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LIVRO EM PREPARAÇÃO:

 

OLÁ JUVENTUDE

 

A inteligência é uma fonte inesgotável. Quanto mais se usa, mais ela dá respostas surpreendentes.

O homem, sendo o mais inteligente, é o mais irracional dos animais. Possui raciocínio e 

usa-o para se destruir e ofender.

Destrói-se fazendo guerras absurdas na tentativa de obter pela força aquilo que não consegue através do mérito.

Ofende-se deixando que a ignorância se espalhe como a sarna ou a sida, e não lhe acode como faz a estas doenças.

Ofende-se porque a ignorância faz que o ser humano viva na miséria e na degradação mais abjecta e de todo contrária ao estatuto de ser humano.

Por que esta irracionalidade, do pseudo racional, sempre me fez muita confusão, dei largas ao instinto para equilibrar o racional irracional que sempre senti e me faz ter desejos e vontades que eu não quero ter porque agridem os outros.

O meu irracional é muito forte e só puxando-lhe violentamente as rédeas ele não actua pior do que deseja actuar.

Este livro é o percurso de um irracional racional que continua a pensar que os guerreiros de antigamente e os dos nossos dias são homicidas comandados que acatam as ordens de chefes loucos que os condecoram para que assassinem os seus semelhantes. Estes assassinos, a coberto da lei, são autorizados a matar e a morrer para satisfazer os impulsos que não conseguem dominar.

Apesar do que acabei de afirmar, todos somos deuses criadores que não acreditamos nas nossas potencialidades. Todos somos capazes de atingir os objectivos, que idealizamos, a partir do nada.

Quem acredita nos seus poderes e nas suas capacidades usufrui a vida com a certeza de que os seus direitos são ilimitados e que pode atingir, no campo do bem, do amor, da inteligência e da riqueza, tudo quanto desejar desde que estude e raciocine sobre aquilo que pretende.

Hoje, quase tudo está inventado, assim, podemos aproveitar esses conhecimentos para os desenvolver, aperfeiçoar ou criar as condições que nos interessam e ao mundo envolvente.

Há algo que tem de interessar a todos sob pena deste mundo se desfazer pela indignação: a pobreza e a miséria não são admissíveis num mundo onde os recursos são imensos e muitas vezes estão totalmente desaproveitados ou mal distribuídos.

Há duas formas essenciais para fazer sair o ser humano da lama onde nasceu e onde vive: a instrução e a educação.

Pela instrução ele adquire o conhecimento e o saber; pela educação atinge o nível moral, intelectual e físico que há-de fazer dele um ser perfeito.

Os Governos dos países ricos e desenvolvidos ao enviarem toneladas de alimentos, para os esfomeados de África, fazem-no como quem alimenta animais de abate ou de combate. Estes Governos não querem estes desgraçados nem instruídos nem educados, se quisessem resolveriam rapidamente este flagelo.

As campanhas de instrução e educação podem ser levadas a cabo através da Internet, da televisão e apoiados por milhares de reformados que em vez de esperarem a morte a olhar para o sol, aceitariam, por remunerações simbólicas, ensinar a desenvolver aquelas regiões enquanto através dos meios de comunicação se insistia na instrução geral e na educação.

O dinheiro, que os países ricos gastam nas ajudas alimentares mal sucedidas e na entrega de milhões de dólares, a Bokassas insaciáveis, daria para acabar com a miséria e a pobreza.

Os países ricos e desenvolvidos precisam de povos menores e infelizes para experimentar as suas armas até que elas se voltem contra eles próprios; veja-se o caso do Afeganistão ou do Iraque a quem os Estados Unidos forneceram armas sofisticadíssimas.

Foi para entender tudo quanto acontece e por que acontece, neste mundo, que o meu percurso se fez sempre com os olhos postos no outro: por que é que eu tinha isto e o outro não tinha? Por que é que eu era feliz e o outro não era? Por que é que as guerras se desencadeavam se os homens tinham a fala para se entenderem? Estas e outras questões condicionaram a minha vida e fizeram que eu escrevesse algumas dezenas de livros nos quais tentei aproveitar os anseios das pessoas com menos cultura e menos compreensão dos acontecimentos para os informar e incitar a atingir níveis superiores de modo a poderem viver sem dificuldades e mais felizes.

Neste livro descrevo parte do meu percurso neste mundo e os meus anseios. As minhas tentativas para chegar ao zero e a partir daí reconstruir a vida só para compreender as dificuldades. Já bati no fundo.

 

O século XXI será o teu e o meu século.

Vamos utilizar a inteligência para vencer as dificuldades. Nunca tenhas receio dos chamados bloqueios do pensamento, de não seres capaz de raciocinar correctamente em momentos decisivos. O bloqueio é um terror irracional que impede de resolver até os pequenos problemas.

 

Usa e abusa da inteligência. Aplica-a sem medo. Usa e abusa do pensamento, do raciocínio, da imaginação. Nunca te enerves, nunca te precipites nas escolhas, nas compras, nos empregos. Pensa, raciocina, decide. Sê feliz sem seres inconsciente ou pateta. 

A inteligência aumenta à medida que aumentas o teu conhecimento. Como disse no início: a inteligência é uma fonte inesgotável, com ela tu atinges todos os teus objectivos. A memória é o assessor da inteligência. Para teres boa memória basta tentares fixar assuntos de interesse e que tu penses mais complicados do que o normal. Ter boa memória é uma questão de aprendizagem. Insiste uma, duas, dez, quinze vezes e faz assim sempre que pretendas saber mais, ao fim de um certo tempo já te bastam três ou quatro leituras para fixar tudo com muita facilidade. Repara nos actores. Eles decoram páginas e páginas de texto. Têm melhor memória do que tu? Não. Treinaram. A memória ajuda a inteligência. As comparações e as deduções são muito mais rápidas. O raciocínio torna-se fluente.

 

Partir do zero é o que eu faço quando escrevo romances, poemas, peças de teatro, ensaios, crónicas em jornais, conferências.

Criar novas formas de trabalho ou de lazer tem custos mínimos; basta um pouco de cultura, muita vivência, muito à vontade, algum estudo, lápis, papel e, se possível, um computador.

Aproveitar desperdícios, inventar maneiras não poluentes de fabricar utensílios indispensáveis à vida humana, nunca desistir de aumentar o progresso e o bem-estar humanos é outro meio para alcançar objectivos.

 

No mundo há ainda muito a descobrir, muito a inventar. Quem não tem outro trabalho, inventa. Muitas companhias americanas, japonesas, alemãs, holandesas e outras dão prémios aos empregados que melhorarem a produção com pequenas inovações. É sempre possível inovar. É sempre possível ter novas ideias e descobrir produtos úteis para a humanidade.

 

Vender ideias dá lucros enormes. Com ou sem ajuda do Estado, inventa processos que façam evoluir os países e desenhem a felicidade das pessoas.

Não guardes nem escondas o que inventares. Não sejas egoísta, não queiras tudo só para ti; primeiro, porque não lucras nada com isso, segundo, porque à hora da morte estás cheio de remorsos e o dinheiro fica cá todo para os familiares te esquecerem o mais rápido possível e aqueles a quem prejudicaste te rogarem tantas pragas que nunca mais paras de dar voltas na tumba.

Vende os teus projectos; entrega-os para benefício do mundo. Deixa voar a tua inteligência.

Ser diferente é ser mais inteligente que os outros.

A inteligência é o aperfeiçoamento e o desenvolvimento das nossas capacidades.

Ao entrarmos neste mundo todos trazemos um painel fabuloso de instrumentos que têm a sua localização na cabeça, daí a frase frequente dos professores: “puxa pela cabeça”.

Alguns dos homens mais inteligentes e que mais fizeram pela humanidade, quando jovens, e já bem adultos, ninguém acreditava neles; nem pais, nem professores.

Einstein reprovou várias vezes e foi considerado incapaz. Mas tens outros: Churchill, Volta, Darwin, Picasso, Edison, Ford, Newton, Puccini, Zola, etc, etc, na juventude eram considerados verdadeiras nulidades. Cito-os no livro “Doenças que as Plantas Curam”.

 

Acredita em ti. Faz um pequeno esforço e verás que a vida é um prazer aliciante e permanente.

 

Queres uma ideia para um invento?

 

Quando se escreve, um dos grandes medos de quem começa, uma das hesitações do escritor é: eu escrevo para quê? Há gente que sabe muito mais do que eu, e já escreveu sobre o mesmo tema ou temas semelhantes. Para quê perder tempo e fazer perder tempo aos outros?

Este pensamento faz desistir muitos escritores. Para que isso não aconteça, e comigo também aconteceu, teria de compensar o leitor caso não lhe agradasse a história.

Durante quatro ou cinco anos, não publiquei poemas ou pequenas novelas que tinha escrito devido a estes preconceitos, só o fiz por razões adiante explicadas. Mas já em miúdo achava que os livros também se deveriam comer. Quem não gostasse da história comia-a. A frustração do escritor seria muito menor e o leitor compensava a sofreguidão do saber, pela gulodice do sabor.

Aqui tens a ideia: inventa o papel e a tinta comestíveis. Pasta de livro, com duração para um ano de espera, como os bolos de mel da Ilha da Madeira. Duraria um ano, depois, só a traça lhe conseguiria meter o dente.

O papel podia ser feito de sementes de trigo ou de qualquer outro cereal, tratado para o efeito. Como tinta serviriam as amoras, as romãs ou outro fruto fixante. Queres algo de mais simples?  

 

Depois de leres este livro, escreve o teu próprio livro. Se nunca escreveste começa por fazer um diário. Ao fim do dia, verás que as ideias e a realidade da vida te aparecem com mais nitidez. Vais-te espantar das tuas asneiras ou até dos teus actos mais nobres. Escreve os teus sonhos. Se conseguires que revistas ou jornais te abram as portas, aproveita. Ao veres as tuas crónicas impressas, sentes mais confiança em ti. Desta maneira, tu participas na vida do mundo, sentes que és alguém, não és mais um animal bio degradável.

 

Akio Morita, o fundador da Sony e inventor de muitos produtos no campo da electrónica, num encontro casual com o meu amigo Manuel Guimarães, disse-lhe que os portugueses eram o povo mais intuitivo e um dos mais inteligentes do mundo.

O português gosta de aprender, mas tem de ter confiança em quem ensina. A falta de produtividade não está na preguiça ou no desinteresse dos portugueses, está no material obsoleto com que trabalham e na incapacidade dos mestres que os orientam. Muitos professores continuam a obrigar os alunos a decorar resmas de papel inúteis em vez de os ensinarem a trabalhar com o que aí está escrito e aprenderem com a vida que os rodeia. A escola tem de ser o lugar onde se deve aprender brincando.

 

Eu acredito no cientista Japonês: em breve passaremos de um país de analfabetos ao país mais alfabetizado, mais culto, mais evoluído e mais civilizado do mundo.

É o analfabetismo e o semi-analfabetismo, em que vive uma boa maioria do povo português, que o faz arrastar pela cauda da Europa. Isso não significa menos capacidade, nem menos inteligência. Significa forçar mais a contemplação para, neste século, resolvermos não só o problema português mas ajudar nos problemas de todos os povos do mundo. Fizemo-lo há quase mil anos quando quisemos ser independentes e nos estruturámos de modo a criar uma nação sólida. Mostrámos todas as nossas capacidades quando nos envolvemos na aventura marítima ao descobrir dois terços do mundo desconhecido e ao edificarmos novas nações. Voltamos a fazê-lo agora com mais saber, consciência e ponderação ao integrarmos a União Europeia.

Foram os portugueses que juntaram os povos dos vários continentes, serão agora os portugueses que, fundidos na Europa, conseguirão a solidariedade e a igualdade mundial. Ou ela, ou uma nova destruição do planeta com mais de 600 milhões de anos e 2,5 biliões de seres, ditos humanos, a viver pior que os animais, ditos irracionais.

 

A diferença entre os australopitecos, ou seja; os primeiros arremedos de homens e o Homo sapiens sapiens, que hoje anda para aí engravatado ou esgravatando o lixo da subsistência, a diferença é mínima; os cérebros equivalem-se, na medida em que, os primeiros tinham crânios pequenos, e não sabiam tirar partido deles. Aos dos nossos dias acontece-lhes o mesmo. Ainda não descobriram que não vivem sós neste planeta. E, se não descobrirem rapidamente, a explosão é inevitável. Aí volta tudo ao príncipio: outros 300 ou 400 milhões de anos a passarmos de poeira a vermes, de vermes a batráquios, de batráquios a bugios, de bugios a australopitecos, de australopitecos a Homo erectus, de Homo erectus a Homo sapiens e de Homo sapiens a esta espécie sempre em vias de extinção logo que tenta, por todos os meios, envenenar o planeta ou destrui-lo com as suas armas de defesa e os seus exércitos de ataque. É a luta do homem contra a Natureza. Enquanto esta, teima em o proteger, para encontrar um parceiro que a fecunde em actos sucessivos de amor. O homem continua a fazer-lhe negaças.

 

O Império Romano, o Mongol, o Persa etc., foram desenhados à espada. O Império Português foi a geminação do conhecido ao desconhecido e a entrada deste, no mundo civilizado. As conquistas, quando as houve, foram motivadas por actos de defesa ou auto defesa quando os povos rejeitavam as nossas propostas de paz e de comércio.

 

Apesar de todos os defeitos dos portugueses tenho a certeza das nossas aptidões.

O Quinto Império tem como base o pensamento e como suporte os canais digitais. A boa utilização de um e dos outros terá, como efeito, o acesso da educação a todos os povos do mundo, a eliminação da miséria e a instauração da paz. Sem que estes três items sejam activados, o ser humano sujeita-se a cataclismos periódicos e devastadores.

 

Pensa por que será que o mundo tem mais de 660 milhões de anos e só há pouco mais de 5 mil anos temos documentos incoerentemente escritos. Não conto as garatujas feitas nos 15 ou 20 mil anos anteriores, apesar da reverência com que são tratadas, em contraste com o desrespeito pelos analfabetos e os miseráveis que sofrem todos os dias por causa da sua incapacidade ou do seu nascimento.

 

Eu acredito nos portugueses.     

 

O país tem de apoiar sempre os melhores. Os melhores são todos, com excepção dos tolos. Todas as hipóteses têm de ser consideradas e os Governos têm de pensar neste sentido. Quando os Governos não o fazem são os cidadãos que têm de se unir para sua defesa. Um dos Governos que melhor protege os seus cidadãos é o Israelita. Como exemplos de outras uniões temos as Igrejas, os Rotários, os Lions, a Maçonaria, a fundação Aga Khan etc., onde os seus membros se protegem uns aos outros. São pequenos Governos dentro de outros Governos. 

Há muitas companhias americanas e Japonesas que têm um orçamento maior do que o do Estado português. Elas fazem a formação dos seus operários É uma questão de boa gerência para um óptimo resultado.

 

Cheguei a pensar em unir os pobres, mas o mal dos pobres é a sua ignorância. Muitos não sabem o que querem. O não saberem ler, escrever, contar, o não saberem raciocinar faz deles farrapos perdidos no tempo. Para unir os pobres tinha de acabar com o analfabetismo e para isso é preciso motivar os governos ou multi-milionários muito poderosos.

A pobreza foi, e continua a ser, a minha grande angústia. A minha dor era tão grande que, no primeiro livro que escrevi, dizia que desejava ser cego para não ver o que me rodeava. Lembro-me como meu pai ficou triste e me reprovou tal desejo. Ele disse-me:

“Tu estás a ser inconsciente e egoísta. Inconsciente porque rejeitas um bem, e egoísta porque tentas fugir à realidade da vida. Se te aflige tanto a pobreza e queres acabar com ela luta para que isso aconteça, mas garanto-te que tens de o fazer de olhos bem abertos. Cego, não terás quaisquer hipóteses de sucesso.”

A miséria que nos rodeia faz de nós verdadeiros excrementos do céu.

Como é possível ser-se democrata ou ter qualquer outro rótulo político e deixar morrer de ignorância e fome mais de dois biliões de seres? Ou democracia é hipocrisia ou democracia é um enorme falhanço político, económico e cultural, assim como o são as outras formas de governo. A miséria não se combate dando, combate-se ensinando.

Em Portugal só a Fundação Gulbenkian, poderia ajudar a resolver rapidamente a situação já que o Governo não tem conseguido atingir os objectivos: erradicar o analfabetismo, e aumentar o gosto pelo conhecimento. A consequência seria uma diminuição, muito grande, dos mais carenciados em virtude dos instrumentos de defesa que lhe seriam fornecidos, logo: aumento da prosperidade do país no seu conjunto. Vejam-se os casos da Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Japão onde, praticamente, não há analfabetos. Verifique-se a prosperidade e o bem-estar desses povos apesar das condições climatéricas que os fustigam.

 

Desde miúdo nunca me conformei em ter amigos ou conhecidos pobres e prometi que, até ao fim dos meus dias, por maiores dificuldades por que passasse, havia de desvendar o porquê desta indignidade que nos mancha a todos e que faz viver, mais de metade dos seres humanos, em condições de escravatura económica e cultural.

Para combater a pobreza teria de conhecer todos os segredos da vida, passar por dificuldades e pelo máximo das profissões.

 

Desvendo-te a minha vida para saberes que todos erramos, mas que todos podemos alcançar o objectivo que perseguimos. Não há santos ou pecadores, todos somos humanos e sujeitos à cegueira da ignorância quando não paramos uns segundos, para utilizar a inteligência.

 

Quando somos crianças sofremos tratos de polé, mas temos as nossas defesas.  

Em criança, salvo quando estamos muito obcecados por uma brincadeira, os nossos sentidos estão sempre alerta. A criança é uma esponja que absorve tudo e tudo tenta descodificar.

Minha mãe magoava-me, sem dar conta disso, quando dizia às amigas e às vizinhas:

- Ele devia ter saído rapariga.

Apesar de criança ficava triste. Não sabia porquê. Para ajudar “à missa”, as amigas respondiam invariavelmente:

- Ele é tão bonito, até parece uma menina.

Para comprovar essa afirmação lambuzavam-me de beijos que eu limpava discretamente ou corria para a casa de banho fazer uma lavagem ultra rápida. Minha mãe encarregava-se de me dar banho duas e três vezes por dia e mudar de fato sempre que eu lhe aparecesse com alguma nódoa ou a cheirar menos bem. Tratava-me como se eu fosse uma menina de verdade.

Minha mãe tinha o sentido do ridículo no feminino. Nunca a vi sair de casa sem a deixar impecavelmente arrumada e ela impecavelmente arranjada.

Nas mulheres notam-se, com mais evidência, as suas fraquezas: se são feias, nota-se mais a fealdade, se são gordas, nota-se mais a obesidade, se fumam nos restaurantes, nota-se mais o fumo, as frustrações e as rugas. É próprio do feminino. O homem é só, e ainda, um prenúncio e uma visão do ser perfeito.

 

Minha mãe tinha dois enormes e simpáticos vícios: ler e fazer renda.

Eu tenho fotografias onde estou de gola de renda. O imperdoável é que as passou a usar nas minhas cuecas e a dar-me bonecas para brincar. Com tanta renda e tanta bonecada não sei como não saí maricas, mas não, pelo contrário a brincadeira com as bonecas fez-me perceber de imediato, a elegância e o cheiro femininos que ainda hoje me fazem tremer de emoção e prazer. Fiquei sempre apaixonado pelas bonecas portuguesas, as mais carinhosas, as mais doces e sensuais, muito comparáveis às tailandesas e às chinesas. Quando desinibidas e loucas são tão calorosas e sensuais como as morenaças africanas.

Graças à D. Lucrécia, minha mãe, aprendi a amar, desde criança, e a respeitar e admirar o ser mais belo que a Natureza produziu.

Eu não me apercebi da gravidade da situação. Brincar com bonecas! Sabem lá o que isso representava nesta diferença de sexos, machista e marialva do touro português, até ao dia em que fui à farmácia do Dr. Edmundo. Estava lá o sr. Fonseca, também conhecido por Casaca de Ferro. Era muito valente e muito rezingão. A garotada adorava-o, ouvia-o como a um oráculo por ser o único que nos parecia levar a sério. Ele olhou para mim e perguntou-me:

- Tens rendas nas cuecas?

- Tenho.

- Isso é só para as raparigas. E tu és?

- Não. Eu sou touro.

- Mostra.

Eu mostrei perante o indisfarçável gáudio dos mais velhos.

- Já vimos. És, és. Os homens não usam rendas. Tira-as.

- Como?

- Puxa, que elas rasgam.

- E minha mãe?

- Diz-lhe que se rasgaram, e tantas vezes se rasgam que ela acaba por compreender que tu és rapaz de verdade.

Eu puxei. As rendas ficaram em mau estado. Pelo caminho parecia já ouvir minha mãe: “Olha que tu apanhas se isto torna a acontecer”, pensei que também devia ter dito ao meu amigo Casaca de Ferro que brincava com bonecas que minha mãe me oferecia quando ia às lojas ou aos mercados.

O meu pai não dizia nada. Ele adorava-me, mas era incapaz de contrariar minha mãe. Ela era a chefe. Nunca os ouvi discutir. Estava sempre de acordo mesmo que, às vezes, minha mãe insistisse na pequena provocação. As mulheres gostam do combate leve, mas ele, nunca deu luta.

Minha mãe batia-me frequentemente, ele nunca interferia.

Nos meus oito anos lembro-me de duas tareias marcantes. Por esse tempo já me distraía de duas maneiras: ou a sonhar histórias ou a querer fazer experiências misturando produtos que nem sempre davam bom resultado e que por duas vezes me chamuscaram as sobrancelhas.

Num dia, propenso ao sonho, depois de tomar o pequeno-almoço, resolvi deitar-me debaixo de um sofá, na sala do primeiro andar. Aí passei todo o tempo a congeminar novos inventos, pequenas escaramuças, histórias de fadas, paraísos terrestres onde toda a gente fazia o que lhe apetecia. Cheguei mesmo a pensar que viver em África ou na Austrália devia ser o máximo: na África ensinava os macacos e os gorilas a trabalhar, assim eles passavam melhor o tempo e nós tínhamos a possibilidade de viajar e de inventar muito mais coisas. Na Austrália os cangurus seriam óptimos mensageiros. Até podiam substituir os carteiros.

Divagando sempre, nunca mais me lembrei do almoço. Meus pais, empregados da empresa de camionagem de que meu pai era um dos proprietários, polícias e outros amigos procuraram-me por todo o lado. Estavam aflitíssimos e conjuravam o pior: “foi raptado, caiu a um poço, anda perdido na mata”. Quando decidi sair do lugar dos sonhos não havia ninguém em casa.

Levei uma sova monumental de minha mãe. Meu pai nunca me bateu.

A outra foi na Quaresma: o amigo Casaca de Ferro convenceu-me, a mim e a mais dois, a pregarmos as saias das velhas, na igreja matriz. Sempre que as matracas fizessem aquele barulho característico; rac,rac,rac,rac e que muitas pessoas imitavam batendo na madeira. Nós, com um bolso cheio de pregos e uma pedra, segundo as instruções do orientador, sempre que as matracas faziam rac, rac, rac, nós traque, traque, traque; íamos pregando as saias das velhas. Quando as mulheres se levantaram foi um pandemónio. O padre Matos olhava-as inquieto, o que estaria a acontecer? Umas, meio despidas e outras de saias rasgadas.

Descoberto o ímpio levei até saciar a cólera de uma mãe, muito amiga, mas ainda longe das práticas pedagógicas dos nossos dias. Pagou todas as saias rasgadas das pessoas que se lamentaram do sucedido e que não tinham achado graça, as outras, que não tinham sofrido o ataque, sufocaram até às lágrimas; barulho não admitia o rigoroso e ilustrado padre Matos. Eu continuei a ser “vítima” da incompreensão dos adultos.

Mas nenhuma sova me servia de emenda. Lembro-me que passado pouco tempo, e também instigado pelo ateu e convincente amigo Casaca de Ferro, despejei um frasco de tinta de sapatos nas pias de água benta. O escândalo foi enorme e as risotas também. De coscuvilhice em coscuvilhice, as velhas, chegaram à conclusão que um dos participantes nas benzeduras, tinha sido eu. Bem neguei, fazendo figas atrás das costas para não ter de me ir confessar e dizer a verdade ao padre. Minha mãe, pelo sim, pelo não puxou-me uma orelha e lá foi dizendo: “se eu descubro que estás a mentir...”

Quando a sova era um pouco maior e aparecia marcado com a escova, meu pai oferecia-me boas prendas que minha mãe contestava.

- Tu é que o estragas. - Mas não adiantava muito mais, nem se opunha à oferta de brinquedos dispendiosos.

De uma sova memorável ganhei, de uma só vez: um automóvel de pedais, que era um sonho, e uma trotinete onde eu atingia velocidades fabulosas. Toda a miudagem da vila andava nela. Fazíamos corridas, para ver qual é que demorava menos tempo, desde o largo da igreja até ao chafariz. Eu ganhava sempre. Não admira, além de gostar de ganhar era o dono da trotinete e treinava em todo o sítio. Numa dessas corridas, na curva do largo da vila, vi que um burro vinha fora de mão, guinei para o outro lado, o dono do burro fez o mesmo. Resultado: fui contra o lancil do passeio, fiquei debaixo do burro, sem a sobrancelha do lado esquerdo e sem a trotinete que não teve conserto, ou meu pai disse que não tinha, para não me acontecer pior.

Apesar de tão mal tratado, o Dr. Moutinho, que me cozeu com 15 pontos, ainda disse:

- É bem feita. Agora a tua mãe devia cascar-te.

Ela abanava a cabeça. Bem lhe apetecia, mas perante o que poderia ter acontecido, conteve-se.

Quando me batia, eu não deitava uma lágrima e não deitei enquanto estava a ser cozido.

Hoje, minha mãe está com mais 90 anos e quando lhe digo que exagerava, ela, com aquele ar gaiato, que ainda mantém, mão levantada, continua na sua: “ainda foram poucas. Só se perderam as que caíram no chão.”

As sovas que levei tornaram-me insensível à dor: grandes ou pequenos com quem me envolvesse à pancada sabiam que tinham um adversário, aparentemente frágil, mas muito duro. Por estranho que pareça, nunca fiquei zangado mesmo quando me chegavam a roupa ao pêlo.

 

Minha mãe avisava-me, imensas vezes, para não mexer, não tirar, não estragar, não fazer experiências com produtos que eu desconhecia. Ela tentava todos os métodos. Era escusado. Só fazia aquilo que achava que devia fazer e era imune a toda e qualquer coacção.

Um dos meus prazeres era ir para dentro de um galinheiro que ficava junto da casa. Sentava-me no chão, tirava os coelhos das casotas, misturava-os com as galinhas e com os patos, e eu, no meio, enchia-os de comida: couves e milho. Os patos eram os mais engraçados e os que me faziam mais cócegas. Sem qualquer pudor metiam o bico por todo o lado sempre que lá sentissem um pouco de comida. Minha mãe avisou-me imensas vezes:

- Ainda te fecho na varanda. Ficas a ver as galinhas, os coelhos e os patos até te fartares. - Assim fez, mas por pouco tempo. As pessoas, preocupadas, batiam-lhe à porta; “o menino estava a atirar tudo para a rua”. Entre os objectos desfez-se um bonito Santo António do século XIX, que minha mãe venerava e lhe ajudava a encontrar tudo quanto perdia ou eu escondia só para brincar com ela, quatro cuecas com as rendas rasgadas, cinco pares de meias, um bibe, uma vassoura, uma pá, uma escova, um pente, um esfregão e um penico que quase acertou no jardineiro da vila, o sr. António Cruxinho.

