CAMILO

O Freitas pensa que por eu estar quase cego, isso me impede de raciocinar.

FREITAS

Eu não digo isso.

CAMILO

Mas pensas, o que é bem pior. (Camilo levanta a mão para lhe bater e Nuno, percebendo o gesto, empurra o amigo para que Camilo lhe chegue.)

NUNO

O almoço está na mesa. Têm dez minutos para se prepararem. (Vai junto do irmão) - Vamos Jorge, o pai e o Fortuna já vêm. (saem os dois)

CAMILO

Não te esqueceste do pedido?

FREITAS

Falarei com o médico. O Nuno agora pareceu-me mais cordato.

CAMILO

Eles pressentem que chegou a hora. Tudo se acalma. Os seres tornam-se mais lúcidos.

FREITAS

É a incerteza do dia seguinte que torna o ser humano vulnerável e frágil.

CAMILO

A certeza também não lhe dá segurança. Vamos. O almoço está na mesa.

CAI O PANO

III ACTO

(Camilo sentado à secretária do quarto, acaricia um tinteiro de prata. Além dos livros e roupa, uma garrafa de Porto, uma caixa de charutos, chapéu preto e bengala. Fala sózinho)

CAMILO

Estou velho e cego. Durante mais de quarenta anos trabalhei noite e dia... vida inútil e desgastante. Vendi obras primas que nunca mais terei, e eu vendi-me por tuta e meia.

(Entra Ana Plácido)

ANA

(passa-lhe a mão pelos cabelos) - A escrever?

CAMILO

A sofrer.

ANA

Tens dores?

CAMILO

De alma. Quando não são umas, são outras.

ANA

Queres que leia ou escreva?

CAMILO

Não consigo sair desta apatia.

ANA

Baixaste os braços, à força de dizer que não és capaz.

CAMILO

A vida urdiu-me esta cilada e, também tu, sofres as injúrias.

ANA (acariciando-o)

Eu amo-te.

CAMILO

Tu, ainda hesitaste... eu insisti até cederes.

ANA

Não me arrependo.

CAMILO

O Pinheiro Alves não perdoou o agravo. Levou-o, no pensamento, para o túmulo e conseguiu conservá-lo todos estes anos para que remíssemos, ainda neste mundo, o mal que lhe tínhamos causado. Continua usurário.

ANA

Não sejas mordaz. O Pinheiro Alves sofreu muito.

CAMILO

Levou para o túmulo rancores de maldição: o Manuel morreu, eu estou cego, o Nuno, crivado de doenças é desordeiro, bêbado e jogador, o Jorge, volta que não volta, está no Conde Ferreira. Só tu, sem um queixume, vives a tragédia e manténs a força e a coragem!

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