em não ter filhos; é pior do que ter nascido morto, porque viemos ao
mundo e não criámos. Nada lhe demos em paga da nossa aparição.
Quando estamos ainda a tempo de
evitar erros, que ficam gravados para todos os nossos dias, por que não evitá-los?
— Oh tio, tio. Se soubesse
quanto gosto do Artur!
- E como o Artur gosta de si. Sei,
sei perfeitamente. Mas um amor, mesmo um amor verdadeiro, quase uma paixão,
não dura toda a vida. E um deformado, um louco, um mentecapto, esse sim, pode
durar uma vida inteira testemunhando-nos o erro que fizemos e que poderíamos
ter evitado.
Façam o que muito bem entenderem,
amem-se à vossa vontade: e casem-se ou juntem-se bem longe de mim e nunca
me mandando dizer que o fizeram.
— Mas porquê tio?
— Já lhe expliquei.
— Mas isso,
pode não suceder.
— Mas pode. E há muitíssimas mais
probabilidades de isso acontecer, do que de prever o melhor. Nessa altura
seria a desgraça, e este mundo já tem de sobra.
— Por favor, não seja
pessimista.
— Sou.
A troca de impressões misturada
de conselhos e de rebatimentos
ficou por ali. Tio e sobrinha, tristemente foram descendo a ravina que tinham
subido cheios de pensamentos.
O Sol já não os aquecia, como poucas
horas antes, e o céu e o mar pareciam ter mudado de cor. Assim, a face da
terra, compartilhando da tristeza das almas boas, modificara subitamente o
seu semblante e tudo era luto.
Mais dias passaram sobre aquele
infeliz dia e a cada um que desaparecia, algo também se modificava. Como as
horas vão tornando pouco a pouco a claridade em escuridão, assim os hábios
da casa e os seus habitantes modificavam os seus semblantes.
Uma tarde Beatriz, sem se poder conter por mais tempo, e depois de ter pensado muito,
falou com Artur e expôs-lhe o que o pai lhe dissera.
Pensando que o ia deixar admirado
e aborrecido, encontrou que o seu rosto não sofrera qualquer alteração e que
parecera ficar indiferente.
Também ele sabia toda a história;
e se a não soubesse, aqueles últimos dias ter-lhe-iam revelado algo de anormal.
A psicologia que num futuro próximo teria de aplicar em proveito da ciência
tudo lhe fizera compreender.
— Mas que dizes de tudo isto?
— Que digo?
— Sim, que dizes?
— Digo que somos maiores e
emancipados, com um futuro radiante à nossa frente, que nos amamos e que vamos
casar com ou sem consentimento.
— Então não concordas com o que
teu pai diz.
— Sim, em parte, numa
pequeníssima parte.
— E fazes
o contrário?
— Fazemos.
— Mas porquê, se reconhecemos
que tem razão?
— Porque nos amamos, porque nos
conhecemos há perto de oito anos, porque sempre nos desejámos, porque sempre
esperámos ansiosamente o dia em que fôssemos um só em dois corpos
e porque podemos ter ou não ter filhos.
— Mas o mais natural...
— O mais natural é termos ou não
termos, e se os tivermos, em vez dos defeitos que meu pai te meteu na cabeça
e de todas as deformações que eles possam vir a ter, porque não admitir o
reverso e pensar que, esses hipotéticos filhos, reunam
todas as nossas capacidades, toda a nossa inteligência, toda a nossa pujança
e em vez de saírem furados do miolo ou com qualquer anomalia, apareçam uns
génios tais, que nós à sua semelhança sejamos pequenos pontos.
— Porque a outra tem já bases em
que se fundamentar e esta não passa de mera suposição.
— Meu pai e o teu foram óptimos
alunos e depois, melhores entre os melhores.
— Perdoa, mas penso que teu pai
tem razão e os teus argumentos não chegam para modificar o meu pensamento.
— Beatriz,
deixastes de gostar de mim?
— Sabes bem quanto te amo e como
é esse amor.
— Então?
— Então, faremos o que nos dita a consciência, faremos o lógico e não provocamos o
incerto pelo provável.
— Não sejas tontinha. Alguma vez
seríamos felizes tu e eu, separando-nos agora, depois de tantos anos juntos,
sabendo que nos queremos como queremos?
— Apesar disso, temos que nos separar,
nunca tivemos relações, nunca soubemos se nesse campo nos daríamos bem ou
mal; pensaremos que somos dois irmãos, que nos queremos muito, muitíssimo
bem e separamo-nos com um beijo que nos fará recordar os bons momentos passados,
até que o futuro e a sequência dos dias esbatam esse «outrora» e velejemos
há procura da felicidade que neste momento pensamos amarguradamente perder.
— Não queiras ser criança. Pensa
novamente que poderemos ter filhos ou não e que por este motivo poderá não
existir qualquer perigo. E mesmo se os tivéssemos, ainda haveria muitas probabilidades
de serem tão ou mais perfeitos que nós mesmos, como te disse há pouco.
— Contudo, prefiro não arriscar
com tão diminutas probabilidades de ganhar.
— Deixastes de gostar de mim, Beatriz.
Se é isso, tens perdão para o mal que me estás causando; se não é isso, não
sei o que te possa dizer.
Separaram-se sem dizer mais
palavra.
Um barco da Companhia Colonial
de Navegação, por sinal, o mesmo que os tinha trazido, os levou para a Metrópole.
Vítor Manuel não chegou a saber
de momento qual seria a resolução daqueles filhos, que agora, agora que
principiara a ter umas esperanças de bons tempos, antes os vinham nublar.
Artur e Beatriz não casaram, ainda
que o médico, mais coração que cabeça, o quisesse
a toda a força, e argumentasse com dados científicos. A futura acusadora dos
erros públicos não esteve com meias medidas, compreendeu perfeitamente o que
seria uma vida atormentada ou contrariada durante os anos em que pudesse conceber
e que passariam juntos.
Sem anunciar a sua partida, o
Extremo Oriente foi o seu porto de chegada.
Artur Manuel, sofrendo talvez dos
sopros patológicos dos ascendentes, teve um surto de loucura que o afastou
durante alguns meses da razão e voltou à ilha que o tinha visto nascer e que
o veria morrer no meio de livros e do estudo profundo do seu clima, das doenças
que atacam os seus habitantes, da maneira como eles poderão alcançar a sua
felicidade, num complemento para se atingir a felicidade nesta Terra que tão
duramente lhe exigira o tributo da sua existência.