Minha mãe não se cansava de repetir:

- Ele é impossível. Não era melhor ter saído menina?

 

Quando nasci minha mãe não teve dores de parto: levantou-se da cama, deu dois passos e aí vou eu, feito tolo, direito ao chão.

Ela justificava a minha rebeldia devido a esse facto. Era a minha costela independente a manifestar-se logo à chegada a um mundo já meu conhecido. Minha mãe tinha servido de suporte para a transferência entre o passado e o presente: é essa a função de algumas mulheres: o acolhimento dos viajantes do espaço, daqueles que, sempre insatisfeitos com os progressos do palpável, vão e voltam até ao fecho dos séculos. Talvez por ter esta opinião nunca senti minha mãe como mãe. Muitas vezes lho disse. Ela pensava que eu estava a brincar, no íntimo eu sentia o que estava a dizer e assim nunca fiz qualquer diferença entre o amor que lhe dedico e o amor que dedico a qualquer outro ser humano. Amo o meu semelhante e por isso me enfureço quando vejo que ele não é capaz de deixar de ser capacho, de se levantar e enfrentar a vida com o prazer de vencer todos os desafios e de amar. Amar só por amar sem outro interesse que a felicidade de todo o ser humano.

 

Eu gostava imenso de ir para a garagem, mexer nas peças dos carros, sentar-me ao volante de cada um e imaginar corridas de automóveis. Meu pai, quando lá me apanhava, agarrava em mim e ia levar-me a casa. Eu não tinha emenda.Aos dez anos já era capaz de conduzir razoavelmente. Este conhecimento foi motivo de muita apreensão para meus pais. A partir dos doze, treze anos, incitado pelo António Fonseca, pelo Fernando e Artur Portugal, pelo José Rossa saíamos todas as noites com o carro que estivesse disponível. Preocupávamo-nos mais com a polícia do que com o martírio dos pais. Às vezes aparecia um encartado mais velho e que nos fazia companhia, lembro-me do Dr. João Robalo Pombo, ainda estudante, ter alinhado nestes desvarios.

Quando meu pai tirava o rotor dos automóveis e tínhamos resolvido sair, nenhuma dificuldade nos fazia mudar de ideias; serviam as camionetas de carga ou as de passageiros. 

Meu pai nunca me dizia nada, queixava-se a minha mãe e esta moía-me a cabeça, mas não me batia. Aquela não era a sua jurisdição e tentava, por todos os meios, que meu pai, pelo menos, me ralhasse. Ele sofria, mas era incapaz de o fazer. Só uma vez, com ar triste, me chamou a atenção para uma tropelia.

Nas viagens que fazíamos, íamos, muitas vezes, para uma Quinta onde meu pai tinha muitas galinhas. Nesse dia, como nos apetecesse variar de ceia, o António Fonseca agarrou na espingarda e a tantas galinhas atirou que lá conseguiu matar uma. Dessa vez meu pai não resistiu ao desabafo.

- Não deviam andar aos tiros às galinhas. Duas não morreram, mas devem sofrer muito. Eu via-as coxear, fui ver porque era e deparei-me com elas cheias de bagos de chumbo. Passei toda a tarde a tirar-lhes o chumbo. Com certeza tenho de as mandar matar.

Disse-lhe que tinha sido eu e pedia-lhe desculpa. Mas não tinha emenda. À medida que os anos passavam eu comecei a saber de mecânica como um especialista. Eram os próprios mecânicos que me davam as lições.

Fiz milhares de quilómetros sem possuir licença de condução. Nunca tive um acidente. A partícula que nos protege, que trazemos connosco e nos guia, também gostava daquelas brincadeiras, que só não foram perigosas, porque ela estava comigo.

O interessante é que, com os meus amigos, a partícula me avisava para não o fazer e isso afastou-me sempre das suas conduções. Eu senti isso por dois avisos. O primeiro foi com o João Maria Milheiro. Os pais tinham comprado um belo Volkswagen verde, o João Maria sonhava com corridas de automóveis e esmerava-se na condução, eu evitava andar no seu automóvel, mas o António Fonseca era louco por andar de pó, pó, e tendo o João Maria parado junto a nós, o António Fonseca começou a elogiar o João Maria, e tanto o elogiou que este insistiu para eu dar uma volta até à Senhora do Incenso, tentei recusar, mas ele insistiu tanto que lá entrei contrariado. O João Maria deu a volta junto à igreja Matriz e aí vai de acelerar, vila fora, até que perto das tílias o automóvel ia a grande velocidade, meu pai viu-nos de relance e três segundos depois ouvia um estrondo enorme. Meu pai, louco de preocupação, correu desvairado até ao local; pensou que tínhamos batido no muro e tivéssemos caído de 7 ou 8 metros tal foi o estrondo. O João Maria conduzia muito bem, mas ainda era muito jovem e ao fazer a curva apanhou óleo e teve o azar de dar um pequeno toque no travão, perdeu de imediato o controle do automóvel e só a sua perícia nos fez bater na parede do lado do Asilo Bárbara Tavares Proença. A frente do carro subiu toda e, só por uma sorte fabulosa, não nos aconteceu mais do que um forte apertão. De todos os que acorreram ao local de acidente só meu pai estava sem fala.

Com o José Rossa a conduzir tive dois acidentes, um em Penamacor: o automóvel ficou a balouçar num valado e outro em Coimbra; foi raspando por nove ou dez carros até que eu consegui travar a máquina. A partir destas experiências deixei-me de aceitar convites de amigos meus e de conhecidos. A partícula não queria e, como eu sou supersticioso, ou dito de outra maneira, como tenho uma certa premunição do que vai acontecer, por mais que me convidassem não aceitava, mesmo que ficassem aborrecidos como algumas vezes sucedeu com o Fernando Portugal.

 

Eu não quero ser como os cães e os gatos. Eu quero ficar na história, quero um lugar permanente neste mundo revolucionário com mais de 600 milhões de anos.

Quantas vezes já nascemos, morremos e renascemos? E no entanto continuamos selvagens e incultos.

Selvagens porque nos continuamos a perseguir e a matar uns aos outros.

Incultos porque não nos entre ajudamos.

Em 500 milhões de anos devíamo-nos ter destruído totalmente, pelo menos, 5 vezes. É mais que tempo do homem se tornar humano.

Eu quero ficar neste mundo porque quero ser humano.

 

E tu, que me lês, que queres tu? Ou que pensas tu desta minha inquebrantável vontade?

 

No primeiro dia que fui para a escola primária foi uma loucura. Estava excitadíssimo. Ia aprender, com regras, ia sequioso por saber mais. Meu pai já me tinha ensinado a ler. A minha Cartilha foram os jornais: “O Século” e o “Diário de Notícias”. Eu gostava de saber muito mais. Ia ser independente. Recusei que minha mãe me fosse levar à escola. Conhecia bem o caminho pois era ali e no jardim que jogava à bola, às escondidas, aos cowboys e onde já tinha partido a cabeça quatro vezes.

Tal como todos os miúdos, os prazeres das brincadeiras e a delícia de uma bola eram irresistíveis. Ainda não tinham começado as aulas já estávamos agarrados ao esférico e em exacerbada partida de futebol. Atingiu o auge quando, na fúria do jogo, o José Rego meteu um violentíssimo golo numa vidraça do primeiro andar. Todos se encolheram. Daí a segundos apareceu o professor José Manuel Landeiro, de bola na mão, olhos arregalados, branco de emoção.

- Quem fez isto? - Apontou os destroços.

O Zé Rego estava entre mim e o Prof. Landeiro. O professor tremia com os nervos em chama. Voltando-se para mim, com olhos enormes, gritou:

- Quem foi?

Perante aquela voz tonitruante, lembrei-me do lobo mau e, instintivamente, assinalei o canhestro:

- Foi este. - O Zé Manel, como nós o tratávamos, pelas costas, o Prof. Landeiro, não esteve com meias medidas: ZÁS! O Zé Rego baixou-se e eu apanhei uma bofetada que valia 50 sovas de minha mãe. Por incrível que pareça, o professor, não se apercebeu que eu tinha sido a vítima da sua fúria, voltou as costas, e resmungou:

- Ficam sem a bola.

Quando todos viram o Zé Manel fora do alcance de uma boa risada, foi gargalhada geral sem que eu achasse piada; a face ficou vermelha durante mais de duas horas. Fiz logo jura mental que o meu prestígio nunca mais seria enxovalhado e que nunca mais acusaria alguém.

Para entender a zanga, do Professor José Manuel, é preciso compreender porque é que ele procedia assim. O Prof. era muito exigente, ensinava bem e era um intelectual. Tinha publicado: “O Concelho de Penamacor, na História, na Tradição e na Lenda”, vários escritos sobre arqueologia e história, fundou o jornal “De capa e batina” etc. etc. Só batia nos alunos em determinados dias. Sempre que a mulher, no dia anterior ou naquele mesmo, lhe tinha batido, o que acontecia algumas vezes. Eu e muitos dos meus colegas como o Ginja, o Gonçalves, o Armando e outros, assistimos a essas cenas.

- Anda cá Zé Manel. - Dizia a mulher, ele respondia-lhe:

- Oh Bitinha, tem calma.

- Anda cá. - E ali andava, o Zé Manel, à roda da mesa, até apanhar umas chineladas. Ele levava-nos lá para casa e nós assistíamos ao acto, pelas frinchas do soalho. Mas tudo muda nesta vida: alguns anos mais tarde, o Prof. Zé Manel e a mulher foram para o Montijo, e, fosse pela harmonia dos ares, ou fosse porque arranjou uns amigos que o embebedavam depois das aulas, o certo e sabido é que, todos os dias, até falecer, dava sovas monumentais na mulher.

Era bom professor, era inteligente, muito trabalhador, tinha gosto em ensinar e podia ser um homem feliz com a D. Benedita a quem dedicou o livro supra mencionado. “A minha mulher, Benedita de Jesus Nunes Gonçalves”, acrescentando na página seguinte: “Benedita: aceita este livro, escrito sob a luz do teu olhar e ao ritmo do teu coração”. Um homem que tem a coragem de oferecer um livro e declarar nele, publicamente, o seu amor, é justo que leve umas chineladas como se fosse um garoto? Há qualquer defeito no ser humano que o faz cometer actos impensados.

O Prof. José Manuel Landeiro é alguém que recordo, muitas vezes, para tentar compreender por que é que as pessoas hão-de insistir em implicar umas com as outras, em serem polémicas sem necessidade?

 

A bofetada do Zé Manel serviu-me de lição. A partir desse dia fui sempre um intransigente defensor dos meus colegas. Quase todos os anos fui chefe de turma.

 

O encontro entre um homem e uma mulher, ou a vida em comum de um casal principia a desfazer-se quando o fascínio começa a esmorecer. A ligação dos corpos é muito importante. O corpo é a materialização que os sonhos precisam para manter a chama viva da compreensão. Quando o homem ou a mulher se desinteressam pelos sensores que espevitam o amor; a ternura, a ligação do casal passa de contentamento a tortura. 

Tendo a certeza de que o sexo, no homem, é o seu ponto de equilíbrio. Tentei, em vários livros, apontar soluções para alguns percalços sem importância, e susceptíveis de reparação, que deixam, muitas vezes, o homem destroçado, irascível devido à sua incapacidade, que só é no seu pensamento, ou devido a uma exagerada sensibilidade mal controlada.

No livro “Saúde e Dinheiro, o Caminho para a Felicidade”, chamo a atenção sobre este assunto no capítulo: “A potência dos Impotentes”. No livro “Saúde e Destino” aparecem vários capítulos para estabilidade do corpo: “Homens e mulheres, problemas idênticos”, “A doença Misteriosa”, “Ejaculação precoce”, “Síndroma Orgástico”, “A Frigidez e os Desejos”. No livro “Doenças que as Plantas Curam” aparece um capítulo “As ervas da excitação” que, mais uma vez, trata do assunto de maneira correcta e sem escândalo.

Escrevi sobre este assunto, que considero fundamental para um perfeito relacionamento entre o homem e a mulher e ainda, como já aludi anteriormente, para um correcto equilíbrio do homem, porque não existe e ainda mal se divisa, em Portugal, uma disciplina de Educação Sexual que, naturalmente, explique os pequenos segredos do corpo e que, devido ao seu desconhecimento, causam traumas e frustrações de consequências desastrosas.

O gravíssimo erro da Igreja Católica, ao teimar no celibato dos padres, tem o seu reflexo na quantidade de sacerdotes apanhados nas práticas mais indecorosas ao aliciarem jovens para a prática de sexo anal ou oral. Nos séculos passados foi possível esconder estes desvios, hoje os meios de comunicação farejam qualquer escândalo e denunciam-no. Nos Estados Unidos, só de uma vez denunciaram 117 padres. A pedofilia patristica deu um forte abanão à milenar instituição clerical. Até ao século XIV os padres podiam casar e, muitas vezes, exigiam às confessadas pagamentos sexuais para lhes perdoarem os pecados. No século XIV, o Papa Gregório VII proibiu que os clérigos se casassem, mas no século XVI, o Papa Júlio II, conhecedor da impossibilidade do homem conter os impulsos sexuais, a menos que se torne um atormentado permanente ou um monstro pedófilo e castrador de novas vidas, esse Papa, que empreendeu a construção da basílica de S.Pedro e protegeu os fabulosos artistas do renascimento: Bramante, Rafael e Miguel Ângelo, criou um bordel de igreja onde as jovens estavam à disposição do clero e, nas horas vagas, prestavam serviços religiosos. O nosso Frei Bartolomeu dos Mártires que era, esse sim, um verdadeiro santo, devido à maneira como respeitava e defendia todas as pessoas, incluindo o seu clero, pediu ao Papa autorização para que os padres do Barroso casassem, evitando assim a mancebia e as pernadas nas mulheres casadas, cujos maridos andavam a descobrir e a povoar mundos, o Papa recusou, e este santo, que tinha todo o direito a galões de santidade, ficou só conhecido por Frei Bartolomeu dos Mártires, Bispo do Barroso.Em vez de lhe tirarem virtudes acrescentaram-lhas se o quisermos comparar aos santos Papas...   

O amor vive de um encontro natural e às vezes casual. Nunca pode ser imposição ou irreflexão. Lembro-me de um acontecimento que serve para ilustrar o que acabo de dizer: tem como personagem um jovem de raça cigana. Vinha de Salamanca e ia para Penamacor, mas resolvi passar pela Guarda, cidade que vive no meu coração. Depois de passar a fronteira, em Vilar Formoso, tinha observado um acampamento de ciganos. Uns dez ou quinze quilómetros depois estava um rapaz cigano a pedir boleia, era Dezembro, estava muito frio, eu ia num Mercedes que tinha comprado há pouco tempo. Parei e vi que o seu aspecto era deprimente. Pensei: “o carro vai ficar numa lástima”. Não consegui negar-lhe transporte porque gosto deles, acho-os o povo mais livre do mundo, escrevi sobre eles e, anos mais tarde, fiz uma intervenção na Assembleia da República defendendo-os. Mas, naquele momento, não resisti ao comentário:

- Podias, pelo menos, lavar as mãos e a cara. - O cabelo tinha bocados de resina.

Ele não respondeu.

- Vou para a Guarda e tu?

- Eu também. - Respondeu ele enquanto se recostava.

- Que idade tens?

- Dezassete.

- Que fazes?

- Fazia.

- Fazias o quê?

- Vendia cavalos e burros.

- Trabalhavas para quem?

- Para o meu ex-sogro.

- Já és casado?

- Era.

- Eras e já não és?

- Não.

- Que idade tem a tua mulher?

- Ex-mulher. Doze.

- Doze anos! E casaste?

- Casei.

- Casaste como? – repeti admirado.

- O meu sogro, uma noite, à roda da fogueira e já com uns copos disse-me: “amanhã casas com a minha filha”, no outro dia montou-nos uma tenda e fui viver com ela.

- E tu gostavas da tua ex-mulher?

- Hum...- Fungou encolhendo os ombros.

- Mas deste-te bem?

- Ela é um bocado preguiçosa.

- Foi por isso que a deixaste?

- Foi. Ontem mandei-a levantar para ir fazer o café. Não foi. Hoje fez o mesmo, e eu mandei-lhe duas lambadas no focinho.

- Não lhe devias ter batido. As mulheres não são pele de bombo.

- Pois não. Ela levantou-se imediatamente e foi, a correr, dizer ao pai. Eu mal a vi tomar aquele caminho, e conhecendo o mau feitio do homem, não esperei pela resposta. Ele apareceu de imediato de espingarda na mão. Se ele não estivesse de calças desapertadas não sei o que teria acontecido, assim, tomei-lhe avanço e quando ele começou aos tiros, eu fui-me cobrindo com os pinheiros, agarrando-me a uns e a outros e lá me safei.

- E agora?

- Vou à vida.

- Começas tudo de novo?

- Que remédio. O senhor vai-me deixar perto de um laranjal logo à entrada da Guarda. Tenho de apanhar qualquer coisa para vender.

- Não esqueças de te lavar.

- Não esqueço.

Estive para lhe dar algum dinheiro, mas pensei para mim: “ele não pode começar como um pedinte e eu não lhe posso turvar a imaginação. Já mostrou que tem pé leve. Deixa-o ir às laranjas. Se levar mais uns tiros do dono do laranjal, ainda fica mais espevitado para enfrentar a vida.”

 

Tu que me lês, que tinhas feito?

Ensinar alguém requer tempo e os ciganos são um povo muito especial. Decidi pelo que achei melhor. Espero que tenha sobrevivido e hoje seja um bom negociante.

 

Esforcei-me sempre por compreender o porquê das desigualdades entre as pessoas, por que é que havia tanto jovem descalço e de calças rotas na minha terra, por que é que muitos estendiam a mão à caridade e tinham de recorrer à distribuição do rancho feito na Companhia Disciplinar de Penamacor? Se isto era assim em Portugal, como seria por esse mundo fora?

Quando saí de Portugal e passei férias em Espanha, em 1947, tinha doze anos, vi horrorizado que a miséria e as carências eram 10 ou 11 vezes maiores que em Portugal e eram muitíssimo mais evidentes; casas a cair de podres, ruas quase intransitáveis, comboios que mal conseguiam andar, automóveis e autocarros seguros por arames, pedintes e engraxadores por todo o lado. Não consegui aguentar mais do que um mês apesar de eu ter todo o conforto e poder comprar o que me apetecesse.

Eu queria ter a coragem suficiente para distribuir tudo e juntar-me a eles para resolver aquela situação.

  

Tendo sempre no pensamento que a partir de uma ideia é possível resolver todas as dificuldades, quando os meus filhos tinham 8, 9, 10 anos resolvi testá-los a partir de ideias simples. Cada um montava o seu próprio negócio a partir do zero ou de um pequeníssimo capital. 

 

A minha filha mais velha, a Margarida, começou por juntar roupas velhas e destinadas ao lixo; lavou-as, restaurou-as, com a ajuda da mãe e começou a vendê-las a preços insignificantes. Como tudo era lucro, reservou 50% para o seu tempo, trabalho, lavagem, reparação e para comprar roupas, a preços simbólicos, a quem não lhas oferecesse. Os outros 50% eram dados a pessoas carenciadas sempre com uma sugestão tomada em colectivo, o que eu aprendi com meus filhos.

 

Sempre fui muito individualista, talvez por ter sido filho único e me ter habituado a resolver os meus problemas sozinho, mas eu nasci em Portugal e os portugueses sofrem desta pecha: são individualistas. O associativismo ainda hoje vive com dificuldades. O país dividido em municípios seria, de novo, o seu sonho e provavelmente o seu desaparecimento. Hoje, o mundo é uma cidade global que rejeita seres minúsculos e sem ordem. Os portugueses, com o sentido de obediência e ordem que têm... seria o caos.

Ser individualista é bastante desvantajoso. O mundo avança devido à cooperação e ao conhecimento entre todos os seus elementos. O individualista tem de contar só consigo próprio.

 

A do meio, a Andreia, fazia poemas que vendia às amigas e à família. Destinava 75% aos amigos mais carenciados e os outros 25% para o seu trabalho e gastos de papel e lápis. O mais novo, o Fernando, montou um banco com os capitais da mãe que, embora não estivesse pelos ajustes, só para não o ouvir, lhe ia entregando alguns trocos sobre os quais ele lhe passava quitação. Julgo que nunca recebeu qualquer compensação. Como não movimentava o capital tinha de pagar para o ter guardado, mas fazia empréstimos às irmãs a quem cobrava os respectivos juros. Com este, os lucros revertiam sempre a favor do capitalista. Nunca me dei conta que fosse magnânimo nas suas ofertas, vi, no entanto, que o seu quarto se encheu de aparelhos úteis para as suas brincadeiras e para os seus conhecimentos futuros sobre informática e sobre maquinaria que gosta de entender, construir, inventar e dominar.

As nossas reuniões eram movimentadas e cheias de ideias. Com os filhos eu testava o que poderia ser feito, primeiro, a bem de Portugal, depois reflectido a bem de todos os seres. Tínhamos mesmo programado fazer uma lista dos homens mais ricos do mundo, escrever-lhes, convence-los a investir em Portugal com a sugestão de aumentarem os postos de trabalho, e destinar, todos os anos, 10% em bens sociais que reverteriam para o Estado Português o qual se comprometeria a nunca alienar esses bens enquanto houvesse famílias com dificuldades.

 

Partir do nada para reconstruir o mundo. Partir do nada para desenvolver o amor e a prosperidade. Esta é a ideia fascinante que, embora controversa, deve animar todo o ser humano, o qual chega a este mundo, munido de todas as condições e meios para superar todas as adversidades.

 

Para ensinar, além do saber é fundamental gostar. O ensino nunca pode ser um sacrifício. Aquele que ensina com sacrifício vai crucificar centenas ou milhares de jovens. É pior do que o pior dos criminosos. Assassina a vontade e o interesse dos jovens.

 

O meu pai trabalhava bastante; fazia o que gostava e o rendimento estava assegurado, vivia feliz e pensava que a felicidade se mantém toda a vida. Como era feliz, queria que eu ainda fosse mais feliz e julgava que eu nunca devia fazer sacrifícios ou passar por dificuldades. Depois de ter feito uma quarta classe com distinção, em vez de fazer a admissão ao Liceu, naquele mesmo ano, enviou-me para o colégio de S. José, em Mangualde. Foi um erro grave. 

Nunca mais abri um livro. Nunca mais me lembro de ter voltado a estudar, para agravar a situação, a partir de certa altura, a professora, passou também a dar aulas à noite para no final e quando os outros iam para os quartos eu lá ficar mais um pouco e ela me encher de beijos. Ficava meio desnorteado. Se coincidia sair, e as luzes apagavam, depois daqueles apertões nos lábios, eu só sentia flashes de luz, como se fossem estrelinhas, a explodir: paf, paf, paf, paf!  A descarada, muitas vezes, de dia e na aula, colocava-me numa das carteiras de trás, abria-me a braguilha, metia os dedos sorrateiramente e divertia-se com o rapazito a crescer.

Foi o meu baptismo no labirinto das surpresas agradáveis.

No ano seguinte, no Liceu Nacional de Castelo Branco, contínuo a sentir o despertar para o mundo das sensações.

Trazia uma “boa escola” do Colégio de S. José. Tornara-me especialista em jogar hóquei com os tronchos das enormes couves da horta, e em futebol. Numa das partidas do dito, dei, sem querer, uma canelada no Zé Penha. Este ficou muito zangado; ele usava calções e eu também.

- Hás-de pagar-mas, hás-de pagar-mas. - Dizia o Penha. E eu que nunca me aborrecia, mesmo quando me partiam a cabeça ou tinha os joelhos a sangrar, respondia-lhe:

- Desculpa, foi sem querer. - O Penha não ouvia razões. Quando subíamos para a aula do cónego João, ele aborreceu-me tanto que eu voltei-me e dessa vez é que lhe dei uma biqueirada, logo por azar, por cima das botas de cano alto que ele usava. Ele tinha uns onze anos e eu, mais um mes. Desatou a chorar e assim entrou na aula. O cónego perguntou-lhe.

- Por que choras, menino?

Todos os outros:

- Foi o Cunha Simões que lhe bateu.

A aula do cónego era uma festa para uns e uma chatice para outros: nem moral, nem cívica; era barulho, insubordinação, ameaça de irmos ao reitor, o que nunca acontecia.

- Vais ao reitor no fim da aula! - Disse-me o bronco. Eu já sabia que não ia. Enganei-me. Desta vez, o sonso, manteve a palavra, mas também, pela primeira vez, tive a percepção exacta da pouca consideração que o reitor tinha por outro ser humano e que era seu igual, sendo professor. Tratou-o com rudeza, como se ele não passasse de um mero lacaio que não ensinava o pouco que sabia, e de que nada adiantava para a formação dos jovens.

- O que é? - Perguntou-lhe seco, o Dr. Sérvulo Correia, terror da garotada e dos mais velhos e também dos outros professores.

- Este menino, apontou para o Penha, chorava que nem uma Madalena arrependida e diz que este lhe bateu. - O reitor cortou-lhe, cerce, a retórica.

- Pode-se ir embora.

- Mas... - tentou o cónego.

- Vá-se embora!

O reitor, que tinha sido tão rude com o cónego, dirigiu-se ao Penha com ar simpático.

- Conta lá. - O Zé Penha disse o que lhe apeteceu. Quando eu quis interromper aquela mistura de verdades e mentiras, o reitor mandou-me calar.

Depois de ouvir o queixinhas voltou-se para mim:

- Deste-lhe o pontapé?

- Dei...mas...

- Não te perguntei mais nada. Vais ser castigado. Os olhos do meu saudoso amigo Penha brilharam de contentamento. - Olhei para o quadro preto onde iam aterrar todos os prevaricadores depois das bofetadas. Pensei: “vai-me derreter.” Ele calou-se por uns segundos e disparou:

- Queres um dia de suspensão, oito dias à porta da reitoria durante os intervalos, ou um par de bofetadas?

- Oito dias à porta da Reitoria, respondi sem hesitar. Ele sorriu.

- Vai-te embora. Começas amanhã.

A Reitoria ficava ao lado do vestiário das alunas mais velhas. Logo no primeiro dia começaram a parar e a fazer perguntas. “Como te chamas? Quantos anos tens?” Faziam-me festas, batiam-me nas pernas, eu usava calções, beliscavam-me suavemente.

- És um malandreco.

As mais carinhosas afagavam-me os cabelos, davam-me beijos fugidios e confortavam-me enquanto elas suspiravam os seus afectos a despontar e a desejar um miúdo tenrinho, com penugem nas pernas; já se sentiam mamãs, noivas ou irmãs mais velhas.

Eu adorava ir para ali. Era o máximo: podia sonhar, podia estar perto da janela, podia construir histórias, sentia o calor feminino. Ao fim do 18º dia quando o reitor voltou a reparar em mim, perguntou-me:

- Que estás aqui a fazer?

- Estou de castigo.

- Eu não te disse que eram só oito dias?

- O senhor reitor não me veio levantar a pena...

- Desaparece antes que eu agrave a sentença. - Reparei que aquela “fera” ria feliz, enquanto eu dava corda às pernas.

 

As carícias da professora do colégio, as carícias das alunas do 6º e 7º anos, hoje 11º e 12ºanos, espevitaram-me os apetites: um dia apertei as bochechas traseiras da criada. Ela não achou graça, virou-se e deu-me uma bofetada, com tanta força, que fui parar ao caixote do lixo.

A rapariga era muito bem constituída e muito sisuda: desta vez riu à gargalhada e ainda me disse, com ar maroto:

- Aí é que está bem. É para aprender a não mexer onde não deve. - E ria, ria feita tonta.  

Nesse tempo estava em casa da D. Aninhas, mãe da doutora Luísa Grilo e do Coronel José Grilo a quem, a descarada da criada, contou o sucedido, mas que a Luísinha proibiu de contar à mãe. 

 

Um país só se desenvolve através do conhecimento e esse adquire-se nas escolas com bons professores. Indivíduos como o cónego não servem para nada, são menos que pó. Além de não ensinarem, incentivam, sem querer, o desrespeito nas aulas.

Portugal foi sempre um país com um défice muito grande de gente de ensino, talvez por isso Akio Morita afirmasse ao Manuel Guimarães que nós éramos um povo inteligentíssimo.

Penso que somos um povo de grande intuição e inteligentes como os outros povos. A nossa intuição e a nossa sensibilidade é que são muito grandes e conseguimos atingir objectivos que só os mais instruídos conseguem. A nossa intuição foi sempre a nossa cartilha. Mas isto não pode continuar. Temos de estudar e querer ser iguais ou melhor que os outros para a felicidade de todos.

Desde o início da nacionalidade vivemos com a ignorância. Só a intuição nos fez independentes e capazes de desenhar este país. Os que sabiam ler e escrever estavam ligados à igreja ou eram judeus. Os reis estiveram sempre nas mãos destes dois grupos. O Papa atingiu o seu enorme poder devido mais ao grau de instrução dos bispos e padres que serviam a religião do que à sua força temporal.

A igreja, durante séculos, colocou em todas as aldeias gente com formação: os padres. Daqui lhe veio a força.

Os povos submetiam-se aos mais conhecedores, aqueles que melhor raciocinavam e melhor explicavam como se resolviam os problemas ou como atingir tal ou tal finalidade.

Em Portugal o ensino foi sempre muito reduzido. De qualidade, muitas vezes foi, e disso temos exemplo nos homens brilhantes que saíram das nossas universidades e foram ensinar em universidades estrangeiras ou deslumbraram o mundo com o seu saber.

Brutinhos não somos. Desinteressados e, às vezes, pouco aplicados, sim. Hoje, temos quase todas as condições para sermos os melhores entre os melhores e aplicar a sabedoria e o coração para a resolução de todos os problemas humanos seja em Portugal, seja em qualquer parte do mundo.

 

Vender ou dar inteligência será o nosso lema. E insistirei sempre nesta ideia até fixares que tens de ser o melhor.

 

A vida do Liceu decorria em roda livre. Reprovasse ou passasse, para os meus pais era indiferente.

Estávamos no quarto ano, hoje oitavo, último período, turma desgraçada, haveria entre 80 a 90 por cento de reprovações. Eu era uma das vítimas, mas não estava preocupado. Se os meus colegas de instrução primária não podiam continuar a estudar, eu achava que não tinha mais direitos que eles. Eu aprendia nos outros livros. Os meus pais não me ralhavam por isso. Não estavam inquietos nem com as minhas dúvidas, nem com as minhas sensibilidades porque não as conheciam, nem as compreendiam. Tinha sempre excelentes férias.

Aqui tens mais uma contradição do ser humano; devido à sua ignorância sobre a agressividade da vida, minha mãe, que era tão severa para com as minhas traquinices, aceitava com bonomia os resultados dos estudos. Ainda hoje a oiço dizer para as amigas.

- É novo, tem tempo.

Nesse ano acontecem-me várias situações que só a curiosidade, a ansiedade de compreender e ao mesmo tempo viver, aparentemente, o descuido da vida podem explicar.

O mais indisciplinado da turma era o Zé Fevereiro que resolveu, em três ou quatro disciplinas, insubordinar as aulas. De boca fechada emitia um arremedo de som gregoriano: “um, um, um, um, um, um,” com variações, sempre que o professor falava. Os professores começaram a ficar inquietos e a perguntar quem era. O Fevereiro, nesses momentos, parava, mas continuava logo a seguir. Perante a ameaça dos professores que reprovaríamos todos, os meus colegas intimaram-me a fazer calar o cantor. Ao princípio fui-me esquivando, mas perante o argumento de que eu era o chefe de turma e tinha de os defender: falando com o Zé Fevereiro ou denunciando-o ao reitor, o que, para mim, estava fora de causa. Tentei dialogar com aquele cabeça de turco.

- Agradeço-te que deixes de brincar nas aulas. Os colegas estão preocupados com as consequências e estamos a chegar o fim do ano.

O Zé, muito mais alto e mais entroncado do que eu. Era um garoto com corpo de homem, passou-me a mão pelos ombros:

- Ó amigo Cunha Simões, eles são uns tontos, isto está tudo chumbado. Eu, por mim, chumbo a cabeça aos professores.

Insisti para que ele não continuasse, tivesse as razões que tivesse. Em causa estavam os colegas. O Zé riu-se, deu-me uma palmada nas costas e repetiu: “são uns tontos”. Ele sabia que era muito mais forte que eu e do que todos os outros colegas. O seu poder de ataque era arrasador e via-se quando jogava brutebol, um jogo bastante “meigo” inventado pelo Dr. Carriço e onde eu parti uma perna ao meu amigo José Galvão por causa de uma bola mandada, com muitíssima força, ou por ele ou pelo José Neves, que era também um fortalhaço, mas incapaz de se aborrecer fosse com quem fosse, assim como o Zé Fevereiro. Eu digo, por um ou por outro, pois mal choquei com o Galvão, e ele caiu a contorcer-se com dores, o jogo parou; vi o Carriço vir direito a mim com cara de poucos amigos e tratei de fugir para os balneários. Aquelas mãos já eu tinha experimentado e por uma razão tão idiota como inexplicável.

Aqui faço um parêntese para dizer que embora não tivesse qualquer culpa por ter partido a perna ao Galvão deixei que ele me roubasse uma namorada para se sentir mais amparado. Fiz de conta, e segui em frente.

 

Enquanto adio a refrega e contínuo com o parêntese, vê como, injustamente, apanho duas galhetas, como o Dr. Carriço gostava de chamar aos seus bofetões. Ele era um homem enorme e até simpático quando não se aborrecia.

Fazíamos ginástica, educação física, fora do ginásio, ao ar livre. O tempo estava sublime. Eu dava os primeiros passos nas visões esotéricas. O Dr. Carriço mandou-nos sentar e fazer um exercício de braços: para a frente, para a esquerda, para a direita e assim sucessivamente. Aconteceu que, num dos movimentos para a esquerda, fiquei aí parado, em êxtase profundo, uns bons nove ou dez minutos. Enquanto a turma ria a bom rir, o Carriço olhava para mim para tentar perceber a origem daquela paragem e até que ponto ia a minha ousadia. Eu continuei. Tinha saído do mundo, entrei no sonho, no prazer infinito da viagem sem fim de onde vimos e para onde regressamos. Andava a branquear a alma noutros céus. O Dr. Carriço, que não era dado a fantasias, nem a teses místicas, fartou-se de esperar. Pôs-se à minha frente, baixou-se e gritou:

- Oh! – Eu olhei para ele surpreendido. Zás, zás! Duas bofetadas devolveram-me à terra, mais rápido do que dela tinha saído. Levantei-me de um salto e escapuli-me a sete pés.

Bem me chamou o Carriço. Eu agarrei o fato pendurado no vestiário e fui vestir-me para outro lado onde o “selvagem” não me encontrasse. No intervalo seguinte, continuava eu a tentar decifrar os enigmas que me perturbavam e à procura do Deus, que permitia as desigualdades sociais, quando sinto a mãozorra do Carriço agarrar-me um braço, apertar com força e dizer-me:

- O menino quer brincar comigo, quer? Quer ir ao Reitor, quer? - Estremeci. Já tinha ido uma vez ao reitor, saíra-me bem, mas se voltava lá segunda vez, nem a alma se me aproveitava. O Carriço continuou:

- Queres ir ao reitor, queres? A gozar comigo. Um miúdo. Se tornas a fazer o mesmo não te escapas. És solipsista, és? Julgas-te um Narciso intocável, julgas? Todos rendidos ao menino, é? Desta vez foram só as galhetas, para a próxima não te ficas a rir.

Quando me largou, pensei cá para mim “ Solipsista?” “Narciso?”, o que é que ele quererá dizer? “ Quem será o Narciso? E o Solipsista? Nem conheço. Que se lixem o Narciso e o Solipsista”.

Só uns anos mais tarde soube que solipsismo significa, em filosofia, apenas eu, aquele que é único; e Narciso era um ser mítico, muito belo, e que apaixonado por si próprio se tinha precipitado nas águas de uma nascente onde vira a sua própria imagem. Ainda bem que eu não conhecia o significado das palavras. Não arranjei traumas, embora eu não fosse muito atreito a traumas, nem a tretas, mas às vezes, podia ser afectado. Os professores devem ter muito cuidado quando falam para os alunos e pretendem ser agressivos. Há palavras e actos que não se esquecem. 

 

Estou certo ou estou errado? O livro é a minha conversa contigo. Apoia, desapoia ou corrige. Fico-te agradecido pelos teus comentários mesmo que não os faças directamente. Envia-os por telepatia, se acreditas nesta forma de comunicação. Quando eu morrer também estou à tua disposição. Eu converso, com relativa facilidade, com o meu amigo Manuel Guimarães. Ele está do lado de lá, eu estou do lado de cá, mas isso não impede que não nos entendamos, e olha que não estou maluco. Este tema fica para outro livro, se o Manuel concordar.

 

O Zé Fevereiro continuou a fazer barulho. Avisei-o mais uma vez e disse-lhe que ao terceiro aviso iríamos para o Barrocal resolver a questão. O Barrocal ficava a 600 ou 700 metros do Liceu de Castelo Branco e a seguir à estação dos Caminhos de Ferro. O Zé não fez caso.

Na aula do mano João, o Fevereiro tornou-se insuportável. O professor bem insistiu comigo para o ajudar a descobrir o prolixo e inflamado cantor. O Fevereiro piscava-me sorrateiramente o olho e eu pensava cá para os meus botões. “Já vais ver como elas mordem”. À saída disse-lhe:

- Vamos para o Barrocal.

O Zé tentou gozar, dava-me pancadinhas nas costas. Todos os colegas estavam a olhar para nós. Ele dizia:

- Temos matemática com o Dr. Sena Esteves. Com esse, estou calado. - E era verdade, mas eu não lhe dei hipóteses.

- Ou é lá ou é já aqui e somos os dois expulsos. Escolhe.

Aí vamos. A turma inteira do meu lado, mas sem o poder exprimir e o Zé Fevereiro também calado porque, só naquele momento, se deu conta que tinha levado a brincadeira longe demais.

Instalaram-se quase trinta alunos no alto de dois barrocos. Eu despi a capa e a batina, tirei a gravata, o Zé despiu o casaco. Ficámos em camisa, de mangas arregaçadas; a minha era branca, a dele de riscas vermelhas. Como tinha sido eu a desafiá-lo convidei-o a ser ele o primeiro a iniciar o combate. O Fevereiro, que era um bom lutador, teimou em ser eu a abrir as hostilidades. Como já íamos, nestas delicadezas, em alguns minutos, fingi que lhe ia dar um soco no estômago. Ele, mal viu o gesto, ripostou com um potentíssimo murro em pleno nariz. Caí de imediato, mas de imediato me levantei porque ele não me seguiu. Lancei-me de um salto sobre ele, cego de dor e esguichando sangue. O Zé, com o meu impulso caiu. Ficámos os dois, no chão, agarrados, eu ao pescoço dele e a dar-lhe murros com a mão livre, e ele com um braço a envolver-me as costas e com o outro a dar-me também murros. Eu, de olhos fechados, repetia-lhe continuamente.

- Tornas a guinchar na aula, tornas? - E pás, zás, pás, zás e o Zé Fevereiro, de resposta, a mesma música.

Estávamos nesta tontaria, há bem mais de 20 minutos, quando aparece um homem, de forquilha na mão, a insultar todos os que ali estavam:

- Malandros! Grandes malandros! Andam os vossos pais a mourejar de sol a sol para vos sustentar! Vadios! Não tendes aulas, pois não? Desgraçado País este que põe a estudar quem devia andar agarrado à rabiça do arado! Isto, também não é um país a sério! Olhai bem estes idiotas, encharcados em sangue! - Chegou-se ao pé de nós e separou-nos sem esforço.

- Desgraçados! Não tendes pingo de vergonha! Mal empregado dinheiro que os pais e o Estado gastam convosco! - Ele continuou a arengar enquanto nos vestíamos. Só quando se foi embora é que os assistentes, descontentes com o resultado da contenda, desceram dos poleiros.

Estendi a mão ao Fevereiro.

- Amigos como dantes. Isto continua se tu quiseres.

A aula seguinte era de história, a professora, a D. Maria Antónia; um sonho minhoto que nos punha a cabeça à roda.

O Vaz Antunes tinha 16 a Ciências porque tinha medo da D. Julieta, eu chegava a ter 20 a história porque adorava a professora. E só para ela me perguntar sempre a mim, e eu para lhe mostrar que era o melhor, levava a palma em história e negativas em quase todas as outras.

A D. Antónia, quando viu que tínhamos faltado à aula anterior, bem quis saber o que tinha acontecido, mas ninguém se descoseu embora me tentasse subornar com olhos tentadores, de quem sabe a paixão que provoca, mas não pode dar confiança a miúdos que ainda estão a cheirar a cueiros.

 

Aquela turma estava destinada à reprovação.

Um dos meus grandes amigos era o Joaquim Vaz Antunes. Sempre nos tratámos por compadres, acho que para melhor gozarmos as maroteiras. Ele também estava nessa turma, mas havia uma particularidade; vivíamos na casa das senhoras Trigueiros onde estavam mais oito ou nove “melros” de igual calibre. Como eu era chefe de turma, o Joaquim pedia-me, duas vezes por semana, para eu não dar a sua falta na aula do mano João, que era às 8 horas e 30. Assim fazia. Muito perto do fim do primeiro período o Joaquim foi às aulas, o mano João, que era uma jóia, mas andava sempre munido de vara, olhou para o Joaquim e disse-lhe:

- Ah, menino, tu não és daqui.

- Sou sim, senhor doutor. - Respondeu o Joaquim.

Ao prevermos o que ia acontecer, todos, à uma, confirmámos:

- Não é, senhor doutor, não é. - E todos a gozar com a cara patusca do Joaquim a levar varadas do mano João, enquanto o professor repetia “vai-te embora” “vai-te embora” e o Joaquim, de braço no ar, a jurar que era aluno, que visse na caderneta. O Mano João, depois de muitas varadas, viu.

- Tu és o Joaquim Vaz Antunes?

- Sou sim. - Respondia o Joaquim de asa levantada para evitar as varadas.

- Mostra o bilhete de Identidade? - O Joaquim não tinha, mas possuía o cartão da Mocidade Portuguesa, a única coisa que ele tinha da célebre Organização; o dinheiro da farda tínhamo-lo gasto numas riquíssimas farras. Tenho de te dizer que eu era o comandante e por isso ele também nunca lá ia, assim como outros que lá não queriam ir. A Mocidade Portuguesa funcionava como organização para ocupar os tempos livres dos jovens: havia secções de volei, aeromodelismo, futebol, ténis de mesa, campismo e muitos acampamentos, durante as férias. Voltarei a falar da Mocidade mais adiante.

Depois de examinar bem o cartão, diz-lhe:

- Ah, menino... eu nunca te vi e tu não tens cá nenhuma nota, mas...também cá não tenho nenhuma falta. O professor olhou para mim. Eu afivelei a minha melhor cara e o assunto ficou por ali, com 8 no fim do período. O Joaquim, nesse primeiro período, teve 8 negativas e uma positiva de 16 com a D. Julieta.

Como disse, este quarto ano foi um ano atribulado, melhor dizendo: cheio de emoções.

Eu comecei a desconfiar de que o meu compadre - tratávamo-nos por compadres,já não sei porquê - Joaquim faltava às aulas porque andava metido com uma das criadas. Na casa havia duas. Um dia, uma aula antes da cena com o professor, quando ele me pediu:

- Ó compadre tire-me lá a falta.

- Está bem. Os quartos eram no primeiro andar, eu descia sempre as escadas a correr. Assim fiz, puxei, como de costume o cordel que abria a porta, fingi que tinha saído, empurrei a porta com força e, pé ante pé, meti-me no vão da escada onde havia uma porta. Passados dois ou três minutos aí vem o Joaquim e depois a criada. Deixei-os aninhar. Passados uns minutos e quando pensei que a festa devia já ter começado, outra vez e desta sem sapatos, fui pé ante pé até ao quarto interior onde eles se encontravam e quando me encontrei diante da alcova do pecado, bati à porta e gritei: “eu também quero”! O Joaquim começou logo a gritar:

- Ó compadre, não entre. Ó compadre não entre! – Eu continuava na minha ladainha “eu também quero”. – O Joaquim respondia:

- Está bem, está bem.

Mas eu queria que a criada confirmasse de sua vontade. Quando confirmou, eu deixei-os em paz e nesse dia tanto eu como o Joaquim tivemos falta na aula do Dr. João, pois eu só cheguei quase no final e o professor não foi na conversa que eu inventei.

Depois do Joaquim ter começado a assistir às aulas, a criada lá condescendeu em me fazer a vontade. Começámos a festa de pé e eu louco, cego e surdo, quando no mais feliz dos momentos que estremece um rapaz de barba a despontar sou empurrado abruptamente pela possante rapariga que me gritou ao ouvido:

- Esconda-se que vem aí a senhora.

Nervoso, sem saber o que fazer, escondi-me na casa de banho sempre com o apêndice bem rijo e excitado. Não acabei a festa e inexplicavelmente fiquei sem fala. O corpo doía-me todo.

No Liceu o Joaquim esperava por mim.

- Então?

Apontei-lhe para a garganta e tentei dizer-lhe através do movimento dos lábios que não podia falar. Quando soube de toda a história e eu lhe pedi que não contasse a ninguém, foi o mesmo que fazer um anúncio publicitário. Só os professores não souberam a verdade. Sempre que me chamavam e eu por gestos declarava que não podia falar, todos os meus colegas repetiam:

- É ele a gozar sr. Doutor. – Os idiotas riam que nem alarves.

 

A D. Julieta tinha a alcunha de tia Anica. Não podia comigo por me encontrar sempre com raparigas. Toda a vez que me chamava, eu sentia nela o prazer libidinoso de gostar de me esticar ao máximo mesmo que eu lhe fosse respondendo uma por outra pois o Joaquim tinha a mania de estudar alto e eu às vezes ouvia-o e também ouvia a professora, mas ela arranjava sempre maneira de encontrar perguntas para que eu não tinha respostas. No fim dizia sempre a mesma coisa:

- Sr. Simões, Sr. Simões não se podem amar a dois senhores ao mesmo tempo; 8 no fim do período.

No fim do ano estávamos chumbados, embora tivéssemos sempre 1% de esperança que passaríamos.

O Joaquim diz-me:

- Ó compadre, estamos chumbados. Eu estou perdido, o meu pai dá-me uma sova que me mata. Eu vou fugir para Lisboa. O compadre venha comigo.

Quando ele me disse aquilo eu pensei: “o que é que vou fazer para Lisboa? Os meus pais nem me ralham.” mas ele era meu amigo. Por solidariedade resolvi acompanhá-lo. Disse-lhe: “temos de esperar pelas notas”.

- Não vale a pena. Ninguém nos salva.

Mas eu insisti.

- Temos  de esperar pelas notas.

- Está bem. - respondeu ele - mas vamos para a saída de Castelo Branco e avisamos para nos irem levar os resultados.

E lá fomos, com duas pastas cheias de doces e fruta que tínhamos surripiado da despensa da casa, o que era um dos nossos feitos, apesar de nunca nos faltar nada. Mas achávamos piada violar os sítios onde era proibido mexer.

Era quase sempre eu que ficava com as culpas. A D. Maria José, uma das senhoras Trigueiros, detestava-me por pensar que eu era o mais traquinas como ela dizia. E não se convencia do contrário. Eu gostava imenso dela porque tocava muitíssimo bem piano. Isso dava-me calma, fazia-me sonhar, tornava-me bom, um coração imaculado, mas se ela me sentia, deixava de tocar imediatamente.

Vamos lá saber porque as pessoas reagem desta maneira?

Fomos para Montalvão, saída da cidade. Passaram, as 16 horas, as 17, as 18, as 19 e o Joaquim começa a insistir.

- Compadre, vamos embora. Estamos chumbados. As notas deviam sair às 5 no máximo, eles não vêm. Chumbou tudo.

Eram 20 horas e 15 minutos ouvimos uma gritaria enorme. Aí vinham eles: suados, aos pulos, doidos de contentes. “Passámos, passámos!”

- Também eu? -  perguntou o Joaquim ainda descrente.

- Todos, menos o Zé Fevereiro, que tinha faltado nos últimos dias e aos últimos exercícios.

Ali mesmo dividimos o farnel da viagem e fizemos a festa.

- Mas que aconteceu?

Os crentes exclamarão milagre, os outros dirão sorte, e outros dirão ainda; ou há justiça para todos ou não há para ninguém.

Aconteceu que entre os 90% dos reprovados se encontrava o Pardal. O Reitor do liceu era muito amigo do pai. Naquele tempo, os reitores, só deixavam sair as notas depois de eles próprios as verificarem. Ao ver que o Pardal estava reprovado ordenou que fosse revista a situação e que o deixassem passar. A D. Julieta opôs-se. Chumba o Pardal e chumbam todos os outros que são tão cabulões como esse. O reitor tenta impor-se. D. Julieta, a tia Anica, não cede e puxa aqui, puxa ali, perante o impasse propõe:

- Se passa o Pardal passam todos os outros que levantaram, pelo menos, algumas disciplinas. Perante a posição irreversível da senhora, graças ao meu prezado amigo Pardal não averbei mais um chumbo no meu notável currículo.     

 

Devo confessar que a minha falta de aplicação ao estudo não me tornava feliz. Eu conhecia as minhas revoltas interiores e por não as saber compensar desinteressava-me à espera de não sabia bem o quê. Dava como desculpa as diferenças sociais, o que em parte era verdade, mas não deviam ser suficientes para o meu desinteresse, para a minha rebeldia e outras vezes introversão. Lia todos os livros menos os de estudo. Em férias, muitas vezes, minha mãe descia ao primeiro andar porque me sentia às três e quatro da manhã, a ler tudo o que apanhava.

Muitos anos mais tarde, quando professor, verifiquei que eu tinha 5% de culpa pela minha inconsciência; meus pais 15% pelo seu exagerado amor e ignorância; e os professores  80% pela falta de sensibilidade, para não aplicar outra palavra bem mais violenta.

Muitos dos meus professores foram péssimos; obcecados em obrigar a decorar 20 por cento de matéria útil e 80 de matéria inútil só os alunos, muito pacientes, aguentavam tamanha estupidez, prepotência e subserviência a programas de um conservadorismo e inutilidade abissais. Bastava seguir os passos de uma Noruega, de uma França, de um Alemanha, de uma Holanda. Estávamos sós...sempre estivemos orgulhosamente sós...vamos ver se com a parceria europeia conseguimos aderir ao futuro.

A agravar toda esta situação: os professores esqueciam-se de amar, ou seja, de ensinar de uma maneira humana.

 

O segredo do ensino está no professor, tenha ele os alunos que tiver. Ele é a chave. Eu tive professores que foram autênticos desastres. Nunca uma palavra de carinho, de estimulo, de compreensão. Nunca o saberem tornear a irrequietude dos jovens, as suas pequenas faltas, saber aproveitar a sua irreverência, tirar partido dos seus erros, procurar saber o porquê da sua falta de estudo.

 

Eu queria modificar-me mas não conseguia. Rejeitava estudar por solidariedade com aqueles que não tinham posses para estudar. Insistia nesta desculpa para o meu desinteresse. Passava um ano inteiro na brincadeira, no cinema, em pequenas farras, ou lendo livros muito mais avançados para a minha idade. Lembro-me de um livro, do Dr. Egas Moniz, sobre saúde, que li avidamente; ele estava cheio de gravuras com vários tipos de doenças ou deformações congénitas, passava horas tentando entendê-lo e foi de grande utilidade para o meu amigo António Manuel Camejo dos Santos. As senhoras Trigueiros apanharam-no e fizeram-lhe um auto de fé. Aquilo não eram leituras para jovens da minha idade. Fiquei um bocado aborrecido com elas.

Quando fui para os cursos da Mocidade Portuguesa, convidado pelo José Cabaço Neves, fi-lo para ver se encontrava método, ordem, disciplina, se mudava a minha maneira de pensar, se me esquecia que o mundo teima em manter desigualdades. Melhorei um pouco, mas não o suficiente. Mas melhorei. A Organização, fora dos cursos, funcionava como tudo em Portugal; na base do improviso, do desenrasca e das boas vontades de alguns carolas, que pretendiam levar a sério aquilo que o não era. A Mocidade Portuguesa era a tentativa para desviar a juventude dos cafés, do fumo e lhe propiciar actividades saudáveis ao ar livre. Havia sempre quatro ou cinco acampamentos por ano onde só ia quem queria e, normalmente, iam muitíssimos jovens.

Lembro-me de um acampamento, na serra de Monsanto, onde choveu tanto, tanto, que ficámos sem alimentos durante quase dois dias e tivemos de nos deslocar para as instalações da FNAT na Costa da Caparica. Aí acontecem dois episódios que não resisto a contar. Os dois, passam-se com jovens de Cabo Verde.

Eram 8 da noite e ninguém tinha comido. A certa altura aparece-me um miúdo, dos mais novos e diz-me.

- Comandante, estou cheio de fome.

Olhei para ele desalentado. Nada, não havia nada. Com o coração desfeito disse-lhe:

- Tens de aguentar mais um pouco.

- Não consigo, comandante. Mande-me para a enfermaria.

- Mas tu não estás doente.

- Eu digo que tenho febre.

- Não tens.

- Eu faço.

Perante o olhar faminto e enternecedor do miúdo quis verificar o que acontecia. Tínhamos ordens terminantes para só entrarem na enfermaria os doentes. Levei-o ao enfermeiro chefe e disse-lhe.

- Veja lá este. Parece que está cheio de febre.

- Oh rapaz, mostra a língua, o que te dói?

- A barriga sr, doutor. Tenho muita, muita fome.

Eu saí da tenda, rindo, o enfermeiro deu-lhe um pão. Passados cinco minutos o miúdo estava ao meu lado e insistia para que eu comesse metade do que lhe tinham dado. Como recusei, dividiu com outros três.

No fim do segundo dia eu e o Cabaço Neves estávamos extenuados. O nosso sector era formado pelos jovens do Ultramar. Cansados, cheios de sono mas sempre atentos e prontos a acudir a todos os lados pois a chuva continuava a cair intensamente, nós não parávamos um momento; de repente vimo-nos envolvidos pelo agrupamento de Cabo Verde, agarraram-nos, sentaram-nos, tiraram-nos as botas e enquanto nos obrigavam a descansar e a comer foram-nos limpando como se faz aos jogadores de boxe. Depois de uns bons três quartos de hora em que tanto um, como outro, passámos pelo sono, os jovens de Cabo Verde entregaram-nos as botas brilhando de limpeza. Nunca mais os esqueci.

Devido a este episódio escrevi o meu segundo livro: “Tu cá, Tu lá”

 

A rapidez de raciocínio adquire-se com o tempo quando isso não é já uma característica de nascimento ou do desenvolvimento dos primeiros anos. Tenta raciocinar rápido. Faz experiências com os amigos. Analisa até que ponto as tuas respostas são lógicas e cobertas de razão. Se ao dares a resposta, mais tarde verificares que não era aquilo que devias ter dito, então o teu raciocínio ainda não está afinado. Tens de continuar a analisar os teus disparates e as respostas coerentes até sentires elasticidade mental capaz de “golpes de asa” que deslumbram quem te ouve ou observa o teu trabalho.  

 

O Cabaço Neves era uma jóia de rapaz, um irmão, queria ser piloto e a Mocidade Portuguesa tinha cursos de aeromodelismo e aviões sem motor, a seguir entrou para a Força Aérea e foi para os Estados Unidos para um curso de pilotos a jacto. Ficavam numa fortuna ao Estado Português. O Cabaço Neves casou com uma jovem que era comunista, ele começou a ser vigiado; como castigo foi para a Guiné pilotar pequenos aviões. Um dia, aqueles por quem ele nutria simpatia sabotaram-lhe o avião e ele morreu estupidamente.

Estava no barbeiro a cortar o cabelo para ir no outro dia para Paris de automóvel com a família; lia o Diário de Notícias e sou confrontado, de chofre, com a tragédia. Comecei a chorar como uma criança. Durante a viajem chorei quase ininterruptamente. Senti uma revolta enorme.

Eu acredito na comunicação das almas, é a partícula de Deus que nos liga uns aos outros, mortos e vivos. Os mortos, como definimos aqueles que partem para a outra dimensão, só conseguimos ficar com eles se nos três dias seguintes ao seu desprendimento deste mundo nós pensarmos muito neles e não nos quisermos separar e eles também tiverem esse desejo. Era o que estava a acontecer comigo. Tenho a prova que o Cabaço Neves estava ao meu lado porque, perto de Burgos, ao ultrapassar um camião, este barrou-me o caminho; ao travar, o carro rodopiou quatro vezes na estrada perante o olhar horrorizado dos automobilistas que vinham atrás e só não caiu nos precipícios que bordejam a estrada porque uma força estranha me amparou. Estamos no Inverno e havia gelo na estrada.

Escrevi nessa altura “A Revolta e o Homem” com alguns poemas dedicados a um jovem que teve o azar de viver numa época de gente bronca.

Não me revoltei só contra o Governo, revoltei-me contra os incompetentes que nas chefias não sabiam distinguir os valores. Isto acontece quando o défice de cultura é muito grande. Em Portugal não nos têm faltado bons Presidentes da República, bons Primeiros Ministros e Ministros competentes, aquilo que nos faltou sempre foi um escol de funcionários públicos. Alguns são demasiado intransigentes num serviço público que tem de ser flexível nos momentos em que o deva ser. A interpretação rígida das leis levou a que os Censores fossem considerados os seres mais estúpidos à face da terra e os Chefes, que preteriam os mais capazes a favor dos medíocres e dos subservientes, autênticos répteis. Houve excepções, tanto num caso como noutro, mas muito poucas. Repito: neste país não foram os Ministros que erraram, foram os funcionários incompetentes e ignorantes que não souberam dar continuidade a directivas que podiam percorrer várias trajectórias para se atingirem os melhores objectivos.

A culpa destes culpados, sem a totalidade das culpas, está na sua educação.

Em 1965, o Dr. António Martins da Cruz, no livro: “Preocupações de um Deputado” a pags. 32. Diz explicitamente: “É que Portugal será o que for o nosso ensino, e este não será senão o que forem os seus professores”. A resposta para as nossas falhas está toda aqui.

 

Pedi para fazer o 5º ano na cidade da Guarda. Era a maneira de entrar num meio desconhecido e dedicar-me ao estudo. Eu tentava entender-me e lutar contra o meu querer e não querer. Logo no primeiro dia dei o primeiro passo em falso.

Depois de meu pai me ter deixado num belíssimo quarto da “Pensão Central”, ali a dois minutos do Liceu, junto à Sé, o que era um luxo, fui dar uma volta pela cidade. Quem havia de encontrar? o nosso já conhecido Manuel Poppe Lopes Cardoso, o Nélinho, que tinha muita piada, tinha a doidice da juventude, e era um rapaz inteligente. Estava a discutir com outros três: “era impossível beber meio litro de carrascão na Cova Funda,” célebre taverna lá burgo, junto ao café Mondego, agora transformado em Banco e a dois passos do quiosque do bem sucedido comerciante António Guimas Esteves. Eu, gabarola e brincalhão, ao passar, atiro à guisa de desafio:

- Isso? Qualquer um bebe.

O Nélinho, que não me conhecia de lado nenhum, agarrou-me.

- Tu bebes?

- Se pagares.

- É para já. - E lá fomos os cinco. Eu a beber, eles a ver.

Naquele tempo, os jovens da cidade da Guarda bebiam imenso; novos e mais velhos Era o frio e a fama. Aquele que quisesse ser respeitado pelos outros tinha de ser um bom copo.

Hoje, sabemos que isso é um erro. Naquele tempo dizia-se que era para aquecer e para levantar a alma.

Bebi o meio litro. O Nélinho abanou-me. Esperou pelos resultados.

- Estás bem? Não sentes nada?

- Nunca me senti melhor. E agora passem muito bem que tenho de conhecer a cidade.

- Como te chamas?

- Cunha Simões.

- Até amanhã.

Apesar de em minha casa nunca entrar vinho e minha mãe, em toda a sua vida, nem uma gota ter bebido, e meu pai só em festas, eu, desde que fui para Castelo Branco, como andasse sempre com os mais velhos, ia entrando nas farras com eles. Tornei-me um bom copo, o que não é coisa de que me orgulhe, mas para saberes até que ponto um jovem pode ser pateta e colocar a vida em perigo conto-te duas brincadeiras avinhadas e que podiam ter graves consequências.

O problema, na casa das senhores Trigueiros, era não termos problemas e então tínhamos de os inventar. Naquele dia resolvemos dizer que queríamos vinho à refeição. Nunca tínhamos bebido. Como a resposta fosse negativa resolvemos depois de jantar ir até ao café e bebermos uns copos. Já não sei de quem partiu a ideia mas formaram-se dois grupos; um a favor do Vaz Antunes e outro a meu favor. Puseram vários copos de vinho branco entremeados com copos de aguardente naquelas mesas antigas e quadradas, de tampo de mármore. Em frente um do outro íamos bebendo, aquele que desistisse perdia e os apoiantes também. O Joaquim desistiu já perto do fim e eu tolo, gabarola e inconsciente terminei os meus e acabei os dele. Salva de palmas. Pagaram os vencidos mas já ninguém mais pensou em beber depois de terem visto o desafio. O Joaquim quis ir ao cinema, os apoiantes abandonaram-no. É sempre assim, é pecha dos portugueses: digerem mal as derrotas. Foram todos com o vencedor para uma reunião da JEC. Juventude Escolar Católica.

O Joaquim, só se lembra de ter entrado no cinema, e, muito mais tarde, a mulher de limpeza o ter acordado e lhe dizer que o filme já tinha acabado há muito tempo.

O salão da JEC estava cheio, aquilo era em anfiteatro. Fui sentar-me ao centro, na terceira fila, ladeado pelos meus admiradores, mesmo em frente do padre João e dos seus dois assessores. As janelas estavam abertas, corria uma aragem agradável, de repente, tudo se modificou, começaram a fumar, a sala ficou impossível, pelo menos para mim, sentia um calor abrasador, o padre João falava, falava e eu não entendia uma palavra, a cabeça começou a andar à roda, sentia uma espécie de água solta na minha boca, o fumo tornou-se insuportável, as palavras do padre insuportáveis, quem me rodeava era insuportável, levanto-me e vomito para cima de padre e dos assistentes; cada um a fugir para seu lado e eu a borrifar todos por onde passava. Os meus apoiantes, embora as maiores vitimas, além de me ampararem ainda me desculpavam dizendo:

- Foi o Vaz Antunes que fez anos, foi o Vaz Antunes.

Esta cena alcoólica repete-se com o Victor Guterres de Carvalho, ele ficou tão bêbado que ia morrendo, a dona da casa viu que ele estava gelado e a espumar pela boca, agarrou numa bacia de água quente, colocou-lha junto aos pés e pediu para irmos chamar o Dr. Alberto Trindade. Lá fomos. Perante a situação que contámos ao médico, ele disse para chamarmos uma ambulância e levar o Guterres para o hospital. Foi o que quisemos ouvir, aquilo era uma festa, ir de ambulância, gozar aquela situação, nunca pensamos que acontece o pior, era mais uma brincadeira. Quando chegámos a casa e dissemos que a ambulância estava ali para o levar para o hospital, o Guterres, que era incrivelmente agarrado, estava a despertar e só murmurava.

- Eu não pago nada, eu prefiro morrer, eu não pago nada... - Metemo-lo à força na ambulância e o bom do médico lá o salvou de apertos.

O Guterres de Carvalho era engraçadíssimo mas sempre sequioso por dinheiro e incapaz de o gastar. De uma vez, por vinte escudos, deixou que eu, o Fernando e o Joaquim Vaz Antunes lhe déssemos uma tesourada no cabelo, que era enorme. Ficou como um Cristo. Teve de rapar o cabelo à escovinha e comprar uma boina. Ainda lhe sobraram quinze tostões. De outra vez, nos carrinhos de choque, ele trazia uma perna de fora e, num choque a três, ele ficou com o sapato desfeito e a sangrar abundantemente do tornozelo. Ele só dizia:

- Ai o meu sapato, ai o meu sapato.

E nós:

- O Victor, olha a perna, vamos ao hospital.

Mas ele não se interessava do tornozelo, só continuava a lamentar o sapato. Apesar dos dezassete ou dezoito pontos, nunca se queixou da dor mas sim, da perda do sapato.    

A demonstração de amor também tomava formas pouco usuais. Conto-te só um resumo de duas.

A namorada do Victor deixou-o, eu comecei a dar-lhe conselhos para a reconquista mas ele não me ouviu. Colocou a fotografia da rapariga na lapela do casaco, arranjou um canivete e todas as vezes que passava por ela, voltava a aba, apontava o canivete para a fotografia e dizia:

- Hei-de-te matar, velhaca.

Foi remédio eficaz. Conseguiu ser aceite durante mais uns meses.

Outro que fez ouvidos surdos à minha moderação foi o Fernando Vaz Antunes, não esteve com meias medidas, perante a hesitação da apaixonada disse-lhe:

- Zézinha, ou casas comigo ou dou-te uma sova que te mato.

Resultado: já está casado há três décadas e vive feliz como um pardal.

 

Conclusão: conselho só é válido para os assessores das grandes empresas. Na juventude só a sugestão ganha força. Cada um toma o conselho da sua cabeça depois de ouvir montes de conselhos. Os brasileiros é que sabem: conselho se fosse bom, não se dava, vendia-se. 

 

Voltamos à Cidade da Guarda, depois do encontro na Cova Funda.   

No dia seguinte, apresentação de professores e eleição do chefe de Turma. Fui eleito para espanto do professor de Inglês, Aristides, que perante o jovem desconhecido, lhes chama a atenção para os riscos que corriam. Mas já estava eleito, já estava eleito, e a mim pedia-me desculpa da franqueza.

Quando terminou, os meus colegas, responderam em coro:

- Nós já o conhecemos e bem.

O conhecimento foi motivado pela tremendíssima bebedeira que o Nelinho tinha apanhado depois de ter bebido do mesmo vinho que eu, o qual era muito forte para rapazes da nossa idade. Foi ao colégio das freiras onde tinha a namorada, chamou-a, agarrou-se a ela. Como ela não quisesse sair arrastou-a pelos cabelos. Um escândalo de que eu não me apercebi porque me deitei em cima da cama e o deus Baco me proporcionou um rápido sono.    

Aquela Guarda, a 1075 metros de altitude é a cidade de ares puríssimos, a minha cidade bonita. Apesar de ser a cidade dos F. Forte, farta, fiel, feia e falsa. Não tem nada de feia nem de falsa. É uma cidade lavada, cheia de vida, de força, de pujança e de fortes e sólidas amizades. De falso, só o bispo que deixou entrar no seu paço D. João I de Castela quando da crise de 1383 - 1385, contudo, o alcaide - mor Álvaro Gil Cabral nunca lhe entregou o castelo e manteve-se fiel ao Mestre de Avis. A cidade não tem culpa da infidelidade do bispo. Eu deslumbrei-me com a camaradagem dos meus colegas e a simpatia das pessoas, mas aqui também sofri o meu primeiro grande desgosto e zanguei-me, a valer, pela primeira vez na vida. Ainda hoje vivo essa zanga quando me recordo do que aconteceu. O mais estranho é não conseguir esquecer, embora a pessoa já tenha morrido.

 

Um professor tem de saber que a sua missão na terra é a mais sublime entre todas. Se escolhe esta profissão sabe que acima dele estão os alunos que tem de defender, ensinar e guiar para que um dia, sejam melhores que ele. O professor é a escada da vida. Este, a quem nunca perdoei, e lho fiz sentir, foi um biltre que me reprovou gratuitamente. Isso nunca o esquecerei.

Nunca me importei de reprovar mas não suporto injustiças.

Uma vez um juiz condenou-me injustamente. Eu jurei que nunca mais ali entraria de vontade. Só algemado. Professores e juízes têm de ser verdadeiros conhecedores da alma humana e do porquê dos seus comportamentos. Se tiverem incertezas ou limitações não passarão de sinistros títeres do género humano. 

Vamos deixar as considerações para o seu tempo.

 

O companheirismo na Guarda é muito forte. O ar dos montes Hermínios limpa os miasmas que afectam a juventude e tudo se aceita com graça.

As feras do Liceu eram o reitor e o contínuo “Bissaia”, que era alcunha, por ele andar sempre empertigado e de pasta como o célebre Prof. Doutor Byssaia Barreto.

 Nos primeiros dias havia sempre falta de um ou outro professor. O chefe de turma devia perguntar ao contínuo se podíamos sair da aula.O Cônscio disse-me:

- Vai perguntar ao Bissaia se podemos sair. - Depois de alguma insistência; o Cônscio quando começava nunca mais acabava. Lá fui perguntar ao continuo.

- Sr. Bissaia, não temos aulas, podemos sair?

O homem, de olhos muito abertos e de ar espantado, perguntou-me:

- O quê?!

- Podemos sair?

- Repete como na primeira vez.

- Sr. Bissaia...

- O quê?! - Espumava ele

Eu calei-me. O tipo não parecia bom da cabeça. No varandim, do primeiro andar, os meus colegas riam divertidos enquanto o Cônscio me fazia sinal para acabar a conversa e subir. Mas o Bissaia é que não estava para largar quem lhe falava?

- Diz lá?

- Podemos sair?

- Não é isso! repete tudo! - Gritava o monstro.

- Sr. Bissaia...

- Eu não sou Bissaia! E se me tornas a chamar Bissaia... escavaco-te! Eu chamo-me Lauro!

- Já podia ter dito. Podemos sair?

- Não!!!

Era a vingança do infeliz de pau na mão. Nós nem nos importávamos de não sair, divertíamo-nos imenso a conversar uns com os outros naquela pequeníssima despensa de arrecadações transformada em sala de aula.

Era muito estreita; as carteiras eram corridas para ocuparem menos espaço. Em cada carteira estavam dois alunos. O meu companheiro era o Zé António Costa Ferreira, falador inveterado; contava histórias, pedia constantemente para ir buscar giz ao quadro, fazia as perguntas mais disparatadas para diminuir o tempo de aulas e de chamadas. Era impossível, mas todos achavam graça, menos eu, que sofria calado, e não achava graça porque tinha decidido passar de ano e se ouvisse as aulas com atenção já não necessitava de estudar. Eu estava ciente que as matérias não custavam nada e só falhava por desinteresse. Naquele ano resolvi passar. Bem me esforçava para que o Zé António estivesse calmo. Nunca houve maneira. O único que lhe chegava a roupa ao pêlo era o Ti Zé Vilhena, professor de história, que ensinava, mandando sublinhar e ler na aula, em voz alta, a história do Matoso. Eu oferecia-me sempre para ler. Quando era interrompido pelo Zé António lá estava este a levar varada. Aquela leitura continuou a fazer de mim o melhor aluno de história mas sempre com notas de 12 no fim do período; o professor descontava-me pontos sempre que eu ajudava os meus colegas quando estavam a ser chamados ou ditava as respostas dos pontos. Ele era um pouco surdo.

- Já tens mais uma cruzinha. - Dizia ele, avisando-me que, dessa maneira, baixava a cotação. No final do ano a caderneta estava repleta. Era um autêntico cemitério. Apesar de avisado muitíssimas vezes, o Ti Zé Vilhena nunca me bateu, mesmo quando um dia, eu, não me podendo conter com a expressão da sua cara, ri a bom rir de um esgar. Ele voltou-se para mim.

- De que estás a rir? De que estás a rir? Julgas que eu sou palhaço? Julgas?

Eu disse-lhe a verdade.

- Da sua cara, senhor doutor.

Ele levantou a vara mas não bateu, aceitou a pureza da minha verdade. Só insistiu:

- Achas que eu sou palhaço? Achas?

O Zé António inventava imenso e o ti Zé Vilhena sempre castiço, dizia-lhe:

- Não inventes, homem, olha que quem fez o nosso livrinho sabia mais do que tu e do que eu.

Era um professor da velha escola. Tinha vivido sempre os ares da Guarda. Conta-se que um dia, ele e os colegas, já muito bebidos, resolveram arrastar a Sé da Guarda para junto do Liceu, ali a dois passos. Despiram as capas e as batinas. Todos, à uma, afadigam-se a empurra-la esforçadamente. Um estudante mais antigo e sóbrio afastou-lhes a vestimenta para uns metros mais atrás.

- Isso está a ir. - Disse-lhes, enquanto eles limpavam o suor. Um deles olhou para trás e ficou aflito.

- Alto, alto! mais não. Vejam os metros que já a fizemos andar, daqui a pouco fica em cima do Liceu.

 

Os professores utilizavam muito a vara para apontar, no quadro negro, o que iam explicando, mas a vara servia-lhes também para umas sacudidelas na cabeça e nas braços dos alunos.

O Professor de Inglês usava-a com prodigalidade. Obrigava-nos a decorar textos do livro. Principalmente as pequenas histórias de quinze ou vinte linhas, o que era um bocado violento. No dia seguinte perguntava:

- Sabes?

Se respondíamos afirmativamente íamos para junto do quadro que ficava quase colado à secretária de tão exígua ser a sala. Lá papagueávamos a história com algumas varadas pelo meio, sempre que o aluno gaguejava mais do que o permitido. Se dizíamos que não tínhamos estudado, marcava nota negativa.

O Zé António, bem tentava, com as interrupções, amenizar o sacrifício, mas havia sempre muitas vítimas. Éramos considerados a pior turma, até que um dia o Zé me disse.

- Eu tenho uma ideia.

- Lá vamos ter é sarilho.

- Ouve e cala: nós ficamos sempre entre o professor e o quadro, se colocarmos o texto no quadro, o Aristides não vê e nem se pode levantar. Se ele o quiser fazer arranca-se o papel quando nos desviamos. Queres experimentar?

- É para já. - Com a colaboração de todos, à porta fechada, fizemos vários testes com uns a servir de professor, outros de alunos e o Zé António ou outro a colocar e a tirar o papel.

Passámos dos piores aos melhores. O Aristides estava deslumbrado. Fazia-nos rasgados elogios. Nunca descobriu. Só uma vez tivemos um pequeno percalço. O Aristides começava sempre com a historieta, mas quando ela era pequena e via que todos a sabiam passava a explicar outra matéria ou analisava o texto seguinte. Era muito bom professor.

Nesse dia, ouviu três ou quatro alunos sempre com a sagrada pergunta:

- Sabes?

A resposta era sempre positiva, mesmo que não fizéssemos a mínima ideia  do que se tratava. Nesse dia o Aristides chamou o Maurício. Ele usava lentes muito fortes e não se apercebeu que o José António já tinha tirado o papel porque o Aristides, depois de ouvir os alunos, a seguir explicou matéria, mas como ainda lhe sobrassem  3 ou 4 minutos de aula resolveu aproveitá-los, outra vez, com a história. O Maurício ia todo sorridente, estava muito bem disposto, já tinha experiência das outras vezes e tinha visto colocar a folha arrancada do livro, mas não a viu retirar. Ele nem sabia o título da história.

- Começa. - Diz-lhe o professor.

A turma olhou-se inquieta. O Maurício procurava a folha do livro por todo o lado, começou a ficar lívido. O Prof. olhou para ele.

- Então?

Até ao fim da aula o Aristides encheu de varadas o infeliz Maurício que só gemia:

- Amnésia, senhor doutor. Amnésia. 

Nós, depois do primeiro impacto, ríamos perdidamente e assim o salvámos de mais algumas bordoadas que foram distribuídas por aqueles que não continham as gargalhadas por mais varadas que levassem.

 

Tudo isto pode ser feito mas os jovens têm de estudar ou, pelo menos, estar muito atentos na aula. O verdadeiro sumo da matéria é muito reduzido e de fácil absorção. Aquilo que desvia os alunos das matérias é aquilo a que na linguagem estudantil se chama palha e que muitos professores confundem com matéria e tornam as disciplinas intragáveis. Conseguem diluir a essência com montes de teoria balofa e improdutiva.

Por que razão os alunos são capazes de ler os livros mais diversos e não são capazes de ler os de estudo? Pelo que acabei de dizer.

Eu ofereci todos os meus livros à Casa da Mocidade da Guarda, impecáveis. Porquê? Eu, que era capaz de ler até de madrugada e mesmo depois de umas horas de farra, por que razão não lia os de estudo? Falta de motivação dos professores e minha e livros com pouco interesse.

 

Minha mãe lia imenso; Camilo, Bocage, Eça, Gomes Leal, Júlio Dinis Florbela Espanca, Aquilino, Alves Redol, Ferreira de Castro, Júlio Dantas, Gomes Leal, Gomes Ferreira, Tolstoi, Morris West, Erico Veríssimo, Somerset Maughan, Stendhal etc, etc.

A partir dos dez anos, deixei de ler os livros que minha mãe comprava para a minha idade e comecei a ler tudo o que ela lia. Queria entender o porquê da vida. E procurava a explicação naqueles. Era a minha intuição, a minha partícula divina, a indicar-me o que devia fazer.

 

A maior invenção do ser humano foi o livro. Com o livro desenvolveram-se e fixaram-se os conhecimentos. E, mesmo existindo os mais complexos meios de gravação, há-de ser o livro que prevalecerá como ligação desses conhecimentos. É uma ligação de amor eterno. Porquê? Porque o livro seguramo-lo entre as mãos, apalpamo-lo, não nos cansa, repousa a nosso lado, dorme connosco, conversa calmamente de maneira que o conhecimento nos é fornecido como um manjar delicioso que recordamos quando nos interessa.

O livro é o companheiro que nos ensina e nunca discute. Sentimo-lo entre as mãos. É um contacto afectivo. Se nos desagrada pomo-lo de lado e procuramos outro. Ele não se aborrece, nem faz má cara.

 

Continuo a insistir. Deve-se utilizar a inteligência para se resolverem não só os problemas do ensino a nível dos países menos desenvolvidos como até dos mais desenvolvidos. Comparar o que está feito nos outros lados e melhorar sempre.

Quando todos souberem ler, escrever e contar, o mundo dá um salto enormíssimo e, se esse saber ler, escrever e contar for acompanhado de sugestões, conselhos e ensinamentos sobre as relações humanas e o desenvolvimento humano, acabam as guerras porque o ser humano estará feliz. Quem é feliz nunca aborrece os outros porque não sente necessidade e não quer ser aborrecido.

 

Acredita em ti, ciente que a tua vontade, a tua liberdade, o teu amor à vida e a tudo quanto te rodeia te pertence e podes usufruir dos seus benefícios dando-lhe, em troca, um pouco do teu esforço a bem dos outros. É o reflexo da vida: vivemos todos em função uns dos outros. Se ajudarmos os mais inaptos estaremos sempre a ajudar-nos a nós próprios e a ajudar a humanidade a viver a vida, a viver a sua felicidade.

Isto não é utopia. É fruto de cinquenta anos de estudo e de sessenta e quatro de amor, mesmo quando devia sofrer. Por inacreditável que pareça, até o sofrimento me dá prazer. Aceito os desafios, vou à luta, provoco as situações ou elas até me apanham de surpresa.

Não desisto enquanto não compreender a vida e por isso me desnudo para, se não for eu a desvendar o segredo que continua a envolver o porquê da existência dos pobres e da barbárie que faz com que nos matemos uns aos outros, sejas tu a resolver esse mistério.

 

Estamos, outra vez, na cidade da Guarda.

O Cônscio era o único aluno que estudava, talvez porque apoiado pelos pais; o pai era médico, ele fosse levado a fazê-lo de maneira correcta. Mas ele era inteligente embora, às vezes, um bocado maçador com as suas teorias. Era o mais novo da turma. Os colegas fugiam das suas conversas. O único amigo que ouvia o Cônscio era eu. Ele tinha conversas diferentes. Era um jovem que gostava de descobrir coisas para beneficio do mundo. Lembro-me que o ouvi, durante dias sobre a invenção de um carro que funcionava a água, enquanto passeávamos pelo jardim da Guarda, descíamos até ao antigo sanatório e regressávamos purificados pelo ar bendito daquelas alturas. O automóvel funcionava através de um reduzidíssimo combustível para fazer que a água entrasse no circuito idealizado por ele.  Podia andar milhares de quilómetros enquanto houvesse fontes, torneiras ou rios onde abastecer. Não sei se ele continuou com as investigações: já não o vejo há uns bons 46 ou 47 anos. Sei que intimamente lhe desejava o maior sucesso, embora na altura lhe fosse contestando a ideia para ele melhor pensar nela. Ficaria felicíssimo se um português conseguisse revolucionar a área dos combustíveis e despoluísse este mundo abafado em dióxidos e asneiras.

O ano foi passando e apesar de estudar pouco, os exercícios do período garantiam-me a ida a exame. No dia anterior à saída das notas estava eu com o Calheiros, grande amigo, que tinha uma voz de sonho e que era o nosso cantor para as serenatas. Ele cantava e nós fazíamos as conquistas. Muitas vezes, quando ele não queria cantar, oferecíamos-lhe uma boa sova e ele lá se resolvia a abrir a goela. Era o máximo o Calheiros. Especialista no canto e em pilhar galinhas aos professores. Fazia-o com requinte. Enquanto nós usávamos todas as cautelas e queríamos que ele se despachasse, ele preparava aquilo como se fosse para um concerto de ópera:

“Quereis a castanha ou a preta?”. Apetecia-nos apertar-lhe o pescoço. “Despacha-te!” e ele: “A castanha ou preta?” e tínhamos de escolher, senão não saíamos dali. “A castanha”. Nunca mudou, fazia aquilo sempre com todo o requinte. Só uma vez lhe fiz devolver um belíssimo capacho que ele levou para a República Baco - Vénus que funcionava no meu quarto e onde eram julgados os caloiros.

- É proibido tirar seja o que for, salvo aves de pena e animais de pêlo, e só para as ceias imediatas, ouviu seu bruto?

- Eu só queria que todos pudessem limpar os pés.

- Vê mas é se não sujas as patas com material que podemos dispensar.

Apesar deste “suave”tratamento,  nunca se aborrecia. Era um amigo.

O Calheiros era também um refinadíssimo cábula; só estudava nos últimos dias do ano. No dia anterior à saída das notas ele estava triste, encontrávamo-nos na sede da Mocidade Portuguesa, casa onde toda a juventude se juntava. Ele estava preocupadíssimo com as disciplinas de português e  inglês. A português tinha tido dois Medíocres nos pontos. Eu tinha tido um Bom e um Suficiente, estava mais que descansado. Só ia com deficiência a matemática. Estávamos nesta conversa quando chegou o Ferreirinha, professor de português. o Calheiros agarrou-me o braço.

- Ó Cunha Simões, por favor, pede ao Ferreirinha por mim.

O Ferreirinha era o dirigente da Casa da Mocidade como professor e eu era Comandante de Bandeira da mocidade Portuguesa. Estava muito à vontade com ele, como estive sempre com todos os professores, nunca fui tímido. O Ferreirinha deu as boas noites e eu fui com ele para a sala das reuniões. Imediatamente lhe atirei.

- Queria pedir-lhe um grande favor.

- Tu não tens problemas na minha disciplina.

- Não é para mim. Dê nota ao Calheiros para ir a exame. Eu prometo-lhe que faço uma boa revisão da matéria com ele.

O Ferreirinha olhou-me com ar indefinido.

- Ele é assim tão teu amigo para te empenhares tanto, em vez de te preocupares contigo?

- Ele faria o mesmo por mim.

- Aquela turma, é uma turma desgraçada. Vocês são os maiores cabulões do Liceu.

Eu fiz que não ouvi e continuei a insistir na petição. O Ferreirinha saiu irritado da casa da Mocidade.

No outro dia estávamos os dois reprovados e quase toda a turma. Mais de 80%. Eu fiquei louco. O Ferreirinha tinha-me reprovado injustamente. Vou a casa dele, procuro-o pelo Liceu, por toda a cidade para lhe dar a maior sova que alguma vez ele teria levado em toda a sua vida. Ou ele ou eu. Estava cego pela injustiça e faria qualquer loucura se o tenho encontrado. Como não o encontrasse reuni todos os alunos reprovados e fomos à caça de professores, entretanto alguém devia ter dado o aviso e tinham desaparecido. Fomos ao liceu falar com o reitor. Não nos queria receber. Eu mandei-lhe recado, pelo Bissaia, que íamos começar a partir tudo. Lá me recebeu. Disse-lhe que era um escândalo tantas reprovações e contei-lhe a parte do Ferreirinha e a resolução que eu tinha tomado. O Rabaça, era o reitor, tentou acalmar-me, mas viu bem a minha determinação. Depois de prometer que ia falar com os professores, embora as notas já estivessem lançadas e ele pouco ou nada pudesse fazer, ia tentar.

No dia e dias seguintes estiveram os portões do Liceu fechados. Como se tudo fosse natural havia dois polícias passeando pelas imediações. Eu não descansei. Fui várias vezes a casa do Ferreirinha, esperei-o horas, à porta e nada.

Quando fui para férias ia com a alma desfeita. Afinal o professor era uma criatura indigna em quem eu não podia confiar. Isso entristeceu-me tanto que por mais tentativas que meu pais fizessem para sair de casa, enfiava-me no primeiro andar e devorava livros sobre livros. Ao fim de um mês tudo voltou ao normal, excepto o pensamento negativo contra o infame do Ferreirinha, o que para mim era uma sensação nova.

O Calheiros tentou ir falar com a professora de Inglês, que eu adorava, mas ela julgando que a íamos atacar fechou-se em casa e no ano seguinte nunca mais sorriu para mim. E eu respeitava-a tanto. Só estava com o Calheiros para evitar que ele lhe fizesse algum mal ou a ofendesse. Ela não entendeu, nem podia entender. Sabia que éramos um bocado loucos e temeu o pior. Foi outra mágoa. Perdi a amizade, injustamente, de uma professora que estimava profundamente. Era muito simpática, muito bonita e muito boa professora.

 

No ano seguinte não tive nenhum  professor do ano anterior. O Rabaça era bom psicólogo e dessa maneira tentou evitar conflitos. Eu esqueci o Ferreirinha, não sou de guardar rancores quando o motivo que os desencadeia não me aparece pela frente, mas logo no início do ano eu estava na bela varanda da casa da Mocidade observando o movimento da praça, o interessante casario sobre as arcadas para abrigo e passeio de quem, nos breves, mas ferozes Invernos,  por ali se resguarda, a imponente Sé da Guarda, a estátua do D. Sancho, onde muitas vezes fazia discursos inflamados, melhor dizendo; vaporizados, depois de uma noite de serenatas, ou de alguma ronda pelos galinheiros para a ceia; estava eu, dizia, no deleite infinito do sonho, quando vejo a sombra monstruosa; ele pouco mais era do que raquítico, do Ferreirinha. Tudo se transformou em mim, eu o doce, o amante, o jovem capaz de sacrificar tudo pela felicidade dos outros, virei a fera acossada e incapaz de suster os instintos. Saí intempestivamente da varanda e fui-me postar no portão largo da Casa da Mocidade, para onde eu imaginei que o infame se dirigisse. Não me enganei, o energúmeno ia descarada e incautamente ver a casa que ele, como professor indicado para o efeito, devia dirigir.

Especado entre as portas, que eu de propósito tinha aberto de par em par, estava eu, de braço estendido e encostado à ombreira direita.

- Com licença. - Disse o descarado.

Eu olhei-o faiscando furor. Continuei na mesma posição. Quando ele ia passar pelo lado esquerdo, estendi o braço esquerdo.

- Você não passa daí.

Eu nunca trato ninguém por você, a menos que essa pessoa me ofenda. Fiz isso também com um político quando ele me instaurou um processo por causa de um primeiro ministro que ele tinha escolhido para depois o derrotar no Parlamento. É uma história a contar mais tarde, em outro livro, em histórias politicas. Temos de fazer a nossa catarse. Eu não dispenso de fazer a minha. Só conhecendo-nos uns aos outros seremos capazes de resolver os problemas do mundo.

 

Voltemos ao infeliz.

- Eu sou o director...- disse o Ferreirinha.

- Você não é nada. E se fizer alguma coisa para o ser, eu dou cabo de você! Desapareça antes que eu o agarre, o leve lá acima e o atire da varanda! - Eu devia estar de pêlo eriçado porque o Ferreirinha desapareceu. Durante o ano nunca mais pensei nele. O rancor não é semente que dê frutos. Eu talvez sentisse isso. Bastava-me um sorriso de uma colega simpática ou um piano, ou um poema, ou um livro, ou um cântico e as zangas desapareciam como por magia. Ainda hoje sou assim.

O Ferreirinha só se queixou a um amigo dele, homem muito inteligente, o senhor José António, que era na altura secretário do Governador Civil da Guarda e tinha sido Secretário da Câmara de Penamacor, onde toda a gente gostava dele. Conversava com todos, metia-se com as pessoas, mas sempre de uma maneira simpática, embora, às vezes, puxasse demais a corda. Conto só esta para veres até que ponto ele podia exasperar as pessoas:

Estava no barbeiro e resolveu massacrar o bom do jovem que lhe cortava o cabelo. Este, farto de o ouvir e não sabendo o que lhe responder perguntou-lhe:       

- Ó senhor José António, o senhor é de onde?

- Do Telhado.

- Bem me parecia.

- Bem te parecia?

- É. Na sua terra só há burros e carvoeiros e, segundo me parece, o senhor não é carvoeiro.

O José António riu-se e deixou o barbeiro em paz.

Foi ele que me contou o desabafo do Ferreirinha já depois de eu terminar o quinto ano, onde esse safado entra outra vez.

No Liceu só se falava no que eu tinha feito ao Ferreirinha, mas eu não adiantei muito sobre o assunto e aquilo ao terceiro dia morreu, como morrem todas as notícias ou acontecimentos se não se insiste neles.

Andava pensativo, escrevia uns poemas que enviava para o lixo, não estava a gostar de mim, sentia-me aborrecido e acabava por me culpar a mim próprio. Estudar não estudava nada. A matéria já a tinha ouvido no ano anterior e procurava fazer tudo o que me distraísse. Continuei a ser chefe de turma e uma das professoras que mais me davam prazer, não que ela me ligasse qualquer importância, mas que eu tinha gosto em a ver ruborizada sempre que ficava zangada era a D. Fernanda Cardinali. Não sei porquê tinha de a fazer zangar um bocadinho só para a ver de faces rosadas. Como era chefe de Turma perguntava-me sempre em Inglês.

- Moniter. Who is absent? - Chefe, quem falta?

Eu fingia que não ouvia e ao fim de 4 ou 5 repetições da mesma frase, quando ela ficava zangada e ruborizada eu respondia-lhe:

- Não absent ninguém!

Deixava-a desesperada. Depois passava a aula sossegado e feliz. Era um pequeno egoísta. 

Ela tentou vingar-se destas maroteiras. Eu perdoei. Embora jovem, compreendia que a sua retaliação era justa. Como professora ela devia, não obstante, compreender o aluno e arranjar maneira de o corrigir. Continuei a gostar dela na mesma, mas aproveito para apontar dois dos seus ataques que me podiam ser fatais se eu não tivesse esta elasticidade portuguesa que nos faz ser génios nos momentos difíceis.

Vamos ao contra ataque da professora.

Eu nunca escrevia os sumários que ela ditava e só passava os exercícios do quadro que não sabia. Lia e compreendia bem inglês e como gostava da professora, mesmo sem ela gostar de mim, tudo era simples. Um dia a D. Fernanda resolveu pedir os cadernos diários, talvez desconfiada do meu fingido interesse. Tinha razão. Eu e o Borges teríamos menos de um terço do que havia sido ditado para estar no caderno. Fez um grande sermão e só não me marcou falta de castigo para não castigar o Borges. Exigiu que trouxéssemos os cadernos diários impecáveis na Segunda feira seguinte. Eu pedi o caderno emprestado ao Herculano e nesse dia e no outro fiquei livre de preocupações. No Domingo houve jogo entre o Benfica e a Académica. A grande maioria de estudantes da cidade da Guarda ia para Coimbra estudar, por isso todos puxavam pela Académica. A Académica ganhou ao Benfica. Não se pode imaginar a euforia. Um comerciante ofereceu uma pipa de vinho, e durante todo o resto da tarde, milhares de estudantes, de todos os graus de ensino, juntaram-se, cantaram, dançaram felizes. Tudo se passou sem partir montras ou fazer quaisquer estragos. Foi até às tantas. Passámos perto das janelas da professora e eu bem a vi, mas fiz de conta. No outro dia, depois do tirar das faltas, pediu-nos os cadernos. O Borges foi lesto em mostrar aquela beleza mas começou a lamentar-se.

- Senhora doutora, estive até às quatro da manhã de hoje para o acabar.

- Então, não te divertiste com os teus colegas?

- Nem pensar, estive todo o dia em casa. - Não era verdade, o Borges tinha andado na farra como eu e os outros.

- Bem feita! Não te divertiste! Senta-te. Cunha Simões?

Eu ainda estava sentado na carteira e continuei. Respondi-lhe.

- Eu diverti-me à grande e à francesa.

Ela, cega de mente, por culpa minha, não entendeu ou não quis aceitar a  brincadeira.

- Vai ter falta de castigo! Que número é, que número...?

 Enquanto abria o livro para marcar a falta, eu fui até junto da secretária, sem ela se aperceber, tal era a sua excitação. Quando levantou a cabeça para me perguntar outra vez o número, eu respondi-lhe com o ar mais cândido que consegui ajustar:

- Eu disse que me tinha divertido, mas não disse que não tinha feito o trabalho.

A doutora Fernanda perdeu as estribeiras. Estava esplendorosa mas implacável.

- Eu não lhe admito que brinque comigo! Eu não sou da sua idade! Vai já ao reitor! - Carrega na campainha, chama o contínuo e aí vou eu enfrentar o Rabaça. O Reitor depois do contínuo lhe explicar quem me tinha mandado, perguntou-me.

- E então?

- A professora não compreendeu nada e deve estar mal disposta. Mandou-me ao sr. Reitor. Estou inocente. - O Rabaça conhecia-me do ano anterior . Sabia o meu modo de actuar, embora contra uma senhora eu fosse incapaz de uma maldade.

- Vai outra vez para a aula. Diz-lhe que tomei nota do assunto.

- Vou ser castigado?

- Não. Mas tens de lhe dizer alguma coisa. - Foi o que fiz, e embora eu tentasse que ela me visse aquele perfeito manuscrito que me tinha mandado copiar, recusou tocar naquelas folhas, filhas da irreverência e inúteis, ou talvez não. Sempre revi matéria.

A D. Fernanda tentou prejudicar-me na nota de Inglês. Eu, no exame, provei-lhe que sabia bastante bem a matéria. Passei com uma boa nota, dada por outro seu colega . Se fosse ela a examinar-me tenho dúvidas que isso tivesse acontecido, embora possa estar enganado no que penso. Fiquei a gostar tanto da disciplina que embora tenha seguido Filologia Românica domino bastante bem o Inglês, às vezes, melhor do que o Francês.

 

O Professor nunca deve prejudicar um aluno pela sua conduta. Ele tem de compreender o que se passa e tentar resolver o assunto sempre sem lesar o jovem. Os jovens são irrequietos, desagradáveis, às vezes até mal educados. O professor tem de descobrir a parte sensível e despertar-lhes outras reacções.

 

Vou mostrar como conseguia resultados positivos com os meus próprios alunos.

As aulas funcionavam sempre muito informais de maneira a ganhar a confiança dos alunos. Eles sabiam que podiam errar, perguntar ou dizer aquilo que pensavam que isso não me incomodava, servia sempre para esclarecer. Muitas vezes vinham-me ideias mirabolantes quando fazia chamadas.

Um dos indivíduos mais cábulas que tive, mas muito bom rapaz e muito educado era o Henrique, ele gaguejava um pouco, quando era chamado e não sabia a matéria, não havia maneira de lhe arrancar palavra. Ali estava “am, am, am”, tempos infinitos. Um dia, em que eu o senti forte psicologicamente, e sabia que não o ia ofender disse-lhe.

- Ó Henrique, se eu gaguejasse como tu ganhava uma fortuna.

- Como, como? - gritaram todos os alunos, enquanto o Henrique, espertalhão, manteve o ritmo.

- Co...co...co...como sr. professor?

- Conheces a varanda da minha casa?

- Co...co...co...conheço.

- Colocava um cartaz, a toda a largura, com os seguintes dizeres: “ Seja diferente de toda a gente, aprenda a gaguejar com o Prof. Cunha Simões, ganhava uma fortuna”. - Gargalhada e reboliço geral, todos queriam imitar o Henrique e ele sem se importar dizia:

- Pa...pa...pa...gas?

Ao marcar pontos de período sabia que muitos dos alunos copiavam. Eu fingia que não via. Tinham copiado a matéria do livro em casa, voltavam-na a copiar ali, alguma coisa lhes ficaria na cabeça e ficava. Eu sabia-o por experiência própria. Um dos males dos professores é esquecerem as suas próprias experiências de juventude. 

Nos exames protegi alguns alunos, não me arrependo. Uma aluna que repetia pela quarta ou quinta vez o exame de francês, e que ali continuaria indefinidamente, é hoje uma óptima advogada. Podia citar muitos outros que fiz passar perante os meus colegas, escandalizados por eu omitir erros de palmatória só para os tirar dali e serem bons para aquilo que estavam vocacionados e não para marcarem passo em disciplinas a que eram totalmente avessos.

No livro de história, que publiquei, insisto para que os professores ensinem a consultar os livros. Os advogados, os médicos, os engenheiros é o que têm de fazer. Hoje, não há ninguém que consiga saber tudo. O tempo dos sábios acabou.

 

Eu sei que as turmas, com muitos alunos, são mais complicadas. Eu fui professor. Quando entrava na aula era como entrar no paraíso. Por mais que eles fossem irreverentes eu tinha sempre uma saída. Nunca uma saída piegas. Algo que os marcasse para o entendimento.

Numa aula verifico que 3 ou 4 alunos estavam a mascar pastilhas elásticas. Aquilo estava a incomodar-me e disse-lhes.

- Acabem a mastigação e deitem as pastilhas no lixo. - Eles assim fizeram, mas eu quis testar a minha premunição; sabia o que iria acontecer, e acrescentei:.

- Sempre que venham mastigar pastilhas para a aula, de três em três minutos colocam a pastilha na testa, retiram, mastigam e testa.

No dia seguinte, dez minutos depois de começar a aula, todos os alunos começaram a mascar  pastilhas. Vi imediatamente o que eu adivinhara. De três em três minutos; pastilha na testa. Só quase no fim da aula, em que eles estavam besuntados até dizer basta, houve gargalhada geral. Não os repreendi, fui eu que provoquei aquela reacção. Ri contente. A partir daí nunca mais nenhum mastigou  pastilhas como era hábito.

O professor tem de ser, na aula, o que abre horizontes e aquele que nunca se fecha a uma pergunta incómoda.

Num texto apareceu a palavra tango. Oito ou nove alunas declararam, e já tinham 16, 17, 18 anos que não sabiam o que era o tango ou dançar o tango. De pergunta em pergunta resolvi exemplificar; dancei o tango com algumas alunas e sem o mínimo reboliço. Claro que escrevi no livro de Sumários “Dancei o tango com as alunas tais e tais...”

Foi um escândalo. A direcção do Liceu Nacional de Tomar exigiu que eu modificasse o sumário. Eu ri-me nas caras dos meus colegas: “foi isso que foi dado na aula, importa-me bem o que pensem os inspectores do Ministério.”.

Um dos muitos alunos que tive foi o António Manuel Lourenço dos Santos, que tem ocupado vários cargos neste país e sempre com brilhantismo. Era um brincalhão incorrigível. Ele era meu aluno de lições particulares e se eu não tenho insistido com a professora de inglês para lhe dar nota, ela tinha-o reprovado sem razão. A professora foi uma vítima a seguir ao 25 de Abril. Eu tive de intervir, várias vezes, nas suas próprias aulas para os alunos pararem de a enxovalhar, talvez por isso, embora renitente, deu-lhe nota para exame e ele saiu-se muito bem.

Insisto: comportamento, não tem nada a ver com aproveitamento e se os alunos não têm aproveitamento deve procurar saber-se o que está errado na maneira de ensinar dos professores.

Só o aluno atrasado mental deve ser encaminhado para as instituições respectivas. Esses é que não têm hipóteses de aproveitamento nas instituições normais, os outros é uma questão de orientação.

Há mais de trinta anos já eu insistia que os alunos estavam nas escolas para aprender e aprender  brincando. Estamos a caminhar nessa direcção. Na altura apelidaram-me de louco.

Continuo a insistir: as disciplinas só são difíceis ou porque os livros as complicam ou porque há matéria a mais e sem interesse que desmotiva o aluno.

Em lições particulares tive alunos, já adultos, que fizeram sete anos em dois. Lembro-me da Célia, do Martins, etc. Cinco anos em dois, foram muitíssimos. Isto provava-me que eu tinha razão em estar revoltado com os professores e estar-me borrifando para os estudos. Só os fiz por passatempo e quando me apeteceu.

Tu não deves proceder desta maneira. Hoje, os tempos e as circunstâncias são diferentes.

 

É fundamental que os alunos se apresentem aos exames que entenderem, independentemente da idade. Neste deambular pelo país encontrei miúdos, com oito, onze e doze anos que estavam ao nível de qualquer professor universitário, no entanto andavam pelo terceiro, sétimo e oitavo ano, aborrecidos e sujeitos a desistirem por falta de interesse.  Normalmente são os países estrangeiros que os absorvem. Lembro-me de um que foi reprovado aqui em matemática e é um génio nas ditas, em Inglaterra.

Por agora, só conto mais esta e que revela bem o mau carácter ou a atitude irreflectida de alguns professores.

Na faculdade de Letras, em Lisboa, a professora de Latim reprova a latim, um jovem que lia e escrevia Latim como os melhores latinistas. Foi ele que me deu lições de latim para o exame do sétimo ano, hoje 11º. Ele tinha saído do seminário quase a cantar missa. Resolveu à última hora vir cantar para outras freguesias. Fez como entendeu. Entrou para a faculdade. Teve de lá sair enojado com o que lhe aconteceu e porquê? Porque ingenuamente emendava pequenos erros da professora. O Resultado foi sair da faculdade para não acontecer nada de mal a quem mal lhe fazia sem necessidade. Perdeu-se um catedrático de Latim, salvou-se um Homem de honra.

 

Eu senti na faculdade, o incómodo de uma intervenção não concordante com a do Professor.

A Professora Doutora Crabbé Rocha, dissertava sobre “Os Relógios Falantes”, eu, atento, via a explicação de maneira completamente diferente e em vez de esperar pelo fim da aula e ter exposto, em particular, a minha opinião, automaticamente peço para interromper e dizer de minha justiça. A Professora não tinha pedido sugestões. Depois de ter falado, vi que tinha causado incómodo e só aí me apercebi da minha falta. A Professora ouviu e aceitou dizendo que era outra maneira de abordar a matéria. Não ficou magoada. Devia ter pensado que fui deselegante por impulso. Alguns anos depois, no meu livro “Os homens são Difíceis” citei-a como o forte esteio do marido na crítica e revisão dos livros. Foi a maneira que eu tive de lhe pedir desculpa da minha deselegância, da minha falta de tacto, falta de saber ou impulso que não soube controlar, e é um pouco isto que acontece com quase todos os jovens. É preferível ouvir um irreverente do que se perder uma boa ideia. São os riscos e a subtileza dos professores que fazem desenvolver o mundo.

 

O aluno tem necessidade de dizer o que pensa e isso, muitas vezes, não é coincidente com o que pensa o professor. Este não deve ficar ofendido com o desplante do jovem. Nunca me ofendi com as irreverências ou com as perguntas dos meus alunos. Disse-o uma vez, dois ou três meses antes do 25 de Abril, num programa do Manuel Varela, que eu aprendia com os meus alunos. Cada um, entendesse como quisesse.

Na verdade, nós aprendemos tudo quanto quisermos e quanto mais aprendemos mais fácil é aprender seja o que for. Nesse programa do Manuel Varela, embora fosse  sobre o livro “Os homens são difíceis” que ele ia tratar, eu aparecia a arranjar relógios de bolso. A ideia era demonstrar  que os interesses dos homens podem ser os mais diversificados. E quanto mais são, mais se apalpa a vida, mais se saboreia, mais sentimos que estamos a viver.

Como é que eu aprendi a arranjar relógios? Um dia apareceu-me lá em casa um especialista em ourivesaria e relojoaria, o sr. Santos. Eu não o conhecia. Estamos em Tomar.

- Sei que o sr. dá lições, particulares, de Inglês. Eu queria aprender.

Eu andava muito cansado e indiquei-lhe vários bons professores, mas ele teimou, pediu desculpa da insistência e eu achei-o tão delicado que lhe perguntei:

- O sr. trabalha em quê?

- Sou relojoeiro.

- Fazemos o seguinte, o sr. ensina-me a arranjar relógios e eu ensino-lhe inglês.

Perante o espanto dele, ao fim de menos de 4 meses, eu punha um relógio impecável enquanto ele me confessava que tinha andado mais de quatro anos para aprender o mesmo. Eu respondi-lhe que o mérito estava no professor. E estava. Ele é um especialista e tem gosto em ensinar o que sabe. Devido a essa aprendizagem coleccionei relógios, vendi relógios e até cheguei a trocar 7 belíssimos relógios por um Ford Perfect, ao meu querido e saudoso amigo Manuel Marques (Migalhas), que era um fabuloso artista na arte da latoaria.

Outra vez troquei lições com o sr António Alves. Também me apareceu lá em casa. Queria lições de Francês. Ia para França. O patrão não lhe dava os 200 escudos de aumento que ele tinha pedido. Estava casado há pouco tempo e o dinheiro não lhe chegava. Ao princípio não o aceitei.  Ele voltou 8 dias depois.

- Tenha paciência sr. professor, é consigo que eu tenho fé. Leve-me o que quiser. Eu pago-lhe quando voltar de França, no próximo ano.

Perante aquele: “é consigo que eu tenho fé”, eu, que sou um pouco supersticioso, acreditei que lhe poderia valer.

- O que faz?

- Sou chefe da oficina de electricidade de automóveis do Sr. Câncio.

- O sr, dá-me lições de electricidade de automóveis e eu ensino-lhe Francês.

- Como fazemos?

- Eu vou para a oficina todas as manhãs. - E lá ia, perante o olhar admirado de quantos me conheciam e não resistiam a fazer perguntas. Eu respondia invariavelmente.

- Temos de deitar mão a tudo. Quanto mais sabemos mais vivemos, porque mais nos apaixonamos pela vida. - E acreditava no que dizia.

O sr António só me ensinava uma vez e a seguir, para seu espanto e do sr. Câncio eu reparava os carros seguintes. Das muitíssimas avarias que me ensinou a reparar, todas as repetições foram de minha lavra. O sr Câncio, feliz de contente, cobrava como se eu fosse 1º oficial. Além da reparação ficar perfeita, era muito rápido nos trabalhos e não tinha que me pagar coisa nenhuma.

Isto não tem nada de extraordinário. Quanto mais aprendemos, mais fácil é aprender outros assuntos. A vida é uma sequência de aprendizagens, está tudo ligado. É como puxar um fio e aí vem tudo. Acontece isso com os trabalhos manuais, acontece isso com as línguas, acontece isso com qualquer outra matéria. Matéria puxa matéria.

Que aconteceu ao sr. António Alves e às lições de Francês?

Todas as noites, eu matraqueava a lenga-lenga. Ao fim da quinta lição pediu-me para deixar assistir um amigo dele, era primeiro sargento; reparava televisões também na oficina do sr. Câncio. Naquela altura, um ano antes do 25 de Abril, um primeiro sargento ganhava muitíssimo pouco. Eu concordei.

À medida que os dias passavam vi que aqueles dois homens faziam falta a este país: eram dois prodigiosos especialistas que iriam enriquecer outra nação tendo nós tanta necessidade de gente qualificada. Todos os dias lhes dizia:

- Aqui é que é a França. Aqui é que se pode ganhar dinheiro. Está tudo por fazer.

- Mas como? - perguntavam-me eles.

- Montando uma oficina igual à do sr Câncio.

- Não temos dinheiro.

- Têm crédito. - Eu posso emprestar, sem juros, e lá lhes disse quanto.

Eles começaram a pensar no assunto e a procurar.

Montaram a Repal Ourém em Vila Nova de Ourém, sem necessitarem do meu empréstimo, porque todos aqueles a quem recorreram lhes facilitaram a vida. Hoje são dois verdadeiros potentados.

 

Tinha razão, o meu amigo António Alves. A fé é a intuição que raramente nos engana. É preciso saber aproveitar a intuição e o conhecimento das matérias em que devemos ser muitíssimo bons. É preciso insistir na fé que desperta os nossos desejos e actuar sem receios. É preciso juntar a fé à acção e ao conhecimento para se atingir a prosperidade e a felicidade.

 

Todos nós estamos carregados de energia. É a tal partícula de que tenho falado. Essa energia capta outras energias a longas distâncias, vê, em determinados momentos, factos que outros não prevêem. Dou-te exemplo de factos que podem ser confirmados.

Em 1963 ou princípios de 1964 estava no Cine teatro Tomarense com quatro amigas, eu estava numa ponta do 1º balcão seguido da Maria Ermelinda, a Maria Alcina, a Manuela e a Graça, a determinada altura do filme, e sem que nada o motivasse, disse à Maria Ermelinda; vai acontecer um terramoto. Ela respondeu-me. 

- Não diga patetices. Esteja calado. Veja o filme.

Mas eu estava inquieto e continuei a insistir. Passados 7 ou 8 minutos, um tremor de terra abalou todo o edifício. As pessoas aterrorizadas preparavam-se para fugir. Como estava avisado, levantei-me rapidamente e gritei:

- Daqui ninguém sai!

Passados uns segundos as luzes foram abertas e só, depois, as pessoas começaram a sair calmamente e sem atropelos. O cinema estava quase cheio, quando continuou o filme só ficamos nós e mais uma vintena de valentes. As minhas amigas ficaram porque eu lhes garanti que o perigo tinha passado.

Esta sensibilidade, esta energia é uma das nossas defesas que mal sabemos explicar mas que todos possuem num grau maior ou menor.

Outro caso, com duas vertentes. Eu falo nele, por alto, no livro “Doenças que as plantas curam”. A minha amiga Maria Alcina e o Manuel estiveram alguns anos sem ter filhos, consultaram alguns médicos, o pai da Alcina, o Dr. Gomes da Silva era médico. Não tinha hipóteses de engravidar. Num dia em que falávamos sobre o assunto eu disse-lhe entre o sério e a brincadeira.

- Queres que eu te arranje um filho?

- Não sejas doido. - Respondeu-me ela.

- Estou a falar a sério.

E de conversa com o Manuel e com a Alcina e mais só a minha energia eles acabaram por não só ter um mas três filhos. Com a primeira, no segundo mês de gravidez indiquei-lhe o dia exacto do nascimento. Ao sexto mês confirmei o dia mas nem a Alcina nem o Manuel acreditaram. A médica que a seguia dava-lhe mais dezasseis dias depois da minha data.  

Estava eu a entrar para o mesmo cine teatro de que já falei, quando vejo a Alcina e o Manuel a atravessarem o átrio, gritei-lhes imediatamente, perante o espanto de quem entrava naquele momento e o ruborizar da Alcina.

- Alcina, tu não podes estar aqui, vais ter a filha logo de manhã!

Nos corredores do Teatro a Alcina, muito corada, voltou a dizer-me se não tinha vergonha por falar tão alto e que tinha precisamente ido à médica e ela lhe tinha dito que o parto ainda estava demorado. Eu insisti na minha certeza. Às seis ou sete da manhã estava o Manuel excitadíssimo ao telefone.

- Já nasceu!. Já nasceu! Você sabe mais que todos.

Não sei nada. Uso a partícula em que acredito. Só não a posso utilizar em meu proveito. Ela só me protege quando os meus exageros ultrapassam as loucuras.

 

As nossas viagens do século XXI devem ser as do pensamento. Vender ideias para ajudar primeiro, Portugal e depois todo o mundo. Brancos, negros, mulatos, amarelos, vermelhos somos todos irmãos dispersos pelo grande útero que nos acolhe.

 

O Manuel Guimarães era inteligentíssimo. Eu, no livro de “História de Portugal 1097-1999” digo que ele se formou com 20 escudos no bolso. Para bom entendedor, meia palavra basta. Ele admirava-me pela loucura, eu admirava-o pela inteligência. Ele serviu-me de estudo para assistir à subida a pulso de uma vida, a sua, que terminou jovem. A minha, que quase me ofendia, por ser tão facilitada, foi sempre palco de uma revolta constante mas de aparência feliz.

Para entender o porquê destas diferenças, e para as saber resolver, cometi vários erros de que ainda hoje sofro as consequências. Só me arrependo das vezes que prejudiquei alguém, durante algum tempo, mas sempre certo de que os prejuízos seriam reparados.

O Manuel insistia em que vivemos num mundo de lobos famintos e que eu seria destruído se continuasse idealista. Era um conselho que eu nunca aceitei porque sempre pensei e ainda continuo a pensar que estas desigualdades têm uma solução. O meu idealismo tem razão de ser: eu acredito na felicidade do ser humano. Na junção do ideal e do material.

Ele, várias vezes contava as minhas facécias ou as minhas destemidas atitudes o que, aparentemente, estava em contradição com esse idealismo. Relato três episódios que ele referia frequentemente.

O primeiro passa-se em pleno Inverno. A Cidade da Guarda e arredores congelaram durante mais de 17 dias, a temperatura ultrapassou os 15 graus negativos. Para a juventude aquilo era o delírio, não havia frio que cortasse a sede de brincadeira, de corridas no gelo, a feitura de bonecos e castelos, de batalhas campais com bolas de neve. Num desses dias, estava eu no quarto da Pensão Central e oiço gritos aflitivos, medonhos, misturados com choros lancinantes. Certo de que era na entrada da Pensão, vesti rapidamente uma camisola branca, de gola alta, e vi, indignado, que a entrada e a escadaria estavam repletos de raparigas que ali tinham sido encurraladas e os meus colegas atacavam, inconscientemente, com as rijíssimas bolas de gelo. Consegui sair para a rua por outra porta. Em voz de trovão gritei:

- Aquele que lançar só mais uma bola de neve ou gelo eu atiro-me a ele e desfaço-o! E, voltando-me para as raparigas ordenei: saiam!

Fez-se silêncio entre os mais de cento e setenta atiradores. Até que um disse.

- Ó Cunha Simões, és louco?

- Sou, e apesar de teu amigo rebento-te os queixos se não fizeres o que digo. - Mais uma vez ordenei às raparigas para saírem. Fi-lo com tamanha veemência que saíram confiantes. Por incrível que pareça, nenhum se atreveu a desobedecer.

Depois desta cena, onde o Guimarães também se encontrava, ele passou a admirar esta bravata portuguesa que nos está no intimo, que nos fez ganhar esta terra, que nos fez entrar pelos sertões sem medo, mas que também nos fez arrostar lágrimas de sangue e raiva em Alcácer Quibir.

 

Tínhamos uma República. A República Baco - Vénus. Os membros eram o Adérito, o Martins de Almeida, o Calheiros, o Bidarra, o Guimarães, o Chartier, o Sá Pessoa, o Armindo e eu. Desde serenatas e ceatas todas as semanas, a julgamentos de caloiros, desempenhávamos a missão como manda a lei da cabulice.     

Muitos dos julgamentos serviam para testar o grau de cultura do caloiro: desde saber a data da fundação da Sé da Guarda, quais os pratos tradicionais da região até à fabricação do queijo da Serra, tudo servia para dar as boas vindas ao neófito. Ai daquele que não soubesse que a Sé tinha sido mandada edificar por D. João I em 1390, que entre os pratos tradicionais se destacavam o cabrito assado, a feijoada de lebre e o arroz de carqueja e que o melhor queijo da Serra provinha das ovelhas bordaleiras sendo o melhor o dos meses de Janeiro e Fevereiro.

Lembra-me de um julgamento, a que presidi, tendo como advogado de acusação o Martins de Almeida e de defesa, o Adérito Nunes Monteiro. Depois de muito massacrada, a vítima, foi condenada ao enforcamento com bênção apostólica para o que na altura, à vista dos presentes, o Bidarra e o Chartier urinaram para um bacio. No tecto tínhamos colocado um gancho feito de arame coberto de pano preto, parecia fortíssimo, onde estava sempre uma corda. A vitima via tudo aterrada. O Advogado de defesa barafustava, não só pela condenação, mas porque, também ele, tinha de pagar cinco litros de vinho devido às custas e pelo condenado ser insolvente.

Mandei vendar o “animal”, o Calheiros cantou uma ladainha própria e o Sá Pessoa começou a borrifar o infeliz, com água morna que nós tínhamos já preparado. Ele julgava que era urina e as lágrimas corriam-lhe cara abaixo. Depois de bem molhado, o carrasco que era o Guimarães ajudou-o a subir para um banco, passou-lhe a corda ao pescoço. Fez-se silêncio. Ordenei-lhe que saltasse. Depois de uma pequena hesitação saltou e com ele a corda. Como tinha escapado ao enforcamento ordenei que lhe fossem dados cinco tostões para ir comprar bolos, pão e queijo da Serra à leitaria Cristal. Quando lá chegou e contou a sua desdita, o dono encheu-o de mercadoria à borla que nós comemos e bebemos até altas horas da madrugada.

Foi sempre assim este segundo ano na cidade da Guarda.

    

Apesar de ninguém prestar muita atenção às actividades da Mocidade Portuguesa ou da Milícia, como eu era o comandante e como andava sempre em todas as farras e era igual ou pior que eles, todos iam às actividades e ninguém pensava em outros assuntos que não o de nos divertirmos e acamaradarmos com os diferentes anos.

Na Páscoa havia as confissões que eram, como tudo o que forjávamos, um motivo de brincadeira. Dos pecados contados aos padres fazíamos gáudio em nos divertirmos tentando ouvir as confissões uns dos outros. Um dos mais engraçados era o José António.   

 

O José António não podia com o padre Inácio. O padre Inácio era um homem de excelsas virtudes, fabuloso de cultura, inteligência e sensibilidade. Apesar da gordura e cara de bonacheirão sabia perfeitamente que o José António o detestava.

Havia muitos estudantes para as confissões, a confusão era grande por causa da brincadeira. Quando vimos que o Padre Inácio estava livre, alguém empurrou o Zé António.

- És tu.

Ele não reparou quem era o padre, mas logo que o encarou teve um gesto para se retirar. O padre Inácio disse-lhe:

- Vai para outro colega, vai. Eu sei que não gostas de mim.

O Guimarães está no lado contrário, preparado para ouvir a confissão, com um monte de capas em cima.

- Não...não...eu confesso-me. - Diz o Zé António, muito vermelho e de bigodito a despontar.

O padre tenta convencê-lo: “assim ficas mais à vontade”, mas o Zé não quer dar parte de fraco e lá se desenrola a confissão interminável. Devia ter inventado milhentos pecadilhos. O Guimarães já dizia mal da vida, por não haver facto assinalável, quando começou a ouvir o padre:

- Eu não te dizia? Tinhas ido a um colega meu e confessavas, à vontade, os teus pecados. Mas diz. Tu sabes que eu estou aqui para te perdoar seja o que for. Conta que eu perdoo.

O José António retorquia:

- Mas eu envergonho-me.

- Ou confessas, ou eu não te posso dar a absolvição.

O Guimarães estava de ouvido atentíssimo, mais uns minutos de espera naquele puxa vaca, puxa boi até que finalmente o Zé António se decidiu.

- Senhor Padre, eu peço-lhe desculpa. Peço-lhe muita desculpa...

- Conta. Não tem importância, seja o que for.

- Então lá vai, e seja o que Deus quiser.

- Diz.

- Senhor padre desculpe, mas todas as vezes que vou à casa de banho e me sai um daqueles muito, muito grande, eu digo sempre: aboca padre Inácio.

O padre ficou lívido, o Guimarães contorcia-se de riso e só foi descoberto porque o padre não conseguindo resistir ao desabafo respondeu, um pouco alterado:

- Aboca tu, meu grande malandro.

Já não houve mais confissões naquele dia. É noticia que ainda hoje corre e que no dia seguinte ia provocando uma catástrofe litúrgica.

Estávamos na Sé, fardados, eu de espada, o Guimarães, o Pedro, o Adérito, os Craveiros, o Nave, o Armindo e outros, segurando as bandeiras da milícia e da mocidade. Estávamos à volta do altar, perfilados. Sempre que nos lembrávamos da história do dia anterior dificilmente contínhamos o riso. A igreja estava cheia. Quando toca ao Santíssimo, o Adérito, tem um ataque de riso, para o suster leva a bandeira um pouco mais longe do que devia. Ouve-se um coro, quase um grito em surdina:

“O Cristo!” E o enorme Cristo, em cima do altar, cravado em cruz pesadíssima, aí vem tocado pela bandeira do infiel. Numa fracção de milésimos de segundo eu tirei a espada e encostei-a ao peito do Redentor. Rapidamente acorreu alguém, que fazia parte da igreja, e segurou a peanha enquanto eu, com todo o cuidado, O empurrava para o Seu lugar.

O Cónego da Sé fez-me um sinal de agradecimento.

Passado o susto, aqueles malandros, escondiam a cara atrás das bandeiras e riam perdidos de gozo.

 

Quando terminei o quinto ano (nono de hoje), a minha ânsia de procura do porquê das desigualdades humanas, levava-me a querer encontrar Deus, estivesse Ele onde estivesse. Eu tinha de Lhe fazer umas perguntas.

À hora de almoço, tinha o meu pai acabado a sopa, que não dispensava, e minha mãe tinha acabado de falar, aproveitei o silêncio.

- No próximo ano vou para o seminário.

Meu pai olhou-me muito sério. De olho azul a tremelicar com o despontar de uma lágrima disse-me:

- Tu não sabes o que queres. - Levantou-se, já não comeu mais nada, foi-se embora e andou cinco dias sem me dirigir palavra apesar de eu lhe dar um beijo de manhã e à noite.

Minha mãe, que normalmente diria “Ó menino (o meu pai), então não comes mais nada? Calou-se. Passados uns minutos disse-me sem rodeios:

- Ora, agora! Tu que não podes ver uma burra de saias, queres ir para padre? Rico padre tu me saías! Não viste como magoaste o teu pai? Não temos outro filho.

Era a espada ao peito, davam-me toda a liberdade, podia gastar o que quisesse só para usufruírem o prazer de ter uns netos. E na verdade, quando casei, vi a loucura que eles lhes causavam.

Queria também ser padre para mais facilmente influenciar as pessoas através do púlpito. Quis ser padre e locutor pela mesma razão.

Com o meu amigo Alfredo Donas de Sá Pessoa comprei, a meias, um gravador caríssimo, como os da rádio profissional. Aí gravámos e treinámos a maneira de dizer. Quando nos convencemos que já estávamos aptos para voos mais largos fizemos uma proposta à rádio “Altitude” para aí gravarmos a “Ceia dos Cardeais”. A proposta foi aceite e, depois de a termos gravado com todos os pormenores, entregámos a fita. No dia aprazado ficámos à espera do resultado.

Foi uma catástrofe. A minha voz estava irreconhecível. Um execrável  atrevimento. Senti-me tremendamente envergonhado. Não tinha voz para ser locutor, e por mais que os meus amigos me tentassem animar, ninguém me convenceu do contrário. Terminou ali a minha auspiciosa esperança de salvar o mundo através daquele meio. Talvez isso me empurrasse para a caneta, para o papel e para o computador.

 

Voltando ao seminário. Quando metia uma ideia na cabeça era muito difícil desistir dela. Calei-me. Passados dois dias disse que ia à Guarda. Até ao Sabugal os transportes colectivos pertenciam-nos e do Sabugal para a Guarda eram da Viúva Monteiro onde também não pagava nada, eles não ligaram. Fazia isso quando me apetecia e às vezes, nem os avisava.

Fui falar com o padre Inácio e dar-lhe conta da minha resolução. Era um homem erudito e pragmático, ninguém melhor do que ele para avaliar a minha decisão.

O padre Inácio olhou-me com os olhitos a tremelicar por trás dos óculos, lábios grossíssimos, também a tremelicar como banha de curtumes só própria para fazer colas.

Olhou-me longamente.

- É uma bela resolução. A igreja ficaria bem servida, mas tenho de ser franco, e tu sabes como sou teu amigo e como gostaria de te ver deste lado. Tu não podes ser padre. Os problemas que irias causar à igreja reflectir-se-iam  nos teus comportamentos. Desiste. Não vás para o seminário. Além do mais tu não resistes a uma rapariga, bonita... ou feia. Eu conheço-te. - E conhecia, ele era o meu confessor - Quanto a Deus, Ele encontra-se em todo o lado, não necessitas de pertencer, no todo, a esta Igreja ou a qualquer outra.

Ficou por ali a minha tentativa de ir procurar Deus no seio da igreja para Lhe pedir contas, mas não ficou por ali o meu desgosto. Tinha demasiados amigos pobres. Eles tinham os mesmos direitos a viver como eu já que não tinham culpa por entrar neste mundo pela porta da miséria. Desde criança que essa revolta era evidente. Eu conto isso no livro “Saúde e Dinheiro, o caminho para a felicidade”, onde digo que aos 5 anos intimei minha mãe, se quisesse que eu comesse, que o meu amigo “Bucha” tinha de comer comigo. Ele era paupérrimo.

A pobreza, o ver a pobreza, sem conseguir encontrar um meio para a eliminar, tem-me atormentado toda a vida.

Quando penso que o mundo tem seis biliões de almas e só 2 biliões vivem razoavelmente fico desesperado.

Peço-te que me ajudes a resolver este problema. A miséria não é uma condição inevitável para 4 biliões de pessoas. Hoje aprende-se e ensina-se à distância. Os capitais parados e os capitais empregues em material bélico devem ser desviados para proporcionar o bem estar dos povos.

É inacreditável como os países ricos e desenvolvidos fornecem armas aos países que não têm dinheiro para a educação e para a alimentação. Denuncia estas situações, torna-te grande em saber e conhecimentos. Estuda e chama a atenção sobre ti, é a única maneira de tu poderes chamar a atenção sobre os outros. Acredita que o podes fazer e ao mesmo tempo viver a tua vida. Eu só não tenho conseguido fazer mais porque em determinada altura perdi tudo quanto tinha amealhado para começar a desenvolver um plano através dos meios de comunicação. Mas ainda não estou derrotado. A minha derrota seria a derrota do que pretendo defender, mas eu sou só um, necessito de ti, temos de estar todos motivados para eliminar a miséria.

Um mundo com 6 biliões de pessoas tem de ser um mundo rico e próspero.

Os países  produtores de material de guerra podem empregar as mesmas pessoas fazendo material escolar. Em vez de destruir podem construir. O lucro seria o mesmo e o risco menor. Ensinar os povos em vez de os combater é outra via para absorver desempregados e fazer as pessoas felizes.

A felicidade é uma bola de neve. Quanto mais felizes somos, mais felizes queremos que os outros sejam.

 

Depois de muitas interrogações, estudo e hesitações, cada vez estou mais convencido do seguinte:

Deus não criou o homem, Deus criou o mundo. O homem, depois do Big Bang saiu da evolução natural da matéria e por isso ele continua ainda tão imperfeito.

A imagem de Deus feito homem é irreal, é um álibi para lançar culpas sobre o Outro.

Deus, na Sua explosão, deu força ao criado e deixou que tudo acontecesse segundo a lentidão dos séculos. A energia dos mais aptos leva-os a desembaraçar-se do manto de crisálida e a evoluir no sentido da perfeição.

Aquele ou aqueles que saíram do caos, ao atingirem a sua perfeição máxima entram no corpo de Deus que é o conjunto de todos os nossos corpos imaginados como fumo, como um sopro, como fogo. Somos feitos de pensamento e para o pensamento voltamos até voltarmos a ser matéria neste vai e vem que atinge limites e de repente se desfaz para se voltar a refazer.

Cada um de nós tem em si uma pequeníssima partícula de Deus e quando desejamos ou rejeitamos, fortemente, alcançar ou repudiar seja o que for, isso, mais cedo ou mais tarde acontece.

 

O padre Inácio volta ainda a ser, mais uma vez, interveniente nesta tentativa de renúncia às injustas benesses da vida; porque não são para todos, porque não há democraticidade nesta bênção divina se nós fazemos parte do Seu corpo e não O entendemos?

Passados dois anos entreguei ao padre Inácio o meu testamento. Não queria nada deste mundo. Até preferia ter nascido sem pais apesar de eles me adorarem. Ingrato, dirás. Tens razão. É a revolta por ver o que não quero ver e não consigo resolver. Preferia não ter nascido.

Não penses como eu.

No ano seguinte fui para o Fundão, para o colégio do Dr. Meneses para fazer o sexto e o sétimo anos de que já falei. Para aí, também os transportes colectivos nos pertenciam. Fiquei em casa de meu tio Soares, um dos donos da moagem, junto da estação. Ele era um verdadeiro compincha; só tinha filhas. Para ele, eu era o grande companheiro, lá em casa só estava a filha mais nova, a Maria da Conceição Soares, que era como irmã. Ia estudando, o ambiente era diferente mas eu sentia necessidade de mais movimento. No Carnaval, quisemos fazer um baile, como era costume, segundo rezavam as crónicas, mas nesse ano o Dr. Meneses não quis arcar com os riscos do baile. Disse que sempre perdia dinheiro. Não havia baile. Combinado com os meus colegas eu propus - lhe fazer o baile e assumia os riscos. Ele conhecia a família e sabia que dinheiro, naquela época, não faltava. Anuiu.

O baile foi um sucesso e imediatamente fomos alugar um autocarro ao “Pião e Irmão” para fazermos uma excursão. Ainda sobrava muito dinheiro.

O Meneses mandou-me chamar.

- Que lá, que lá. Quero aqui todas as contas do baile e não há excursão nenhuma que eu não autorizo.

Aí, vieram-me as forças.

- O sr. Doutor não tem que autorizar ou não autorizar. Deixámos tudo limpo, pagámos a toda a gente e agora vou pagar ao “Pião” porque já empenhei a minha palavra.

- Que lá, que lá (era assim que ele falava) - era muitíssimo bom professor de matemática mas levado da breca pelo dinheiro. - Se não me entregares contas e dinheiro até às sete da tarde és expulso do colégio e todos os que te acompanharem na excursão.

Resultado: fui expulso. A excursão não se fez. Fui o único que apareceu e não estava para ir, feito parvo, sozinho, por aí fora. O “Pião” ficou com o dinheiro porque não tinha nada que o devolver e eu resolvi dar a todos os indivíduos necessitados o restante que sobrou embora a isso não fosse obrigado pois o capital inicial foi todo meu. Se eu tinha arcado com todas as despesas e todos os riscos, também podia fazer do dinheiro o que quisesse. Alguns do meus colegas não ficaram muito satisfeitos comigo, principalmente  o Armindo e o Luís Bouceiro que eram umas jóias de rapazes,  mas argumentavam que eu era um ditador. Eu continuei amigo deles e pensei cá para comigo “ditador somos todos quando pensamos que fazemos o melhor e não anuímos às vontades dos outros.” Encolhi os ombros e levei a minha avante.

Assim me encontro, de novo em Castelo Branco, onde o amigo de que já te falei, me deu aulas de Latim e Grego e eu fiz o sétimo ano tendo deixado só filosofia para Outubro.

 

Para veres como as disciplinas são tremendamente simples e só alguns, ainda bastantes, professores e fazedores de livros didácticos as complicam, conto-te este pequeno episódio.

Nesse tempo havia a disciplina de Organização política, comum a todos os cursos. O Vaz Antunes tinha seguido ciências e eu letras. Nesse ano voltámo-nos ali a encontrar e fomos para a mesma casa; das senhoras Trigueiros. Eu não tinha aberto a Organização Politica. Ele perguntou-me.

- Ó compadre, já estudou Organização?

- Ando às voltas com o latim e o grego, tenho lá tempo!

- Eu vou começar. Vamos estudar os dois?

- Comece o compadre que eu depois pergunto-lhe.

Dois dias antes do exame eu continuava sem abrir livro. O Joaquim insistiu para lhe fazer perguntas. O desgraçado sabia aquilo de fio a pavio. Voltei a fazer perguntas e tantas vezes fiz e ele sempre a responder como estava no livro que eu fiquei com uma ideia da matéria. Fomos a exame.

O Joaquim voltou para casa. Todos os dias perguntava se já tinham saído as notas, lá as ia dizendo até que veio a de Organização política. Ele teve 13 e eu 12. Quando ele me telefonou, eu comecei uma grande conversa.

- Ó compadre, que chatice! Não se fala noutra coisa! - Ele, do outro lado do fio, insistia “a nota, a nota?”- e eu continuava no rebéu - béu pardais ao ninho, estive nisto, uns bons dez minutos. Ele sempre desesperado e eu gozando o efeito.

- Mas a nota? Por favor, compadre, a nota?

- Teve quinze vírgula quatro. Não dispensou por uma décima. Toda a gente fala no assunto.

- Os professores são uns bandidos.

- A quem o diz.

- E o compadre?

- Também vou à oral. À justa, tive nove.

- O compadre nem abriu o livro.

O Joaquim contou a toda a gente a sua desgraça e todos maldisseram, com ele, os professores que não o tinham dispensado da oral por uma décima. Quando viu a verdadeira nota, escondia a cara de toda a gente porque aquele 13 além de ser uma afronta aquilo que ele sabia, tinha sido motivo de chacota por todos os que conheciam a história. Não se zangou comigo porque ele fazia-as muito piores.

 

Os amigos nunca se aborrecem, nem das brincadeiras, nem das palavras que uns e outros têm ou dizem.

O ser humano é demasiado inteligente para se aborrecer com ninharias. Só se aborrecem os pequenos, aqueles cuja vida é tão infeliz que para fugirem dos seus próprios problemas discutem os dos outros ou com os outros.

O ele disse isto ou ela disse aquilo nunca deve ser motivo para tristezas, aborrecimentos, intrigas ou zangas. O melhor é nunca ligar ao diz-se. Só os assuntos tratados frente a frente devem ser levados a sério, se for caso para isso.

Minha mãe disse-me uma vez: “as pessoas tem de falar de alguma coisa”. Ela estava à janela a conversar com uma amiga sobre outras amigas, eu estava na varanda, perto. Comecei a ficar tão enjoado com as observações sem qualquer interesse, de uma e de outra, que pedi para mudarem de conversa. Ela respondeu-me o que já referi. Fiquei cheio de dores de cabeça, de estômago, meio zonzo fui-me deitar e minha mãe viu, aflita, que eu estava doente. No outro dia fiquei fino. É só para dizer que nunca ouvi dizer bem ou mal de mim, nunca quis. Eu sei o que sou e gostava de ser muitíssimo melhor.

Um dos males do mundo, entre muitos, é a má interpretação que damos às palavras que os outros nos dirigem. A intriga ou a crítica feita pelas costas é ainda mais grave. Lembro-me que um dia o sr. João Mourão falava de outra pessoa que estava numa mesa afastada no café do sr. Domingos Seguro em Penamacor. Eu que devia ter os meus dezasseis ou dezassete anos, avisei o sr. João Mourão que se não parasse de falar na pessoa em causa, dizia alto e bom som o que ele estava a dizer, ele não ligou, devia ter 65 ou 66 anos. Eu levantei-me e disse alto e bom som: O sr. João Mourão está a falar disto e daquilo. Ele ficou muito zangado, o outro não se apercebeu porque eu embora falasse alto fiz voz fanhosa. O sr João Mourão, passados dois ou três meses, continuou na mesma. É o mal das terras pequenas. Tem de se passar o tempo de alguma maneira. Depois das discussões futebolísticas de Segunda Feira, o resto da semana, nas horas de ócio, só dominó ou conversa fiada.

Os portugueses têm de ultrapassar o tempo da conversa fiada.  

 

Depois de ter feito o sexto e o sétimo ano num ano. Fiz seis cadeiras: Latim, Grego, Português, Francês, Organização Politica e História, uma a mais do que o necessário para Filologia Românica e a menos Filosofia que deixei para Outubro. Entrei, outra vez em crise, queria saber insistentemente o porquê da pobreza que me rodeava e comecei a dizer a meus pais que me queria empregar.

- Porquê? - Dizia minha mãe. - Vais para a Faculdade, não precisas de te empregar. Temos o suficiente para não te preocupares.

Sem que meus pais ou alguém se apercebesse, porque eu sempre pareci alegre e desprendido de tudo, eu tinha vergonha por me sentir um inútil e não era capaz de resolver as minhas dúvidas.

A única maneira de não entrar na Faculdade era não fazer Filosofia e foi o que aconteceu. Nem fui a exame. A seguir tanto insisti, com minha mãe, que acabei por ir trabalhar para um colégio em Sintra. Adorei. Depois dos primeiros tempos, a Directora achou que eu era competente e praticamente, até ao fim do ano, coordenei aulas, recreio e transporte, pelo meio a Directora pediu-me para dar aulas a um miúdo inglês, Nello Haward Davies, inteligentíssimo, mas que já tinha sido expulso de vários colégios. Entendi-me perfeitamente com ele e acabou por fazer a terceira e a quarta classes num ano, ele que não falava uma palavra de português e era impossível de dominar. Entrei na dele: brincadeira, boxe, passeio e acabava sempre por lhe ministrar a matéria que eu pensava necessária. Foi uma boa experiência para mim e completada mais tarde por um Professor Universitário da Sorbonne.

Conto já o episódio: mais tarde, estando em Paris, no Consulado de Portugal, fui convidado a fazer leituras de português a esse Professor e corrigir-lhe a dicção. Ele, por sua vez, dizia-me como queria ser corrigido. Eu fixei o método. Com os erros que eu sabia que os professores tinham cometido comigo e com os meus colegas e com aquilo que aprendi com estas experiências que acabo de relatar, talvez isto explique o porquê de eu saber conduzir os alunos nos programas de ensino e ter uma grande devoção por eles: eu quis entender-me. Analisei também jovens e professores no colégio “O Bloco” de Sintra. Só tive de juntar e aplicar conhecimentos e sensibilidade.

Anos mais tarde quando o Ministério da Educação foi inspeccionar alunos meus e que eu nunca reprovava, o inspector chegou à conclusão que eles estavam aptos a passar. É uma questão de amor, chamar-lhe-ei psicologia básica, e um pouco de saber. É tão simples como isso.

 

Estamos ainda no “Bloco”, o colégio de Sintra.

No final do ano a Directora, muito feliz, anunciou-me que tinha sido o primeiro ano em que nunca teve problemas com os alunos; nem vidros partidos, nem cabeças partidas, nem faltas de educação e muito bons resultados. Felicitava-me e disse-me que no ano seguinte me pagaria o dobro. Eu respondi-lhe que tinha gostado imenso de ali trabalhar mas que ia sair do país. A Directora tentou demover-me, não conseguiu.

Continuava em crise. Já tinha entendido o que era trabalho e tinha gostado. Não gostava era de ver pobres no meu país.

Quando disse a meus pais que tinha resolvido sair de Portugal, meu pai agarrou-se a mim a chorar. Dava-me tudo o que eu quisesse. Infelizmente, não me podia dar o que eu queria e a única maneira de eu mostrar a minha revolta era não querer mais do que aos outros sempre tinha faltado.

Não te aconselho a que penses como eu. Há outras maneiras de resolver os problemas. Mas era assim que eu pensava e é assim que o escrevo. Foi por isso que eu entreguei o meu testamento ao padre Inácio, sem meus pais saberem, e caso eu tivesse algum acidente pedia-lhe para ele lhes fazer chegar às mãos a minha vontade. Entregava tudo aos pobres e parti.

A desilusão foi grande. Havia pobres em todos os países e enquanto em Portugal podia fazer o que me apetecia, no resto da Europa havia leis a cumprir. Começou-me a faltar o ar: uma saudade imensa que eu tentava esquecer trabalhando até altas horas, sem ser obrigado a isso, no Consulado de Portugal, Avenue Kléber, em Paris onde substituí, durante meses, a Isabel, a primeira mulher do etnógrafo Michel Giaccometti.

Aproveito este salto para contar um ou dois episódios que revelam a diferença de mentalidades.

Apesar dos clochards (mendigos que dormiam ao frio, em caixotes etc.), apaixonei-me por Paris. Tinha o deslumbramento nos museus, nas bibliotecas, nos teatros, nos cinemas, nas mulheres e quase esqueci os pobres. Só me lembrava deles quando os via embora ali estivessem mais dispersos e só a noite os descobrisse.

Como gosto imenso de línguas pensei em aprender russo. Em Portugal, nesse tempo, era impossível. Ia ver todos os filmes russos num pequeno cinema que havia perto do Panteão Nacional. Um dia, em conversa com o Vice Cônsul, João Carvalho da Silva, que era muito meu amigo e era muito engraçado, disse-lhe o que fazia e o que pensava fazer quanto a aprender russo. Ele pôs-se muito sério:

- Ó Cunha Simões, não me devia ter contado isso. Agora só me resta aconselhá-lo a esquecer as lições de russo para não arranjar para aí algum problema.

Na verdade, todos os funcionários públicos eram obrigados a assinar um documento em que não eram comunistas. Todos o faziam, fossem ou não fossem. São regras e quem não quer correr riscos tem de se submeter. O Estado é uma grande empresa com normas e tem de as seguir se não quiser ser subvertido. Eu não era comunista e nunca o fui mas digo-te que gostei de estar nos países de Leste, quando lá fui mais tarde sem autorização e correndo os riscos de cá e de lá. Estive seis horas na fronteira. Fizeram-me imensas perguntas, deviam ter pensado que era doido ou fugitivo politico, lá me deixaram entrar. Havia ordem, havia organização, havia limpeza, não se via miséria. Mas senti que havia falta de liberdade porque as pessoas tinham medo de falar, ficavam aflitas com a minha maneira de ser. Em Portugal nunca senti isso, embora me tivessem cortado vários artigos de jornais. Cortavam, mas não me levavam a tribunal como o fizeram depois do 25 de Abril por eu ter escrito o artigo: “Atrás dos Militares”, no semanário “Templário”. E eram oito anos de cadeia.

Desde 1961 tinha começado a escrever livros para dizer o que me apetecesse. Os livros só eram apreendidos se os editores, para terem lucro certo, começassem a dizer que o livro era contra o regime. Faziam tanto barulho que a Pide ia no engodo e apreendia umas centenas de exemplares, a seguir eram vendidos uns largos milhares. Verifiquei perfeitamente isso quando escrevi em 1962 os livros “Tu cá, Tu lá” e mais tarde “A Revolta e o Homem”. O “Tu cá, Tu lá” era para ser editado com a chancela da Editora “Aster”. Depois de ler o livro, o sr. Fernando de Sousa disse-me que ia ter problemas se o editasse como estava. Tinha de fazer alguns, muitos cortes. Recusei. Respondi-lhe, meio a sério, meio a brincar que não era invertebrado e que para cortes bastavam os da Censura nos jornais. Publiquei o livro como o tinha escrito.

 No “Tu cá, Tu lá” logo no inicio, a pág. 16, digo: “Depois foi o arco da velha, sempre a mesma coisa, patrão com dinheiro, trabalhador ganhando vinte mil réis mal coados, bem suados e desprotegidos e toca de ir malhar com os ossos à prisia”, e a págs 59. Em referência ao Governo digo: “não me queiras convencer que se mete ali um pulhazita qualquer só para encher o papo e prejudicar o Zé povinho?”. Ao que o outro responde “ Pois escuta, se não metem, então imitam muito bem”.

O livro seguia esta linha. Quem o lesse pensaria que eu era comunista. Só na comunhão do amor. O livro foi a maneira que eu tive para expressar a minha revolta pelas diferenças sociais, pela diferença entre os muito pobres e os muito ricos. Ninguém me incomodou apesar de um chefe de polícia uma vez me ter dito:

- O senhor é muito inteligente, mas a mim não me engana. - O tolo estava enganado.

 

Depois de vir do estrangeiro continuei a não querer estudar. Entrei para o SNI que era o único departamento de Turismo com um Secretário Geral: o Dr. César Moreira Baptista. Ao principio fiquei na contabilidade o que era o oposto aquilo que gostava de fazer, mas o que é interessante é que verifiquei que gosto fazer de tudo. Nada me aborrece. Quando trabalho num lugar faço-o com o máximo dos prazeres e dou o máximo de rendimento. Ainda hoje, com 64 anos, me acontece o mesmo. O trabalho é uma festa. Se me apetece mudar, mudo. Há tanto para fazer! Eu ainda não entendi por que há desemprego, se há escolas sem professores, hospitais sem médicos e enfermeiros, campos sem lavradores, casas a cair de velhas, estradas cheias de buracos, etc, etc, etc, etc.

O Director da contabilidade e serviços era o Dr. Ferro Rodrigues que os funcionários temiam. Era um homem inteligente e muito trabalhador. Nunca o receei e nunca me aborreceu, apesar de em certa altura eu publicar um jornal semi clandestino com o nome de “Camisinha” onde criticava os serviços. Na minha secção a camaradagem era muito boa e a Cezina Gomes ensinou-me rapidamente todos os segredos do trabalho. Eu tinha-o sempre em ordem e sobrava-me muito tempo; tanto que, enquanto outros dos meus colegas, no fecho de contas do final do ano, tinham que fazer horas extraordinárias para as apresentar até à data marcada eu me recusei a ficar a olhar para eles só para fingir que também estava a trabalhar e ganhar mais umas centenas de escudos. Ganhei-os na mesma e gastei-os com todos eles pois não me tinha sacrificado e não os merecia. Comemo-los e bebemo-los.

A propósito de comer e beber, relato um facto curioso para mostrar que um chefe deve ser sempre um exemplo. Se não é, arrisca-se a que os serviços lhe sigam os hábitos.

O Dr. Moreira Baptista, no inicio desse ano, resolveu incitar os funcionários a poupar. Era necessário poupar nos lápis, nas borrachas, enfim, em tudo quanto fosse possível, para o Estado arranjar fundos para outras prioridades. Tudo bem, só que, como eu estava na contabilidade comecei a ver que o Dr. Moreira Baptista almoçava sozinho no Gambrinus e em outros restaurantes de muitas estrelas e gastava mais em cinco almoços do que todos os gastos que nós fazíamos em material de escritório durante um mês. Isso entristeceu-me. Eu que o considerava um homem muito inteligente, vi que ele podia ser um pouco mais.

Fui requisitado para o Turismo na secção do sr. Pereira Forjaz,  o Director era o Eng. Alvaro Roquette. O trabalho aí era incomparavelmente muito mais, mas eu adorava. Fazia o serviço de secretaria e acompanhava os turistas VIP nas viagens a Portugal.

Eu tinha um Studbaker fabuloso que era da família mas que o Eng. Roquette pensava que era meu e dizia-me frequentemente.

- Tu ganhas mais que eu. - Ganhava as ajudas de custo que gastei numa viagem pela Europa com todas as mordomias para conhecer por dentro onde as pessoas podiam esbanjar o dinheiro em vez de o canalizar para beneficio de todos.

O Eng. Roquette era também um homem inteligente e não tinha vergonha de me perguntar, a mim, um miúdo,  tudo sobre o país, já que eu o percorria com frequência, e de como era possível resolver este ou aquele problema? Eu dava-lhe a minha opinião e ele fazia como entendia. Queria acertar. Amava o país.

Mas nem tudo são rosas, no meu segundo ano de trabalho, vai haver um concurso para subida de escalão. Eu gostava imenso do serviço e tinha pensado fazer carreira no mesmo. Perante o concurso pedi ao sr. Pereira Forjaz para me dispensar de acompanhar fosse quem fosse pois tinha de estudar. Ele disse-me que tudo se arranjaria e mandou-me acompanhar e assessorar, durante quase um mês, um dos administradores dos filmes Rank, aqueles onde aparece um leão. Sei que até ao concurso não tive descanso. E ele sempre a dizer-me que não havia problema. Acabei por ficar mal classificado como era de esperar. Fiquei furioso. Não tinha sido compensado como me tinha sido prometido.

Zanguei-me fortemente com o sr. Pereira Forjaz, que até era boa pessoa mas que lhe faltava alguma elasticidade para compreender até que ponto me tinha prejudicado. Fiz de imediato, com o coração a sangrar, pois adorava aquele trabalho, um pedido de exoneração ao Dr. Moreira Baptista que terminava da seguinte maneira: “Lamento deixar V. Ex.cia no meio dos acéfalos supracitados”. Os acéfalos tinham sido aqueles que eu mencionava na carta e me tinham garantido uma coisa e depois fizeram outra.

O Dr. Moreira Baptista mandou-me chamar. O Secretário dele era o maestro Ivo Cruz, filho, que simpática e delicadamente me aconselhou a fazer o que o chefe dissesse.

Fiquei de pé, em frente do poderoso Secretário Geral. Olhou-me longamente.

- Tu ainda és muito novo, o Engº. Roquette faz-te os maiores elogios e pede-me que eu não seja severo perante toda esta carta que é um ror de insultos a uma série de pessoas. Tomo em consideração o seu pedido, rasga-se a carta, esquece-se o assunto e vamos ver o que podemos fazer.

Mas eu estava muito ofendido. Era uma paixão atraiçoada. Nunca mais conseguiria voltar a amar da mesma maneira. Não aceitei a proposta.

- Eu pedi a exoneração, senhor doutor. Mantenho o pedido.

Ele tentou convencer-me. Eu recusei sempre. Perante a minha atitude disse-me:

- Sou forçado a demitir-te se não rasgar a carta. Nunca mais poderás entrar para a função pública.

Olhei-o bem nos olhos.

- V. Ex.cia fará o que entender. Eu pedi para ser exonerado e é o que vou ser.

- Como? - Perguntou-me ele, divertido, perante a minha ousadia, enquanto puxava de um cigarro.

- Compro meia dúzia de foguetes, passo em frente da Assembleia Nacional, acendo um com o cigarro,  e deixo-os rebentar no interior. Tenho a certeza de que alguém me há-de perguntar por que fiz aquilo.

Fui exonerado e perdi uma das paixões da minha vida.

 

Alguns anos mais tarde tive oportunidade de verificar que o meu país e o seu povo são as minhas paixões e o turismo uma das vias para impulsionar a prosperidade de ambos.

Casado e com filhos estava em férias que para mim eram sempre um sacrifício. Íamos para o Algarve, minha mulher resolveu passar um dia em Lisboa, em casa da mãe. Já ia em cinco e vi que a companhia da mãe, das irmãs e as idas à Costa da Caparica e ao Jardim Zoológico com os filhos, a tinham feito esquecer a ideia inicial. Comecei a ficar inquieto:

- Volto a Tomar. Quando quiseres ir para o Algarve telefona.

Sabemos como são as mulheres, ninguém as vence.

- És sempre assim, não podes descansar uns tempos, ainda hás-de gastar o trabalho e mais isto e mais aquilo.   

Eu estava a ler o “Diário de Notícias”, comecei a folhear o jornal. De repente vejo um anúncio: “Guia Turístico, precisa-se - Rodarte”, era mais ou menos assim. Depois de minha mulher acabar de falar levantei-me, com toda a calma, e fui até à Rodarte.

- Está o gerente?

- Para que é?

- Por causa de um anúncio.

Encaminharem-me para o gerente e patrão da empresa, o sr. Quirino. Expliquei-lhe ao que ia e ele:

- Sabe alguma coisa de turismo?

- Tudo.

- Conhece Portugal todo; os seus monumentos e os sítios mais importantes?

- Tudo.

- Fala alguma língua estrangeira?

- Todas.

- Inglês, francês, espanhol, alemão, italiano?

- Todas.

O Quirino, intrigado, continuou.

- E quanto quer ganhar?

- Aquilo que o sr. me quiser dar.

- E se eu não lhe der nada?

- Não dá.

O Quirino, cada vez mais interessado, continuou.

- E quando quer começar a trabalhar?

- Já.

E foi assim que estive, a partir daquele momento, dois meses na empresa de Turismo Rodarte.

Eu disse ao sr. Quirino que só podia estar o máximo um mês, mas ele ralou-me tanto, e o primeiro mês tinha sido tão fabuloso que eu não me consegui escapar.

Naquela tempo os guias ganhavam cinco mil e duzentos escudos por mês. Umas vezes estávamos ao balcão e outras em viagem. Eu consegui vender-lhe todas as viagens do mês em menos de dez dias. Vendi as minhas e as dos outros colegas. Os clientes diziam maravilhas e eu no fim do mês recebi vinte e sete mil escudos sem que os outros colegas o soubessem, nem nunca o imaginarem capaz de fazer uma coisa dessas. O patrão tinha fama de ser muito agarrado. O sr Quirino estava-me grato e por mais que insistisse para eu ficar na empresa só lá não fiquei porque a minha vida era em Tomar, cidade monumental, que eu amo muito e onde recebia a energia para dissecar e explicar a vida.

 

Por causa dos livros e antes do 25 de Abril também tenho duas situações catitas.

A família tinha também um Citroen, boca de sapo, como era conhecido, e que eu gostava muito pela sua comodidade e segurança. Um dia, numa auto estrada da Alemanha, resolvi dar o máximo de velocidade, eu devia ter fechado mal o capot, ele veio, com toda a força, contra o vidro dianteiro, mas a concepção do automóvel devia ser tão perfeita, que não o partiu. O capot ficou muito mal tratado; lá o atei o melhor que soube. Quando voltei a França fui para o reparar. Venderam-me um novo: ficava mais barato, mas vinha sem pintura. Cá em Portugal, naquele tempo, reparava-se tudo. Tinha de se poupar em divisas. Andou assim uns tempos, viajei por muitos lados. Em conversa com o gerente do Hotel Lisboa, de Vigo, em Espanha, este disse-me que havia um bom pintor de automóveis ali a dois passos. Lá fui e lá o deixei. Como estava muito perto de Portugal resolvi ir a Valença comprar umas garrafas de vinho do Porto e matar saudades.  Aluguei um táxi. O homem disse-me que não tinha passaporte, eu respondi-lhe que não fazia mal.

Ao pedir, na fronteira, para o taxista passar para o lado português, o funcionário disse-me que não podia. Propus responsabilizar-me, apresentei passaporte com carimbos de todo o lado, disponibilizava mesmo uma significativa verba de garantia. O homem manteve-se inabalável. Eu perdi a cabeça. Comecei a disparatar.

- Isto não acontece em mais parte nenhuma do mundo (não era verdade), é o país mais atrasado da Europa, não passa da cepa torta. É um país de burocratas e de videirinhos!

- Está preso. - Disse-me o homem, com toda a calma.    

- Importo-me lá bem. Prenda-me, mande-me fuzilar!

- Passe para esta sala. - Continuou sem se exaltar.

O Espanhol, visivelmente assustado, não abriu boca, o homem estava branco e encostou-se à parede para não cair.

Depois de mais de uma hora de espera apareceu o chefe, o funcionário contou-lhe o que se passou, eu confirmei.

- Não me resta alternativa. É um julgamento sumário. Terá de ficar para amanhã. O senhor confirma tudo...quer acrescentar algo mais?

Nessa altura, lembrei-me do meu primeiro livro; “O Nó” .

- Gostaria de dizer o seguinte: Eu disse aquilo tudo porque amo, até à exaustão, o meu país, não gostaria de ter nascido noutro e a demonstrá-lo, o meu primeiro livro, dediquei-o a Portugal, dizendo que o havia de ver feliz e próspero.

O chefe olhou para mim.

- O senhor ainda é muito novo. Escreveu um livro e dedicou-o a Portugal?

- Dediquei.

- Como posso confirmar?

- Não o tenho aqui, envio-lho, telefona para meus pais, ou indico-lhe algumas pessoas que o devem ter e eles lêem-lhe a dedicatória pelo telefone.  Acreditou em mim, falou com o colega a quem tive de pedir desculpa, não deixou entrar o táxi espanhol em Portugal mas chamou um táxi  português para eu fazer compras e reabastecer as baterias da alma.

Não sei que força estranha emana desta terra portuguesa que eu preferia estar aqui preso do que livre em qualquer outro país do mundo.

O padrinho de meus filhos, o americano  Edward Budge Mead, o maior accionista de dois importantes bancos da Florida ofereceu-me uma fortuna incalculável para ir para os Estados Unidos, recusei. Ele ficou muito desiludido comigo. Eu também ficaria se aceitasse e abandonasse o meu país.

 

Por que publico este meu primeiro livro?

Este livro nasce de uma viagem atribulada de avião. Ainda havia os aviões a hélice.

Vinha de Frankfurt para Lisboa, o tempo estava péssimo: muita chuva, trovoada fortíssima. A certa altura, uma das hélices deixou de funcionar, passado mais um tempo, a outra aconteceu-lhe o mesmo. Sei que a partir dali e até Lisboa foi um inferno, entrávamos, frequentemente, em poços de ar, vínhamos em queda livre durante centenas e centenas de metros; uns choravam, outros gritavam, outros vomitavam, outros rezavam. O comandante tentava sossegar os passageiros, ninguém o ouvia. Eu metia a cabeça entre as mãos e só dizia:

“Não fizeste nada nesta vida. Vais morrer como o mais ignorante dos animais. Nada. Não fizeste nada, não produziste nada. Foste um inútil. Tu não és um homem, és um equívoco. Um fracasso ignóbil da criação.”

Com estas e outras lucubrações pessimistas e demolidoras da minha estima pessoal, mal aterrei em Lisboa, a minha primeira ideia foi publicar uns poemazitos que já tinha escrito e dedicá-los ao meu país como entidade viva a quem eu agradecia o acolhimento neste planeta. Prometia-lhe que lutaria pela felicidade de todos os seus filhos.

 

Em 1961 havia uma enorme percentagem de analfabetos e muitos outros que, querendo ler, mal sabiam entender o que liam. Desde o inicio pus na cabeça que tudo aquilo que escrevesse não podia ser tendencioso, nem a linguagem ambígua. Conversei sobre o assunto com o meu Prof. de Literatura III, o Prof. Prado Coelho, ele, pelo contrário, achava que eu devia usar uma linguagem rica de maneira a obrigar as pessoas a um esforço mental para atingirem a elegância da forma. Eu, que conheço Portugal e os portugueses, sei que nós não gostamos de fazer grandes esforços, mas também sei que ajudados, depois de atingirmos elevados níveis continuamos a querer subir e a ultrapassar tudo e todos. Para os fazer gostar da leitura eu tinha de a produzir simples, directa e coloquial. Seria a maneira mais rápida para os atrair para a leitura. Foi sempre o que fiz.

Hoje, há muito mais gente nas escolas, a televisão, a internet e os jornais ajudam a aumentar o conhecimento dos portugueses. No século XXI teremos uma forma mais elegante de entendimento. Os portugueses já não precisam que eu esteja preocupado, neste campo.  

 

A outra vez  foi com o “Tu cá, tu lá”

Eu estava a parquear o automóvel perto da Fonte Luminosa, fazia um calor sufocante. Reparo que, mais acima, a uns cem metros, está a sair um automóvel e com uma boa sombra, faço marcha atrás e estaciono feliz e descuidado. Do outro lado está um policia que, com cara de poucos amigos, me pede a carta.

- Há algum problema?

Nem resposta. Recebeu a carta.

- A carta está apreendida. Tem que vir comigo à esquadra.

- Aconteceu alguma coisa?

- O senhor ainda goza?

- Eu?

- Estamos aqui só os dois. Quando o senhor se preparava para fazer a marcha atrás, vi o que ia acontecer, apitei para o advertir da infracção, vim ao seu lado a apitar todo o tempo e o senhor, ou é muito surdo, o que eu verifico que não é, ou está a gozar com a policia, o que não lho posso permitir.

Expliquei-lhe que não ouvi qualquer apito, que seria incapaz de brincar com desconhecidos e muito menos com um agente de autoridade. Não me quis ouvir, não me deixou pegar no automóvel até à esquadra de Santa Marta. Aí fui eu, sempre pedindo-lhe desculpa e ele nunca me ouvindo.

Aproveito para dizer, e isso acontece com muita gente, e com os escritores ou aprendizes de escritores é frequente entrar-se em devaneio. Sabemos onde estamos, mas entramos num tal alheamento a ruídos e a pessoas que ficamos surdos e indiferentes ao que nos rodeia.

Ao chegar à esquadra e depois do guarda explicar ao graduado de serviço o que tinha acontecido, este começou a ler os meus dados na carta, pediu-me o bilhete de identidade, ficou perplexo e perguntou-me:

- O senhor é alguma coisa a um Cunha Simões que escreveu o livro “Tu cá, Tu lá”?

- Sou o próprio.

O homem olhou-me com simpatia. Fechou o postigo do balcão e durante mais de quarenta minutos falou com o guarda. Quando voltou a abrir o postigo disse-me.

- Na verdade o senhor cometeu uma infracção grave, o pior foi aqui o meu colega sentir-se ofendido depois de o tentar avisar. Peça-lhe desculpa.

Pedi, mas quando apanhei os documentos na mão, não resisti; virei-me para o guarda e disse-lhe.

- Vê por que se é chefe?

 

Com o livro “Os homens são difíceis” arranjei um inimigo, um padre de Cuba que era meu colega na Faculdade de Letras. Ofereci-lho. A acção tem como personagem um padre que luta com as tentações. Ele zangou-se comigo. Anos mais tarde soube que tinha casado. Compreendi então que ele devia estar zangado consigo próprio. Servi de bode expiatório para as suas frustrações de momento. Não liguei, esqueci de imediato que tinha tido um amigo, esqueci até o nome e só o recordo hoje para mostrar como reagem as pessoas. Não podemos dar importância aquilo que a não tem. São as indisposições do momento que nos fazem ser injustos ou rudes sem, nós próprios, entendermos porquê.  

 

Nunca fui político, mesmo quando o fui de facto. Aquilo que me interessou sempre foi o bem dos portugueses e o bem dos povos, agora que os socialistas, sociais democratas, comunistas, centristas, bloco de esquerda ou outros os governem, desde que os governem bem, todos têm o meu apoio, embora possa ter mais simpatia por um do que pelos outros. Os homens são todos iguais e todos podem defender e proteger os seus semelhantes seja qual for a camisola que enverguem. Já viste o aborrecimento que era se andássemos todos de vermelho, de azul, de verde, de amarelo, de preto? Cada um veste a camisola que lhe apetece, mas quem governa despe a camisola, arregaça as mangas e governa todos, com equidade, amor  e sabedoria. Se não fizer assim é um patife.

 

Voltemos a França.

O vice Cônsul tinha ficado toda a Segunda Grande Guerra em Paris, tinha ajudado centenas de judeus a fugir dando-lhes salvo condutos. Era um homem honesto e com os pés assentes na terra.

Não fui aprender russo, mas continuei a ver os filmes, e nunca mais falámos sobre o assunto que ele não queria saber e eu não lhe devia dizer.

Como já te esclareci: eu não sou comunista, mas penso que os comunistas não tinham que destruir o regime, deviam-no adaptar às realidades das democracias ocidentais. Tanto uns como outros têm muito que aprender e aproveitar o que é de bom, num lado e no outro.

 

Hoje, as independências dos países são mais virtuais que reais, todos os países estão dependentes uns dos outros. A independência é mais uma questão psicológica, de orgulho nacionalista e de ambições pessoais. Os pequenos governantes estão sempre submetidos à vontade das grandes potências e dos seus dirigentes. Esta dependência é mais visível em tempo de crise, por isso, os jovens, são a charneira para alcançar todas as modificações..

 

Nas traseiras do Consulado havia um grande pátio quadrado, às vezes ia até a uma das janelas, aí entretinha-me a ver a miudagem brincar. Na janela em frente descubro uma jovem muito elegante, a distância era grande. Voltou ali nos dias seguintes e à hora em que normalmente eu também ali me encontrava. Na minha cabeça começaram a correr fantasias. Comecei a fazer-lhe adeus. Não respondia e eu não tinha a certeza se ela sorria. Um dia encontrámo-nos no elevador do prédio. Era o prelúdio que eu ansiava:

- És a jovem da janela em frente à minha.

- E tu és o maluco do consulado.

Foi o principio de uma fabulosa amizade.

Era muitíssimo bonita e sempre bem disposta. Começámos a sair juntos. Um dia beijámo-nos com voluptuosidade. Quando ela já regressava a casa eu não resisti:

- Michelle, tu beijas tão bem.

E ela, com a maior das naturalidades, respondeu-me com o seu melhor sorriso:

- Lá na escola, todos os meus colegas dizem o mesmo.

Fiquei sem pinga de sangue. Em Portugal, naquele tempo, roubar um beijo a uma rapariga era o caminho mais directo para o casamento. Aquela resposta natural, se por um lado me magoou, por outro libertou-me desse mal que dá pelo nome de ciúme. A partir desse momento fiquei reciclado.     

 

Para os jovens tudo lhes serve para se divertirem. É raro fazerem-no por maldade.

Quando ouvimos dizer: “já têm idade para saber o que fazem” - é porque esqueceram a juventude e os erros cometidos ou então é gente muitíssimo infeliz que nunca viveu a vida.

 

 

Conto uma pequena história passada comigo.

Ia de Santarém para Tomar (1976), um jovem pede-me boleia para o Vale de Santarém. Durante o trajecto pergunto-lhe:

- Que idade tens?

- Dezanove.

- Que fazes?

- Ensino a ler no colégio.

- Muito bem, eu também sou professor, escrevo livros. Aqui tens um, de poemas. Lê um poema para eu ouvir a tua dicção.

- Mas eu não sei ler.

- Não sabes ler, e ensinas a ler?

- É. Eu tomo conta dos mais novos e digo lê, e eles lêem.

- Conheces, ao menos, as letras?

- Assim, assim.

- Como é que sabes que eles lêem bem?

- Por aquilo que me soa. Se soa bem, está certo. Se não soa bem, está errado e mando ler até eu entender. Já sei de cor quase todas as páginas do livro. Eles não me enganam.

A viagem tinha terminado. Tinha encontrado o protótipo do génio português: desenrascado e improvisador. Perante a surpresa das respostas não tive coragem de lhe dar qualquer conselho, para o fazer teria de estar mais tempo com o rapaz, e perceber aquele fenómeno que ensinava o que ele próprio não sabia, concluía sim, que a vontade de aprender e de ensinar é inerente ao espírito português.

Quando publiquei a “História de Portugal de 1097 a 1998”, lembrando-me deste encontro, logo nas primeiras páginas, digo que os portugueses foram ensinar o que ainda estavam a aprender.

Nenhum povo do mundo nos pode acusar de não lhe termos ensinado o que sabíamos. O analfabetismo até finais do século dezanove ultrapassava os 85% e só a partir de 1970 ele baixou para os 35%, como podíamos ensinar? Ensinávamos como fazia o jovem: dávamos a nossa boa vontade com mágoa de não saber mais.          

 

Mas ainda continuamos a fazer muita coisa sobre o joelho. Quando fui escolhido para ensinar jornalismo na Escola de Santa Maria do Olival, no primeiro ano em que arrancou o curso, foi marcado um seminário dirigido pelo professor Adriano Rodrigues. Duas professoras não se inibiram de dizer que nunca tinham lido um jornal e foram obrigadas a aceitar aquela tarefa para que não estavam minimamente vocacionadas, nem interessadas.

É próprio do português: anda séculos a ver os outros fazer e de repente quer alcançar tudo sem ter a mínima preparação para o que pretende. Improvisa e nasce coxo o que poderia ser copiado dos outros países mais avançados.

Somos assim...mas temos de nos modificar. Eu conto contigo.

 

O jovem, raramente pensa nas consequências daquilo que faz. Sente-se protegido pelo acaso e não dá a devida importância aos seus actos.

 

Como entrei na política? Em 1975 fui convidado, pelo PS, PPD e CDS, a aceitar ser candidato a Deputado mas eu detestava a política mesmo tendo escrito o livro “Tu cá, Tu lá” em 1962, que alguns classificaram como uma verdadeira lança no coração do regime. Eu só o tinha escrito por amor ao povo sacrificado e explorado, o resto não me interessava, nem as consequências que daí me poderiam advir. Não considerei nada transcendente ter afrontado o Governo. Fi-lo sem pensar em politica. E nem o Manuel Guimarães me convenceu a entrar numa lista vencedora. Em 1976 só o CDS insistiu e eu recusei até ao último minuto, o Dr. Manuel dos Santos Machado, esse é que não me largou, e eu tive de aceitar com a imposição de ser o segundo da lista e como independente. No ano anterior, para a Constituinte, o CDS não tinha eleito nenhum deputado, era natural que, o segundo, nunca entrasse por melhor que fossem as previsões.

Depois de fazer parte das listas tive uma revolução dentro de mim; senti que devia esforçar-me por ganhar. Foi assim, que sozinho, delineei toda a estratégia.

Comprei uma máquina duplicadora de stencil para fazer a campanha como eu entendesse. Desde o primeiro dia não parei um segundo. Percorri, várias vezes, de lés a lés, o distrito de Santarém, sem me importar se era a minha área de campanha ou se era a dos outros, eu só tinha a certeza que aqueles votos me eram necessários para ser eleito e não podia confiar em mais ninguém porque me apercebi que a organização era muito frágil. Algo me dizia que devia proceder assim, esse algo é a partícula divina que todos transportamos e que eu, às vezes, aproveito na sua máxima força.

Foram dias extremamente fatigantes, mas eu aguentava-me. O trabalho e o prazer de conhecer outras variantes da vida nunca cansam.

Quando os meus alunos souberam que eu era candidato pelo CDS, exclamaram: “mas ele é anarca!”.

Na verdade assinava “A Batalha”, jornal anarquista que me começou a ser enviado talvez por indicação de algum dos meus alunos. No fundo, todos somos anarcas. Todos queremos fazer o que nos apetece sem ter de prestar contas seja a quem for.

Passados os dois primeiros dias de distribuição de propaganda apareceu-me um dos dirigentes do MRPP a pedir para lhe deixar imprimir uns panfletos, depois veio outro dirigente da UDP a pedir o mesmo e foi assim, que até ao fim da campanha, na mesma máquina, três partidos de ideais e critérios bastante diferentes imprimiram, em minha casa, a propaganda que quiseram sem nunca nos importarmos com as ideias expendidas por cada um dos Partidos. É a esta luta fraterna e saudável que eu considero a luta por um país próspero e feliz. Quem ganha tem de governar a favor de todos. Os “tachos” só devem ser distribuídos pelos mais competentes sejam eles da oposição ou do Governo. Se são da oposição e vão para o Governo não podem fazer obstrução ao vencedor, têm de ser mais uma força de bem estar, a favor de todo o país.

 

O meu segundo livro(publicado em1962) tem, como um dos personagens, um Cabo Verdiano e eu descrevi Cabo Verde sem nunca lá ter ido.

Como disse atrás, escrevi o livro falando de Cabo Verde sem nunca lá ter ido. Isso vai dar azo a outro episódio curioso.    

Passados poucos dias de ser Deputado disse à Secretária do Partido que eu não estava interessado em viajar para o estrangeiro, nessas visitas, comuns, que os deputados fazem a outros países a convite dos respectivos Governos. Eu só estava interessado em saber o que se passava em Portugal. Viajar, já tinha viajado o suficiente. Assim se passou o primeiro e quase todo o segundo ano quando acontece o seguinte: no final de uma reunião de trabalho que tinha metido almoço, o saudoso Dr. Vasco da Gama Fernandes de quem eu era muito amigo, apesar dele, como Presidente da Assembleia da República me chamar continuamente a atenção para as palavras, às vezes, bastante ásperas como eu tratava os colegas das outras bancadas sempre que sentia os interesses portugueses a serem preteridos a favor de outros assuntos que eu não considerava próprios das nossas funções. Ele dizia que eu era reincidente, eu estava-lhe grato por uma sua atitude. Ele tinha-me querido salvar de um julgamento no tribunal de Tomar por causa do artigo “Atrás dos Militares”.

Vamos à história. Eu era caloiro, estava há cinco dias na Assembleia da República, ele disse-me: “o colega esteja descansado, enquanto estiver nesta casa nunca será julgado. À minha pergunta: se deseja dizer alguma coisa, responda não.” Eu desci a escadaria, grato aquele homem que só queria o meu bem, mesmo não pertencendo ao seu Partido. Mas eu sou da Beira. Não consigo dizer o que não sinto. À sua pergunta respondi:

- Desejo sim.

Ainda hoje vejo, o DR. Vasco da Gama Fernandes, encolher-se na cadeira da Presidência e de olhos implorativos perguntar outra vez.

- Deseja dizer alguma coisa sobre este assunto?

E eu.

- Desejo sim. Antes do 25 de Abril publiquei cinco livros, escrevi o que quis e me apeteceu, cortaram-me artigos em jornais mas nunca entrei num tribunal, depois do 25 de Abril mandam-me a julgamento, os senhores deputados poderão votar como entenderem que eu aceitarei o resultado.

Voltando ao almoço, eu ouvia-o sempre com gosto; o Dr. Vasco da Gama Fernandes era um conversador fabuloso e um homem com muita graça e saber. Nesse dia, depois de puxar umas fumaças disse:

- Na próxima semana vou à minha terra.

Eu tinha uma ideia que o Dr. Vasco da Gama Fernandes era de Cabo Verde.  

- O senhor Presidente vai a Cabo Verde?

- Vou eu e uma delegação da Assembleia da República. Do seu Partido vai o Dr. Narana Coissoró.

Na minha cabeça pus imediatamente. “Quem vai sou eu”

- Senhor Presidente, eu é que vou a Cabo Verde.

- Não é possível. Já está tudo programado, já assinei toda a papelada, o seu colega não vai querer ser substituído e para mais o colega , ele tratava-nos assim, nem passaporte Diplomático tem. Foi o único Deputado que não o requereu.

- O senhor Presidente assina?

- Não vejo muita viabilidade, mas estou sempre disponível para resolver questões que eu considere justas.

Quando cheguei ao Parlamento disse à Secretária que me preparasse toda a papelada para ir a Cabo Verde.

- É impossível senhor Deputado. Vai o senhor Deputado Narana Coissoró e com ele não tem hipóteses de trocar.

Fiz que não ouvi.

- Diga-lhe que eu vou na vez dele. A Mina, era a Secretária, comece a tratar-me de toda a documentação.

Passado uns vinte minutos apareceu o Narana, o Plenário abriria dentro de cinco ou seis minutos, dirigiu-se a mim, com aquela agilidade que o caracteriza.

- O que é que tu queres?

- Quero ir na tua vez a Cabo Verde.

- Tu vais é... (imagina o que ele disse)

Eu sempre considerei o Narana um homem muito inteligente e com uma graça natural, nunca me ofendi com as suas palavras embora ele, às vezes, não achasse graça aquilo que eu fazia ou dizia.

O Narana voltou-me as costas e dirigiu-se para o Plenário.

- Espera. Ouve o que tenho para te dizer.

- Eu não oiço nada!

- É melhor que oiças.

- Diz lá!

- Mal abrir o Plenário, vou pedir a palavra e dissertar sobre as viagens dos Deputados ao estrangeiro.

- Diz, diz muitas asneiras e vai, vai a Cabo Verde! ....(acrescentou umas diatribes irreproduzíveis aqui mas que me deram muito gozo)

Eu quis ir a Cabo Verde para verificar se o que tinha escrito no livro correspondia à realidade. Cabo Verde é um sonho de fraternidade, de beleza, de simpatia. Ultrapassou tudo quanto eu imaginava.

 

Como verificaste é necessário querer para se alcançar. Quando queremos algo, com muita vontade, nada resiste a esse desejo intenso. A história verídica que relato é bem mais movimentada mas já te deu uma ideia do que representa uma vontade.

 

Conto outra história passada com o Professor Narana Coissoró. Eu fazia parte da Comissão de Educação, presidida pelo saudoso Engº. Nuno Abecasis. Discutia-se uma proposta do Partido Comunista sobre questões relacionadas com o ensino e que eu considerei correctíssima, o CDS e o PPD não concordavam. Segredei ao Nuno que o PCP tinha razão e que devíamos aprovar o que eles propunham. O Nuno não tinha a mesma opinião .- Eu disse-lhe:

- Vou-me embora. E saí.

Passados uns vinte minutos apareceu o Narana, afogueado, a perguntar-me:

- O que andas aqui a fazer? anda imediatamente para a Comissão: estamos empatados oito a oito.

Eu disse-lhe que não ia. O Narana, que é bem constituído, pegou-me por um braço e  arrastou-me lá para dentro enquanto eu insistia:

- Eu voto com os comunistas, eu voto com os comunistas. - Ele não acreditou. Votei. O Nuno, também não queria acreditar. O Narana presenteou-me com aquela linguagem engraçada que em vez de me ofender me dava prazer e eu acabei por ser apelidado de Comunista infiltrado no CDS e os comunistas, passados aqueles momentos e esquecidos do meu apoio me qualificavam de fascista. Era-me indiferente. O bem de Portugal está acima de qualquer palavra. Aqueles que o fazem progredir têm sempre o meu apoio.   

Votei com os vários Partidos e às vezes contra o meu próprio. O saudoso Presidente da Assembleia da República, Teófilo Carvalho do Santos, que mandou fechar a Assembleia por minha causa, mas que eu sempre considerei um homem inteligente e honestíssimo, tinha o hábito de contar as minhas infracções e os meus desvios partidários. Um dia, ouvi feliz, que eu estava certíssimo.

Ele contava ao Presidente de uma delegação Suiça, que nos visitava, o sentido das minhas votações contrárias ao do meu próprio Partido, ao que o outro respondeu:

- O senhor deputado tem razão. É a maneira de manter o eleitorado. Muitos pensam como ele e ficarão fiéis ao Partido. - Fiquei  muito feliz. Até que enfim, aparecia alguém que me compreendia. Eu quando votava contra, ou me abstinha, era porque estava certo que tinha razão, seria incapaz de o fazer por qualquer outro motivo. O bem de todos os portugueses sempre esteve acima dos meus interesses ou daquilo que possam pensar de mim.

O grande objectivo: prosperidade e felicidade para todo e qualquer português. Temos de atingir esse objectivo.

 

Não resisto a ensinar um ignorante mesmo que ele depois venha a utilizar esse conhecimento contra mim.

Na Assembleia da República encontrei outro homem que fazia o mesmo: o Adelino Amaro da Costa.

No jornal “A Província” escrevi, em editorial, o artigo: “Amaro da Costa versus Nobre da dita”, artigo em que defendia o Engenheiro Nobre da Costa, indigitado Primeiro Ministro, contra as posições do Engenheiro Amaro da Costa.

Chego à sala do Grupo Parlamentar e vejo que o Adelino lê, atentamente, o meu artigo. Fico feliz porque a mensagem estava nas mãos do visado, e pela reacção que ele iria ter em cima do acontecimento.

O Adelino estava encostado à secretária. Quando acabou a leitura e me viu, olhou para mim com ar de reprovação:

- Ó Cunha Simões, você não tem razão nenhuma naquilo que diz!

A seguir o Adelino desmonta, período a período, os meus argumentos, enquanto eu faço uma defesa débil perante aquele colosso de inteligência e monumento de saber. Ele utilizava a inteligência, eu utilizava a intuição e alguns conhecimentos. Aquilo que me deslumbrava era o seu poder de argumentação e a maneira como ele conseguia demonstrar que estava certo, naquilo que eu considerava errado.

Este assunto tem um desenvolvimento dramático, uns dias mais tarde, quando Nobre da Costa é injustamente derrotado no Parlamento. Conto os contos proibidos num livro sobre política, que já está escrito, mas que o vou deixar amadurecer.

Voltando ao Adelino. Estava zangadíssimo comigo. No fim diz-me:

- Além dos erros que cometeu neste artigo, todo o jornal está mal feito e mal paginado. - E o Adelino, página a página, foi-me apontando as faltas e como se deviam emendar. Durante, bem mais de 30 minutos, deu-me uma fabulosa lição sobre o conteúdo e a paginação do jornal.

O Adelino Amaro da Costa foi o Homem mais inteligente e o mais justo que até hoje conheci. Não passa um dia que não O recorde com saudade e admiração.

 

 

 

Utilizando a inteligência, o estudo e a honestidade para com a vida nós podemos fazer tudo. Conto-te algo que te pode parecer estranho ou caricato:

Eu fiz um santo.

É um santo de carne e osso e poderia ter feito dois se o segundo, depois de ter escrito um livro sobre ele, não cegasse pelo dinheiro.

Vamos aos factos para que os cépticos entendam o assunto e sem que tenham necessidade de uma exegese contraditória dos textos Bíblicos.

Todos nós temos forças que nos caracterizam e diferenciam dos restantes animais. Todos nós transportamos connosco uma partícula de Deus. Consoante a sua dimensão, assim somos mais ou menos competentes. Essa partícula faz que sejamos capazes de realizar aquilo que o comum dos mortais chama o milagre.

Nós somos a fusão daquilo que os filósofos teimam em separar: o idealismo e o materialismo. Os dois procedem do mesmo Ser que ao explodir dá origem a biliões de biliões de partículas e elas, por sua vez, as maiores, dão origem aos diferentes astros, e as pequeníssimas, se quisermos, os neutrões, irão impressionar os seres. Por isso afirmo que todos somos capazes de nos curar ou ajudar uns aos outros, eu explico isso no livro “Saúde e Destino”.

 

Vamos ao santo.

Como Deputado preocupei-me em servir o país. Corri Portugal de Norte a Sul para conhecer carências, levantar questões e propor soluções. Por causa da barragem da Fenosa, em Tourém, fui bastante violento com o saudoso Dr. Sá Carneiro. Os donos das terras acusavam-no de os ter prejudicado em favor dos espanhóis. Tourém é um dedo que entra por terras de Espanha no norte de Portugal. Eu falei com o Dr. Sá Carneiro. A sua resposta não me agradou. Passado pouco tempo, numa entrevista para a RDP com o notável jornalista Pedro Cid, eu declarei, indelicadamente, que o Dr. Sá Carneiro não tinha altura suficiente para ser primeiro ministro. Altura, funcionava como palavra bivalente: altura do homem e altura em competência. O Dr. Sá Carneiro veio ter comigo, bastante magoado. Disse-me que havia de provar que tinha altura mais que suficiente para ser primeiro ministro. E foi. 

 

Numa dessas viagens fui até ao Meimão, naquela época com estradas péssimas, metida numa cova funda e com mais de 95% de analfabetos. No meio da aldeia, numa casa velhíssima e muito desconfortável vivia o padre Miguel, o santo desta conversa. Na aldeia tinha fama de tonto, para os de fora tinha fama de curandeiro. Fui vê-lo. Relato o encontro no livro “Os mistérios do padre Miguel” e por isso não vou repetir muitos dos conceitos ali expendidos e o carácter peculiar do padre. Era um padre de aldeia, de palavra insólita, rude mas cativante pela sua franqueza. Só à despedida é que fiquei com a ideia que ele não regulava bem da cabeça. Pediu-me um abraço bem apertado e disse-me o dia e o mês em que o CDS iria para o Governo. Impossível. O CDS era enxovalhado, acusado de fascista, defensor de capitalistas etc.etc.etc.

Não havia qualquer possibilidade de o CDS fazer parte do Governo. A verdade é que fomos no dia e mês que ele indicou. Fiquei a pensar no assunto mas não o achei relevante. Era uma coincidência, e uma presciência, um pouco fora do comum, mas aceitável. Já depois de ter saído da Assembleia da República acontece outro caso. Relatei o facto no livro antes referido. Em traços gerais resume-se no seguinte: a filha de um amigo meu tinha uma leucemia em estado terminal, vai ao padre Miguel, ele recebe-os grosseiramente, por fim, dá três pancadas, com força, na cabeça, toda calva, da jovem, e ela cura-se. Eu sigo este processo porque esse meu amigo se encontra comigo em Tomar com a mulher e a filha no dia seguinte à visita ao padre. Esse tira-me o sono. Começo a juntar as peças e a procurar tudo sobre fenómenos semelhantes. Passado um mês começo a faltar às aulas, coisa que nunca tinha acontecido. Dirigia-me ao Meimão para estudar o fenómeno. Quando me convenci que o Homem poderia ajudar muita gente, comecei a divulgá-lo, de repente são multidões que o procuram.

Eu não divulguei uma mentira. Divulguei uma força que as pessoas depois transformam em milagres.

O que se passa? O padre Miguel, ele até podia não ser padre, tem uma partícula divina, um pouco maior que a dos outros mortais, vive isolado entre terras que lhe recarregam as baterias e completamente desinteressado dos bens terrestres. Está cheio de energia. Essa energia pode actuar em todos os campos, basta ele querer. Eu estudei-o profundamente e se contasse todos os casos que verifiquei diriam que eu sou o maior charlatão do mundo, mas eu vi, assisti, verifiquei: desde a cura de doenças consideradas incuráveis, de portas de automóveis que não abrem e ele, só com o pensamento, fazia abrir, de casais que não tinham filhos e ele tornava férteis. Fenómenos de tão absurdos que eu, se não assistisse a eles, mais do que uma vez, diria que os tinha sonhado. Inacreditável para quem não tenha visto com os seus próprios olhos.

Certo de que o homem não é nenhum santo: as suas palavras eram irreverentes, as suas atitudes eram desabridas e as suas tendências, perante alguns aspectos íntimos da vida, não eram próprios e até reprováveis, como é que este homem conseguia estes prodígios? Como é que pode virar santo?         

Tu respondes-me. “É um dos enigmas da vida.”

É e não é. Como te disse, nós podemos fazer tudo a favor dos outros. Podemos utilizar a nossa energia, simplesmente não acreditamos nela, não acreditamos em nós, não a conhecemos.

Eu fiz o santo apesar de lhe conhecer os defeitos porque as suas capacidades são muitíssimo superiores às falhas que lhe possamos apontar. Tirei partido dessa força a bem de milhares de pessoas que o procurassem, que pensassem nele ou até que lessem os livros onde se falava nele. Tive centenas de cartas a confirmarem o que acabo de dizer.

Aqui tens mais um dado. O livro é um veículo de força. Ele pode ser o despoletar do conhecimento, de uma cura, de o despertar de uma ideia, de um abrir de novos horizontes.

Como te disse, no Meimão, havia mais de 95% de analfabetos. Quando escrevi o primeiro livro sobre o padre Miguel, toda a gente, na aldeia, se recusou a vendê-lo.

- Quem é que lê isso? O padre é tolo e mais tolo quem acredita nele. - Eram as palavras que ouvia das gentes com quem ele convivia.

Eu não desisto às primeiras e tanto insisti, tanto insisti que lá arranjei uma mulher de 68 anos que os começou a vender. Foi um sucesso. Um dia que lá fui entregar livros, ela não estava. Perguntei ao homem:

- A sua mulher?

- Está na escola.

- Na escola? - Pensei para mim: “esta desgraçada, a ganhar o que ela nunca tinha ganho na vida com os livros, ainda vai limpar a escola?”

- Ela é doida.

Perante esta frase fiquei com os neurónios atentos.

A mulher, tinha ido para a escola aprender a ler, para saber o que diziam os livros, que atraíam tanta gente.

Claro que há os descrentes. Aqueles que não acreditam nestes “milagres”. Um deles, era o reitor do convento de Tomar, com quem às vezes trocava impressões sobre o assunto. Ao relatar-lhe o que sucintamente acabo de descrever, o reitor disse-me com a sabedoria que brota da solidão dos claustros:

- Aí tem o verdadeiro milagre. A mulher despertou para o conhecimento.

 

Conto contigo.

 

Nunca desistas do que pretendes, usa a inteligência e a calma e verás que tiras um prazer da vida como nunca imaginaste e consegues viver feliz num mundo que faz tudo para se auto mutilar.

 

Muitas vezes, os altos cargos que ocupamos cortam-nos os pequenos prazeres ou obrigam-nos a evitar determinadas tarefas por não serem consentâneas com o nosso estatuto. Nunca consegui obedecer a estas regras.

Na Assembleia da República, raramente andava de casaco e gravata, só em cerimónias muito especiais. Lisboa é uma cidade de clima temperado mediterrânico, eu sou da Beira onde o frio, quando aperta, não é para brincadeiras. Em Lisboa ando sempre acalorado.

Numa recepção de deputados da Coreia do Norte à Assembleia e posterior visita ao sul do país, em Agosto, calor infernal, eu fui informado que tinha de os acompanhar em representação do CDS. O primeiro encontro foi num almoço na “Cozinha Velha”, Palácio de Queluz. Quando cheguei já lá estava o chefe da representação portuguesa; o simpático e inteligente Dr. António Arnaut, que foi Ministro da Saúde, a quem os portugueses devem o Serviço Nacional de Saúde. Quando me viu, todo fresquinho, de camisa branca de meia manga e calças creme, olhou para mim e perguntou-me:

- Ó Cunha Simões, você vem assim?

- Assim com? - Disse-lhe eu gozando o espanto.

- De camisinha, sem casaco, gravata...

- Ó Arnaut, deixe-se dessas coisas. O senhor é socialista, até devia apoiar os descamisados...

- Você é impossível. Um verdadeiro anarca. Como deve sofrer o seu Partido. Eu...que hei-de fazer!

Começaram a chegar os outros Deputados e por fim os coreanos, vinham todos encasacados, engravatados e todos muito suados. Só eu, fresco e feliz me encontrava em conjunção com a natureza. 

Começa o almoço; um calor insuportável, todos afogueados, à minha frente está o Deputado Manuel Alegre que me repete constantemente:

- Você é que teve juízo. Eu morro neste braseiro.

- Tire o casaco, tire a gravata. - