LIVRO EM ESTUDO:
GUARDA, MEU AMOR
A NEVE
“Branca e leve, branca e fria”
Assim Augusto Gil dizia
Cantando a dor que passa
Nos olhos de uma criança
Que pobre e descalça
Só no amor tem a esperança.
“Branca e leve, branca e fria”
Ah, como eu te recordo, neve.
A primeira que caía
Era enorme a alegria
Das capas negras enroladas;
Corríamos pelas escadas
Mergulhávamos nas ruas
Onde a neve se estendia.
Era o Chartier, o Sá Pessoa,
O Casimiro, o Adérito, o Herculano,
O Patrício, o Mário, o Guimarães
E todos à uma, todos à toa
Combatíamos, rindo felizes,
Loucos de contentamento.
“Branca e leve, branca e fria”
Toda a juventude a sentia
Como a bênção, o reboliço, a emoção.
Neve, Guarda, prazer, amor
Ninguém se lembrava da dor
Que a neve trazia ao indigente.
Neve bendita que tudo purifica.
As dores de outrora passaram
Hoje, a Guarda
O PINTOR
Olha o "Estação
Com a paleta na mão
E sorriso meio trocista.
Quem será a vítima afinal
Do seu jeito caricatural
E lápis grande artista?
O Gonçalves não é de fantasias
A todos tira as manias
E desenha-os sem pinturas.
O Luís detesta a hipocrisia
Os fanfarrões, o engano
Só pensa na Academia
Nas Artes, na Arquitectura.
É da Estação-Guarda natural.
Estação, prós amigos fica o nome
Porque o Gonçalves genial
É a honra de Portugal.
Estação, o cognome.
O MILAGRE
Junto à Torre dos Ferreiros
A imagem do santo olhava.
Toda a figura tremia.
Eu, de olhos arregalados
Pensava...
Que ilumina as ilusões,
Quando chegou o Martins de Almeida
Que, rude e grosso, me disse:
- Que grande carraspana, ó Simões!
- Chiu! Espera pelo milagre.
- Vamos imediatamente embora
Antes que chegue a senhora
Que trás flores ao santinho.
- Vem ateu. Vem. O teu milagre é o vinho.
- Assim perdi, uma provável visão
Por causa daquele descrente.
Levou-me a reboque, a empurrão.
Parecia mal, vinha lá gente.
O NAVE
Capa rota, em frangalhos,
Bamboleando as sapatorras
Vem ao longe trauteando
Melodias em tom suave.
Esconde-te, diz o Craveiro;
Ouve o que canta a garganta
Do desgrenhado do Nave.
Passa o folião trauteando:
“O Passarinho da Ribeira”,
O Craveiro
Julgais que sou da vossa laia?
- Ah, safado, que cantas?
- O vosso funeral, senão largais
A minha douta manta,
Mais feroz que a dos Cabrais.
- Adeus Nave, adeus férias
Cá voltámos à desgraça
Fazendo as equações
Na aula do Rabaça.
“Estudai, malandros”
Respondeu o esfrangalhado
Enquanto continuou assobiando.
“Vem zuca das férias”
Disse o Craveiro conformado.
O SONHO
Um dos meus sonhos de criança
Era ser locutor.
Através da palavra bem timbrada
Podia tornar o mundo melhor.
Um dos meus grandes amigos,
O João Alfredo Donas de Sá Pessoa,
Prestou-se a entrar comigo
Na compra de um gravador.
Entre estudos e gravações
O Sá Pessoa convenceu-me
A prestar provas na Rádio Altitude.
“Vai lá, dizia-me, vai lá, ó Simões
A ti não te negam nada.”
A Rádio Altitude aceitou
Que representássemos a Ceia dos Cardeais.
Melhor lá não tivesse ido.
Ao ouvir a minha voz
Que mais parecia um rugido
Fugi espavorido.
Bem me acalmava o Sá.
Eu não entendia razões.
Fiquei tão horrorizado
De me ouvir
Através das ondas hertezianas
Que vendi, ao Sá, o gravador
E pensei outro caminho melhor
Para influenciar o mundo.
O ARAGONEZ
Quem diria que entre duas tacadas
Num bilhar mal amanhado
Se encontrava um filósofo sonhador?
O Aragonez,
E ouvia com atenção.
Para nós, jovens da brincadeira,
Admirávamos-lhe o vestir,
A botoeira futurista
O calçado, avançado no tempo,
Tal como as suas dissertações.
Muitas vezes me perguntei
Se, na sua maneira de estar
Não haveria um sofrimento escondido
Teimava em lhe negar
O que ele gostaria de fazer.
Quando entrou para a Rádio Altitude
O Aragonez ganhou alento.
A Guarda reconheceu-lhe o mérito.
A sensibilidade
Que deram voz à cidade.
Mas, o Aragonez, entre o rádio e o bilhar
Continuou sempre o mesmo pensador.
Olhar distante, compenetrado,
Amigo do seu amigo.
OS GAIATOS
"Os Gaiatos" foram a Instituição
Que mais amor
Tiveram dos Guardenses.
Aqui se “construíram” homens
Que ultrapassaram os tristes fados
E deram a Portugal sabedoria e valor.
Destaco o Zeca Rodrigues
Rapaz de múltiplas funções
E de carácter lhano.
Estudava nos Gaiatos,
Trabalhava no Herculano.
Um dia, por pirraça do destino,
Foi D. Dores buscar o menino
Para ajudar na missa
O corpulento padre Inácio.
O rapaz, sempre prestável,
Não se negou ao serviço,
Mas do assunto não percebia nada.
O Padre, em surdina, sempre lhe dizia
O que devia conduzir para o altar,
Mas, num momento de atrapalhação
O Zeca ouviu “galhetas”
E sem mais; ala que se faz tarde.
Deu às pernas, o maroto.
O padre, de mãos no ar,
Viu escapar-se o ajudante.
Sem as galhetas do ofício
Resolveu improvisar
Foram-no encontrar debaixo do balcão
Transido de medo.
Galhetas são fortes bofetadas
E dessas já estava farto.
Valeu-lhe a Maria das Dores
Que, com festas e explicações,
Lá o convenceu a voltar
Enquanto o padre perorava, perorava
Sem nunca mais acabar.
Voltou o rapaz, continuou a missa,
Mas o Zeca Rodrigues jurou
Que na vida só faria
Tudo o que da vida entendesse.
Que fosse ao ofício quem quisesse.
Ajudar à missa? Nunca mais.
A Libaninha consoladora de estudantes
De futricas e tratantes
Era senhora impecável.
Nunca negava um sorriso, uma pernada,
Um conselho ao mais desesperado.
Para ela, a função era uma paciência
Muito elaborada, da ciência
Do conhecimento e dos segredos do amor.
Ela, que era analfabeta,
Interrompia a tarefa para escrever uma carta
E o estudante que ela ensinava
Escrevia tudo com prazer, correctamente.
Na profissãoempenhava o corpo, a vida,
E todas as habilidades.
Todos adoravam a Libaninha,
Todos saíram da sua cama mais conscientes
Que o trabalho, o estudo, o amor, a honradez
Faziam a vida e o mundo melhor.
A Libânia sabia mais que um doutor.
Libânia, doutor honoris causa?
Sim senhor.
NEVOU
Que encantamento!
Como é bela e fria
A cidade.
Os monumentos, as casas
Ganham cor,
E até as expressões de dor
São sorrisos.
A neve faz tritar
Os mais desprotegidos,
Mas o deslumbramento
Deixa-os indiferentes
Ao sofrimento.
A neve é a esperança
Que lhes enche a alma,
E lhes diz que um dia
Também eles serão neve
Para que a vida continue.
CRESCER ATÉ MORRER
Pequeno, Sorridente, brincalhão,
Olhar de bom malandro,
O Martins de Almeida entrava em todas.
No roubo de galinhas era perito:
Metia-lhes a cabeça debaixo de asa
E elas gostavam, não abriam bico.
Mas uma vez, só não foi apanhado
Porque esteve três horas agachado
De cócoras dentro do galinheiro.
Ao sair pelas telhas parecia um Cristo;
As lêndias eram aos montes; só visto.
Até com creolina foi lavado.
Mas ele não tinha emenda.
O Martins de Almeida, que era pequenote.
Cresceu graças ao Caetano, Mata-frades,
Que queria ser militar, mas faltava-lhe altura.
O Mata-frades, pendura aqui, ali pendura
Cresceu até um metro e sessenta e dois.
O Martins de Almeida que tinha complexos
De crescimento comprou barras e argolas.
E não é, que estes dois mariolas,
Cresceram mesmo a valer?
O Mata-frades foi na tropa comandante
E o Martins de Almeida quase alcançou
Um metro e setenta e cinco.
A brincadeira escondia força de vontade.
E todos os jovens que estudaram nesta cidade
Subiram na vida. Cresceram em tamanho.
O RAU
Cem metros em doze segundos
Só o Rau era capaz.
Fugia como uma garça.
Nas serenatas o Rau destacava-se
Pela altura e voz desafinada.
Depois seguia-se a patuscada.
Para roubar galinhas
O Rau era o grande atleta.
Passava-as ao Zézé
E ala que ninguém mais os via.
Depois, já descansados, a trupe;
Joaquim Couto, Albertino Santana,
António Almeida e Armandinho Alpergatas
Juntavam outros menos actuantes.
O Rau, com voz tonitruante, decidia:
Tu, não fizeste nada, trazes o vinho.
E tu, trazes o pão, e tu as batatas.
Instalado como um rei, o Rau começava o banquete.
Durante meia hora nimguém o ouvia.
Os outros seguiam-lhe o exemplo.
E como num hino de louvor, em mastigação sagrada,
Só se ouviam os queixos : rau, rau, rau.
AS CONFISSÕES
A Sé na sua imponência,
É santuário onde a fé
Não se discute.
No seio acolhe visitantes
Dados à religião e aos mistérios.
Os jovens do Liceu
Esvoaçam pelas escadarias;
É dia geral de confissões.
Para todos é, unicamente, festa.
Acabaram as aulas mais cedo
Para preencher esta função.
O Guimarães vai à água benta
E borrifa, em bochechadas,
As hostes mais chegadas.
Ímpio pagão grita a “malandragem”.
“É preciso mostrar contrição”
Diz uma beata.
“Tá bem santinha, desculpe.”
No meio das bem-aventuradas e dos talados
Jogávamos ao burro e à apanhada
Aos ditos, aos encontrões.
Mas todos vão à confessada
Mesmo que isso não passe de brincadeira.
Precisa de silêncio e de tristeza.
Exige hipocrisia.
Mas na alma da juventude, a natureza
É mais forte que o velório.
“És tu, és tu agora a confessar”
Cada um empurra o outro
Para junto do cubículo ou do altar,
E cada um confessa a mentira,
A tristeza alegre e descarada
Que ali tem de estar encapuçada
Porque assim manda a tradição,
A beatice, o fingimento, a dissimulação.
“Vai tu, vai tu”
E lá vai o Barão
“Este não!” Grita ele interiormente.
O padre conhece a sua repulsa.
- Ficaste admirado? Vai para outro.
O Zé, quer manter a compostura
Hipocrisia com hipocrisia se paga.
- Eu confesso, eu confesso sr. Padre.
- Vê lá, pensa bem, não mintas.
- Eu confesso.
Confessar confessou, mas no final engasgou:
- Há um, que eu não posso dizer.
- “Vês. Eu não te avisei?
Assim não te posso dar a bênção.
Eu só perdoo se confessares”.
- "Se tem que ser...
Quando vou à casa de banho
E sai um, deste tamanho,
Digo sempre: aboca padre Inácio.”
O solene, gordo e bondoso sacerdote
Vermelho como um pimentão
Murmura-lhe em tom audível:
“Arreda, arreda, grande malandro!
Aboca tu, meu descaradão!”
Terminaram ali as confissões
No meio de enorme alarido.
Aquela Quaresma foi uma festa.
Aquela, sim, valeu a pena.
O Barão, com a sua ingenuidade,
Desmascarou a hipocrisia com a verdade.
LÁ VAI CRISTO
Há Quaresmas azaradas
Pró Statuo estabelecido.
Quanto mais proibições
Naquele ano de cinquenta e cinco
Tudo fardado a rigor
Na Mocidade Portuguesa.
A farda não impedia
Os maiores disparates.
E quantos mais se faziam
Maior era a alegria.
Até o saudoso Guimarães
Levava farda emprestada.
Ele só tinha camisa
E tão velha e debotada
Que tinha visto, há trinta anos
O começo da Instituição.
Nesse dia também queria
Participar no evento.
E todos, muito perfilados
Entrámos na Sé Catedral.
As bandeiras, os tambores
As espadas e os galões
Abrem alas no altar
Para enquadrar o padre
E guardarem o guardado.
Mas quem segura a juventude,
O Craveiro, o Maurício, o Vasco,
O Bidarra, o Adérito, o Patricio,
O Herculano, o Mário, o Borges?
Todos ainda riem do episódio
Do dia anterior.
Numa lufada de riso,
Toca a bandeiras levantar
Para saudar o mistério
Que adormece gerações.
O Craveiro, todo torcido
Com a risada, dá uma bandeirada
No Cristo da cruz impante.
Nesse momento,
E perante o olhar horrorizado
De tão solene e beata assistência,
Grita o Zézé: lá vai Cristo!
Sem um mínimo de hesitação
Tirei veloz o espadeirão
E milagrei a cruz, com firmeza
Empurrando-a para o lugar.
Ouviu-se um ó admirativo.
O padre olhou-me agradecido
E a missa continuou mais leve.
Aquele pesadelo da Quaresma
A partir daquele ano
Deixou de ser um engano
Tornou-se uma festa popular.
OS GAROTOS DA GUARDA
No tempo em que a miséria
Se passeava pela cidade
Nasciam garotos
Cuja necessidade
Os obrigava a enfrentar a vida.
Um deles, o Guimarães
Mal deu os primeiros passos
Aprendeu a sobreviver.
Estudou os adultos
Encontrou-lhes os pontos fracos
E, sorrateiramente,
Foi crescendo.
Engraçou com o rapaz
E prometeu fazer dele um homem.
Protegeu, incitou
Aquele desígnio selvagem
Que mais do que protecção
Precisava de camaradagem.
O Guimarães tinha de vencer.
Foi para a Universidade
Com vinte escudos no bolso.
Sorriu, acamaradou, encostou
Fez sebentas a quinze tostões.
Fez sempre um pouco de tudo
E quando recebeu o canudo
Foi dar aulas, trabalhou no turismo,
Assessorou ministriáveis
Fez televisão, revistas, livros, jornais
Trabalhou como um mouro
Parecia ter a resistência de um touro
E quando tinha vencido a vida
Morreu.
O ADÉRITO
Pequeno, azougado
Agarrado à concertina,
O Adérito estava em todo o lado
Onde houvesse festa, farra e romaria.
Estudar? Só de vez em quando
Estudava quando lhe apertava a barriga
E o fim do período se aproximava,
Mas se na “Baco ó Vénus” se decidisse
Que havia truculência noite fora
O Adérito nunca lhe resistia.
Sempre pronto para acamaradar
Tornou-se um perito em conhecimentos
E ganhou tanto dinheiro
Que o Adérito mais parece um mealheiro
Sempre cheio e feliz por poder fazer
Tudo o que na vida lhe apetece.
A CIDADE MAIS ALTA
A Guarda guardou o tempo
Durante gerações
Nada mais ouviu que o vento.
Chegaram os primeiros habitantes
Para aqui encontrar refúgio.
O ar puro da serra
Depressa os seduziu.
E no ponto mais alto
Nasceram novas águias.
A TERRA
Alta, fria, farta, elegante
A Guarda veste-se de granito
O Sol abriga-a na Cova Quente,
Protege-a do vento cieiro.
Nos campos a produção é farta:
O centeio, a castanha o azeite
Irrompem da terra pujantes.
O gado passeia-se pelo terreno alcantilado
Mostra-se saudável.
O Vinho brota em cascata.
Por todo o lado as cachopas
Riem alegres e prazenteiras.
São moças da cidade e do campo,
Sãs e apetitosas:
Olhos brilhantes de pureza
Dentes brancos, fascinantes.
Bocas ávidas de beijos,
De amor, de amizade, de desejos
Rosto repuxado, corado pelo frio.
São mulheres de graça e confiança .
CAPELA DO MILEU
Eu tive uma namorada
Onde a beijava a medo.
Mas tantas voltas lhe dava
Que a minha namorada, inquieta
Punha-me tento e contenção
Tirava-me do corpo a mão
E olhava-me doce e enleada
Naquela capelinha
Estava a minha Perdição.
Ali aprendi a amar.
ali saboreei os primeiros beijos.
Mas, um dia
A minha “Pega”
Para a sua terra natal.
Pega, como te recordo
Terra da minha paixão
O nome da namorada é segredo
Que eu guardo no coração.
A GUARDA É FRIA?
Dizem que a Guarda é fria.
Nunca senti terra mais quente.
A alma que ela entoa
É a prova evidente
Que quem tal diz, não a sente
Nem experimentou águas do Côa.
A sua quentura é real
Que o diga D. Sancho I.
Enamorou-se da Ribeirinha
Fez trovas ao vento que passa
E ao “meu amigo na Guarda”.
E o que fez, o rei D. João I
À filha do judeu Barbadão?
Dois rebentos: Beatriz e Afonso.
Uma casou com o Conde de Arundel
O outro deu origem à casa de Bragança
Ao casar com a filha de Nuno Álvares Pereira.
Fria, a Guarda? Nem pensar.
Nunca senti tanto os calores
Enquanto lá estudei, amei, vivi.
Quantas saudades tenho de ti, Guarda.
SOUSA MARTINS
Entre os homens notáveis
Que a Guarda recebeu
Destaca-se um entre todos:
O Dr. Sousa Martins
Que pelo saber e inteligência
E bondade de coração
Galvanizou a população.
Durante muitos anos, o Dr. Sousa Martins
Verificou resistência e pulmões:
Subia à Serra e levava com ele
Todos os seus amigos.
Fundou o clube dos Hermínios
Para incentivar o conhecimento
Sobre o benefício do clima de altitude.
Escreveu sobre a Serra,
Sobre a terra
Sobre as gentes
Sobre os seus desígnios,
Sobre as suas qualidades.
E elas são tantas que a rainha D. Amélia
Incentivou a edificar, na Guarda
O Sanatório Sousa Martins
Casa que todos os doentes
Ficaram a estimar e a admirar.
Muitos deles aqui se fixaram
Na saudável Cova Quente
E contribuíram para que a Guarda
Se tornasse próspera e mais feliz
Porque eles próprios
Recuperaram a felicidade
E muitos por aqui ficaram
Neste clima privilegiado.
A COZINHA ECONÓMICA
Embrulhados nos seus trapos
Com pequenos sacos na mão
Junto à portaria
Amontoavam-se os pobres.
O estômago é uma obsessão
Para quem vive de esmolas.
A cozinha económica
Era a salvação dos desamparados,
Daqueles que nada tinham
Por nascimento,
Não por falta de merecimento.
Comiam sopa e um pouco de pão.
Não morriam à fome não,
Mas faltava-lhes a dignidade
Que só o dinheiro concede.
Os guardenses não se conformaram;
Primeiro ajudaram a sobreviver
E logo que puderam
Juntaram à cozinha económica
A instrução.
E a Guarda tornou-se o que é:
Uma cidade de progresso
Uma cidade de futuro
Uma cidade onde apetece viver.
OS CANTORES
Quando pela madrugada
O silêncio adormecia a cidade
Havia sempre rapaziada
A fazer sua maldade.
Primeiro uma patuscada
De galinha bem tirada
Ao António Pinto.
Era o próprio cantor, o Calheiros,
Que gostava de escolher
O galináceo a surripiar.
“Queres a preta ou a pedrês?”
“Uma qualquer, apressa-te”
Mas ele insistia sempre
“A preta ou a pedrês?”
“A pedrês, sussurra o Pissarra”
A festa era na República Baco ó Vénus
Sedeada na Pensão Central.
Daí saíamos, em surdina,
Todos de capa e batina
Cantando à Mariazinha, à Ludovina.
E por fim, todos bem bebidos
O Joaquim Craveiro e o Calheiros
Cantavam até à Lua.
O que era preciso era cantar,
Deitar fora a força e as mágoas.
No dia seguinte, de manhã,
Com o ar fresco a dar no rosto
Ninguém sabia dizer
Se aquela boa disposição
Era da juventude
Da Galinha
Dos amores
Ou do mosto.
GÁRGULAS e GARGANTAS
Todas as pedras da Guarda servem de inspiração
E quanto mais quente me sentia
Mais a veia produzia sons que só eu escutava.
Aos outros então mandava:
Cantai, cantai, cantai!
Insistia com o Craveiro e o Calheiros
“Vai-te encher de moscas” dizia o Joaquim.
“Craveiro canta, canta, vai por mim.
Canta às gárgulas jacentes
Que nos espreitam admiradas.
Vê como abrem as bocarras
Fazendo-vos concorrência
“Canta tu, meu desbocado.
Eu e o Calheiros cantamos fado
Não vamos nas tuas tolices.”
“Façamos-lhe a vontade,
Senão nunca mais se cala”.
Moderava o Calheiros.
E os dois começavam:
“Gárgulas da Guarda cantai
Nossas penas, nossas dores
Por todo o mundo levai
As penas destes cantores.
Levai-nos ao rio Mondego
Faz de nós os seus doutores
Leva connosco os amores
Deixai os pais em sossego.
Cantai Gárgulas da Sé
Cantai gárgulas da cidade
Leva-nos para longe do Zé
Não percamos a mocidade.
"Estás satisfeito, ó bruto?”
Perguntavam os dois a seu tempo.
Eu olhava-os feliz de contente
Se até estes “animais” cantavam,
O mundo ainda não estava perdido.
O DISCURSO
Quando o D. Sancho apareceu
Tivemos mais um companheiro.
Sempre que ninguém nos queria ouvir
Fazíamos discursos ao D. Sancho.
Falávamos, falávamos, falávamos
Sempre com a sua aprovação.
Foi assim que treinámos o futuro:
Uns foram advogados, outros procuradores
Outros juízes, outros deputados, outros
Professores, melhores que os anteriores.
Trabalhadores em diferentes profissões,
Outros militares.
Estes foram os mais sacrificados:
Além de sempre aprumados
Pediram-lhes compostura
E bravura ao serviço da Pátria.
E foi assim, por causa desta ideia,
Que o Casimiro entregou a vida.
O Casimiro, que era o mais irreverente.
Depois de ser militar
Tornou-se intransigente consigo.
Paz à sua alma e aos seus discursos
Que eram os mais atrapalhados.
RUAS
Estas ruas estreitas, sinuosas,
Aconchegam-nos, atraem-nos
Como se vivêssemos
No útero materno.
A Guarda abraça-nos
Enleia-nos nas ruelas
E por elas passamos contemplativos.
Não há uma rua, uma esquina
Uma escada
Que não nos marque.
A Guarda é a nossa guardiã.
Altiva nas suas alturas,
Elegante nos seus contornos.
Quente e fria:
É pujança e abastança.
Quem viveu na Guarda
Nunca mais deixou de a amar.
O CHAMIÇO
Todos os dias encontrava
O Chamiço, bêbado e poeta.
Para lhe acirrar a veia
Dizia-lhe volta e meia:
“Ó Chamiço, não te aguentas nas pernas”
O “poeta” olhava-me com desprezo.
“Estudantes, putas e padres
Quanto mais longe melhor.
Não dão nada a ninguém.
O estudante julga-se doutor
A puta fornica sem dor
E o padre julga-se alguém
Porque engana toda a gente
Vendendo, aos bocados, o que não tem.”
Eu voltava ao ataque:
“Ó Chamiço, não sejas ordinário.
Vê se tens tento na língua”
“ Tem tu, estudante de palavreado.
O Chamiço respeita. Ia calado”
Mas eu não resistia
Agora tinha de o elogiar:
“Tu podias viver como um rei
Com a tua veia poética
Que a Guarda vai guardar”
Ele olhava-me hesitante.
“Estudantes não sabem nada.
Para que quero eu o dinheiro?
O que tenho mantém-me inteiro
E ninguém necessita mais
Do que pode gastar.”
O SOL DA GUARDA
Hoje o Sol escondeu-se
Na Mata da Dorna.
A filha do sapateiro chora
Porque não tem sapatos.
O frio entra pelas frinchas
De todas as portas
E pelo tecto de telha vã.
“Acontece-nos isto
Porque és ateu.
Não acreditas em Deus
E ele castiga-nos”
Lamuriava a mulher.
O sapateiro, de sovela na mão,
Respondia-lhe:
“O teu Deus é o meu.
O meu Deus é o trabalho
E quando o há e é bem pago
Quem o pagou
É o meu Deus.”
“Blasfemo
Que nos afastas a sorte!”
Grita-lhe a mulher.
Tens razão:
“Somos pobres de espírito.
E não há maior pobreza
Do que não entender a natureza
E não compreender
Que nascemos pobres
Que não estudámos
Que nos querem pobres
Para nos lamentarem.”
O Sol, de envergonhado,
Baixou a cabeça
Na Mata da Dorna.
O ACIDENTE
Nas aulas de Inglês
O Aristides teimava
Em nos fazer decorar
O texto do livro.
Como ninguém o fazia
Havia sempre berraria
Com varada de escarchar.
Um dia, o Zé António inventou
Um método infalível de enganar
O Varapau.
Depois de ler a lição
E das perguntas sacramentais
Passávamos à punição.
O Zé António expedito
Pedia para ir ao quadro
Onde colocava um papelito
Com o texto salvatério.
Milagre da ousadia;
Passámos da pior turma
Para a melhor turma do dia.
Tudo corria pelo melhor
Seguindo os trâmites normais
Mas uma vez terminada
A acareação, o Zé António
Tirava dissimuladamente
O papel bendito.
Sem o ter percebido
O Maurício foi chamado:
“Sabes de cor a lição?”
"Sei sim", disse o Maurício enchendo o peito.
Foi o desastre total.
O Maurício, de óculos muito graduados,
Bem procurava a tábua da redenção
Enquanto a turma gargalhava
Por ver a sua aflição.
O Aristides distribuía,
Varada a torto e direito
Mas a rapaziada, perdida de riso
Não parava, e o Aristides insistia:
Diz.
Mas, o Maurício, nem do título
Se lembrava.
E levou tanta varada
Que andou dias a maldizer
A ideia disparatada
Que o tinha levado a perder.
A GENTE DA GUARDA
Amigos do seu amigo
Como os da Guarda não há:
Naturalidade, espontaneidade
Franqueza, urbanidade,
Tudo esta gente recebeu da natureza
Em doses prenhes de amor.
Na Guarda aprende-se a fraternidade
De um modo tão singelo
Que até os do Jarmelo
São Guardenses dos mais puros.
A cidade irradia para as aldeias
Toda a força da sua pureza
E é um encanto.
O encanto da gente e da natureza
Que se confundem no amor
Que a terra transmite.
Desde Avelãs da Ribeira,
Rochoso, Trinta, Gonçalo,
Valhelhas, Vale de amoreira,
Fernão Joanes, Aldeia Viçosa,
Vila Garcia, Adão, Famalicão,
Vila Fernando, Ramela
Alvendre, Cavadoude, Faia,
Meios, Vila Soeiro, Mizarela,
Aldeia do Bispo, Codesseiro
Benespera, Corujeira,
Vila Cortês do Mondego, Vela,
Porto da Carne, Sobral da Serra,
Castanheira, Carvalhal Meão,
João Antão, Santana da Azinha,
Pêro Soares, Seixo Amarelo,
Videmonte, S. Miguel de Jarmelo
Vila Franca do Deão, Vale da Estrela,
Albardo, Gagos, Marmeleiro
Pêra do Moço, Vale de Amoreira
S. Pedro de Jarmelo, Casal de Cinza
Monte Margarida, Pousada,
Rocamondo, Maçainhas de Baixo,
Panóias de Cima, Arrifana,
Gonçalo Bocas, Ribeira dos Carinhos,
Até Pega
De tantas recordações
E corações despedaçados
Que todos os seus pecados
Têm sido anos de sonho.
A Guarda, com as suas freguesias;
A Sé, São Vicente, São Miguel da Guarda
É a minha amiga que tarda.
GRANITO
Talhados nos rochedos
Nascem homens e monumentos.
A terra ergue-se pujante
Regada a suor, sangue e gritos.
“Puxa, corta, adelgaça, levanta”.
Rasga-se a serra, rasga-se a montanha
Para a fecundar, para lhe dar a alma
A alma, esse enorme pensamento
Está impregnado na Sé Catedral
Nas casas humildes da Judiaria
No Paço Episcopal, nas muralhas,
Na torre de Menagem, nas portas da cidade,
Nas calçadas, na Torre dos Ferreiros.
E tudo respira
Tudo se manifesta na humanidade
Que o granito conquistou
Mas o homem modelou.
A Guarda é toda granito:
Uma enorme fortaleza
De gente sã.
O granito é o nosso cristal.
E a cidade? A mais nobre de Portugal.
A MERENDA
Merendar ao ar livre, Sol e vento
É um dos prazeres dos guardenses.
Em dia de festa, não há coisa igual.
Se a Mata e o Parque são aprazíveis
Nas festas da Santa Cruz
Há povo por todo o lado.
E nas festas da Senhora do Mileu?
Entre benzeduras e orações
Cada um larga os sermões dos padres
E procura o melhor lugar para merendar.
Todos são convidados ao festim.
Tudo é farto, agradável, apetitoso.
Os sacerdotes terminada a função
Olham gulosos cada refeição;
Escolhem a melhor entre as melhores
E aí abancam, sem cerimónia
Que o estômago não perdoa mais demoras.
Vêm de todo o país, nestas alturas,
Excursões para o festim.
Visitam os amigos, os pais, os avós.
Uma minhota que tudo observa
Repara no padre, de guardanapo ao pescoço.
“Ai, o senhor abade, como ele se sente bem.
Gosta de manjedoura farta como eu.”
O marido dá-lhe uma cotovelada.
“Ó homem, que modos!”
“Vê se evitas a asneira”
Diz-lhe o homem envergonhado.
“Vê lá tu, se falar é pecado"
A Guarda orgulha-se da sua gente.
Em dia de festa tudo se conhece
E quem quiser merendar, aparece.
O VOLFRÂMIO
Nesta cidade altaneira
Aqueles que mais me impressionaram
Foram os homens que labutaram
À procura do volfrâmio.
Um deles, cujos netos são conhecidos,
Contou-me quantos sacrifícios
Passou para sair da miséria.
Mas conseguiu, à força de vontade.
E agora, naquela idade;
Já tinha setenta e seis anos
Aquilo que recordava com mais saudade
Era a sua Marília.
Resistira à maldita silicose,
Resistira à fome e ao frio,
Mas à morte da Marília
É que não conseguiria resistir.
“Sabe, dizia ele, a saudade mata,
Ai se mata! Para que serve o dinheiro,
Se eu não lhe pude comprar a vida?”
O volfrâmio era o ouro negro
Que Portugal exportava sem ruído.
E este homem, que o tempo tinha vivido,
Mais nada queria da vida que a sua Marília.
São assim os homens da Guarda e do concelho:
Cegos pelo trabalho, mas sempre
De coração aberto para a família.
O REGIMENTO
Fazendo parte da cidade;
O Regimento de Infantaria 12,
Mais o Liceu, o Seminário,
O colégio das Doroteias,
O Outeiro de S. Miguel
A Escola Regional
Eram pólos de alegria e vivacidade
Numa cidade onde a chuva, a neve,
O frio e o cinzento dos muros
Poderiam esmorecer as gentes.
Mas não. Na Guarda
O sangue circula.
O Regimento, com as suas marchas,
Alvoroçava toda a cidade.
"Toca a banda no coreto?
E a este sinal de alarme
Todos acorriam e ouviam
Enleados na harmonia
Aqueles jovens magalas
Que melhor que a telefonia
Davam espectáculo ao vivo.
Foi assim que a Guarda cresceu
OS CAFÉS
No tempo em que havia cafés
E em Portugal tínhamos o Tejo
Sem as barragens de Espanha
Que aos poucos e poucos
Tudo arrebanha
Naturalmente e com muitos euros,
Havia cafés na Guarda
Onde a juventude estudava
Jogava bilhar e conversava.
Era ali que as farras eram combinadas.
Passávamos da Cristal para o Mondego
Corríamos para o Monteneve.
Eram o lugar de encontro privilegiado
Para um descanso ou uma maroteira
Que os empregados, de paciência santa,
Tentavam acordos complicados
Desde que os estudantes estivessem avinhados.
Eles sabiam quais os limites
E, se nesse dia não levavam a melhor,
No seguinte chamavam o futuro doutor
E lá o convenciam a pagar a garrafa
Perdida por baixo da capa e batina.
Hoje não existem cafés
Como os de antigamente.
Hoje o café chama-se lucro, euro
Muitos euros e até a Guarda caminha
Para a globalização.
Vamos ver se a sua altura a salva
Da padronização universal.
Pode não ter sido aqui
Que nasceu Portugal
Mas foi seguramente aqui
Que nasceram os primeiros portugueses.
O CONVENTO DE SÃO FRANCISCO
Quantas vezes a bebedeira
Nos adormecia a decência
E com muita irreverência
Cantávamos à Ritinha.
O Calheiros bem se esforçava
Para que a heresia não fosse grande
Eu fazia a letra num instante
Rita de Cássia aparecia
Como se fosse a namorada
Que não ligava importância
Ao estudante desbocado
Que tinha a ousadia
De cantar, sem harmonia
A uma santa consagrada.
A paixão era tão grande
Que o amor platónico servia
Para contentar o estudante
E fazer com que o tunante
Ficasse mais aliviado.
No convento de S. Francisco
Por onde a santa passara
As paredes ainda gemiam
Pela santa que guardaram
E que os olhos comiam.
Esta ideia de sedução
Criava no estudante a paixão
E o platónico suspiroso aqui deixava
Desejo e coração.
Quantas saudades Ritinha!
A COVA FUNDA
Tinha ido para a Guarda para estudar.
Eu queria fugir de mim,
Das minhas cedências,
Do dinheiro que me perdia.
Mas há um destino que aponta
O caminho do irresistível.
Logo no primeiro dia
Cruzo com o Manuel Poppe
Que afirmava acalorado,
A quatro foliões,
Que o vinho da Cova Funda
Deitava qualquer um abaixo.
“Menos ao Simões”
Disse eu ao passar.
O Poppe, que não me conhecia,
Desafiou-me imediatamente:
“Pago meio litro se o beberes.”
Olhei-o arrogante: é para já.
Depois de bebido, o Poppe abanou-me:
“Não estás bêbado?”
“Nem que fossem cinco litros”
Respondi-lhe desandando.
O Poppe disse:
“Se ele consegue... e eu, por que não?”
Bebeu do tal tinto.
A partir daí nunca mais se entendeu:
Foi ao Colégio das Doroteias
Onde tinha uma namorada.
Chamou por ela, falou com ela,
Mas como a Fernandinha
Lhe sentiu a enorme bebedeira
Recusou sair do lar sereno.
O Poppe, não esteve com meias medidas
Agarrou-a pelo cabelo
Arrastou-a pela escada.
Foi um escândalo.
Mas o Poppe...
Era filho do senhor Desembargador
Afinal a culpa maior
Tinha sido minha
Pois era um grande bebedor.
Assim se fez a fama
De um estudante que queria estudar
Mas cuja fanfarronice
Lhe marcou mais um ano de estroinice
O FUNERAL DO CINEMA
Quando os estudantes se zangam
E se resolvem congregar
Cuidado, gentes do dinheiro
Ou em quem neles quer mandar.
Sentindo-se ofendidos,
E por um deles ser insultado,
Juntou-se a academia
Para saber o que faria
A tão insólito proceder.
Aumentar? Insultar um dos seus “académicos?”
Um dos seus pares de estroinice?
Quem ousar tal é punido.
E na Assembleia foi decidido
Que nem um só estudante
Entrasse naquele cinema.
O prevaricador recebia a pena
De cabelo rapado.
Mas, se para os donos do cinema
O prejuízo era grande,
Para a juventude era um sacrifício;
Os divertimentos não abundavam.
Um ou outro não resistia
A tamanho sofrimento,
Era cedo para ir para a cama.
E lá ia, às escondidas, bem disfarçado
Mas os veteranorum sempre alerta
Esperavam-no à saída.
Rapado e bem rapado foi o Tracana.
E o Paulinho Miróscas
Também não se livrou de uma boa corrida.
Naquele ano nem o cinema ganhou
Nem os estudantes se divertiram.
O BAPTISMO DO CALOIRO
Um bom começo de ano
Tem sempre umas boas histórias
Salpicão, presunto e queijo
Que um ou outro trouxe de casa
Para os amigos, e para matar o desejo
Enquanto se esperam os caloiros.
Quando o “rebanho” está composto.
Seguem as intimações:
Tu e tu e tu trazem o lençol
Tu e tu vêm de calções,
Aquele vai de braguilha aberta.
Juntos em duas centenas
Aí vai a caloirada rumo à Dorna;
Um chafariz a preceito
Onde começa o baptismo
Sempre à espera que um refile.
Tem de haver um refilão
Para que nesta provocação
O baptizado ganhe animação.
Se não há, inventa-se.
É preciso ganhar vontade
Para ao entardecer e à noitinha
Os veteranos celebrarem, entre pares,
Os louros da sua sapiência.
Correm-se as tabernas
Ouve-se da Libânia os conselhos
Vêem-se, às meninas, as pernas
Para excitar as serenatas.
E quando já de madrugada
Só restam dois ou três.
Eles prometem, já “torcidos”
Fazer baptismos de mês a mês.
NOTAS A CINCO PAUS
Nas aulas do António Pinto
Quando as preparações ferviam
E cada um lhe perguntava
O disparate mais incrível,
O Cruz, o contínuo,
Tentava ajudar o Pinto
Mas já o Feio se lambuzava
De sacarose e glucose.
O Pinto não sabia para onde se voltar
E o Cruz, que tudo sabia, preparava as soluções.
Nesses momentos, o Bardino,
Roubava a caderneta ao professor
E aos que tinham negativas perguntava:
“Queres que te passe o nove para dez?”
“Quero” respondia o infeliz.
“Cinco paus”
E de cobrança em cobrança
O Bardino, arranjava sempre o suficiente
Para lancharmos na Orquídea.
O MEIA LECA
Dois palmos de altura
Metro e meio, mal medido,
Eis o Meia Leca da estatura
Do Marquês de Pombal.
É verdade que não reconstruiu Lisboa
Mas conhece-o todo o Portugal.
É da Guarda natural
Como estudante de peito.
As suas tropelias são tantas
E as bebedeiras tão famosas
Que era o ídolo da estudantada.
O Meia Leca era a graça
Que não ofende.
Pequenino, irrequieto, matreiro.
Nas aulas do Zé Vilhena
Tinha sempre maneira de colocar o capote
No cimo de um alto cavalete
Logo que a aula era estopada
Pedia, ao Zé, licença,
Para tirar do capote o lenço.
Ao ficar a baloiçar
Na haste gigante a partir
Logo gritava o professor:
Agarrai-o que se mata, agarrai-o.
Era o que todos queriam ouvir.
O Meia Leca a sorrir
Passava ali dez minutos
E a aula terminava
Com toda aquela “cambada”
A sair com o Meia Leca aos ombros.
Mas a sua fama é tal
Que foi cantado em esparsa
Pelo Shegundo Galarza
E oferta a “su” amigo
Meia Leca.
Diplomata da palavra
Porte de aristocrata:
Alto como uma torre,
O Zé Dias confundia
Com quem com ele convivia
Nos terrenos da Egitânia.
Oficial garboso,
Sempre fardado a rigor.
Incapaz de uma ofensa
Era o modelo da elegância
Da brincadeira e da prudência.
Admirava-o como a um deus.
Passaram mais de quarenta anos
Sem o voltar a encontrar.
E no encontro que tivemos
Não nos reconhecemos:
O meu deus encolhera no tempo,
Eu envelhecera na idade.
Da juventude ficou a semente:
O Zé Dias ficou como referência,
Como modelo de sã camaradagem.
E na minha viagem pelo tempo
Serviu-me de luz e de contenção.
O Zé Dias foi na Guarda
O grande amigo,
Um exemplo, a melhor lição.
O INVERNO
As noites de Inverno
Seriam de inferno
Para os menos protegidos.
Como sobreviviam?
Que força anímica os ajudava
Na caminhada da vida?
A rua da Torre era gelo.
Perto dela a taberna.
As almas engelhavam.
A cidade encolhia.
Os filhos tremiam
A aguardente aquecia
Enquanto a neve caía.
O Inverno na Guarda
Foi o agasalho dos pobres
No cemitério.
O CALIFA
Refastelado na padiola
Abanado com leques de plumas
Meia Leca, o mariola,
Ia feliz como um nababo.
Atrás do lorde ia o séquito
Envolvido em lençóis brancos.
E enquanto a gente da Guarda
Se perguntava “o que era aquilo?”
O Meia Leca exigia
Um maior número de abanões
E mais um dos garrafões.
O Califa não se cansava de beber
Perante o desespero dos carregadores.
“Ó Meia Leca, passa para cá.
Não há quem aguente mais!”
O Meia Leca benzia-os
Com umas gotas de tinto.
“Carregai, carregai mais um pouco,
É só chegar até à Dorna”
“Acabou! disse o mais zangado,
Isto do Meia Leca ser nababo
Cansa e seca que se farta!
Ou nos passas já um garrafão
Ou vais ver o trambolhão
Que o Califa dá.”
O Meia Leca, vendo o perigo, respondeu
“Bebei rapazes, bebei
E a toda a gente dizei
Que o Meia Leca não gosta de ver sofrer”
Mas não resistindo à brincadeira
Despejou-lhe os garrafões sobre as cabeleiras.
A SOVA
Estudar? Nem é bom pensar.
Quem gosta de tal canseira?
Só os professores
Que esqueceram a juventude
A praxe e outras facécias.
Entre os mais ferozes
Estava o “Paramécias”,
Que num dia mais violento
Deu, num exercício, medíocre menos
Ao meu amigo Cameira.
E, não contente com a asneira,
Exigiu que o mesmo fosse assinado
Pelo encarregado de educação.
O Cameira pediu ao encarregado Moreira
Para lhe escrever por favor:
“Carreguei-lhe deveras com um pau”.
Quando chegou diante do vilão
Este viu-o todo torcido e dorido.
Perante o espanto do professor
O Cameira aponta-lhe o caderno.
Logo que o carrasco tal leu
Riu, o boçal, esfregando as mãos.
”Levaste, sofreste, apanhaste,
Louvado seja Deus!
Esse Encarregado de Educação
É cá dos meus.
A partir de agora ficas debaixo de olho”
“Não faça isso”, gemeu o Cameira
Fazendo voz de sofrimento,
“Senão o senhor Moreira
Ainda me deixa zarolho”
E enquanto a estudantada
Via o tempo da aula passar
O “Paramécias” ria contente;
Tinha encontrado, finalmente
Um verdugo à sua altura.
Éramos assim educados
Entre varadas e palavrões.
Agora, Manuel,
Exageraste, voaste longe.
Foste de abalada
Para o lugar a todos reservado
Onde o espírito se confunde
Com o universo.
Espera por nós, Manuel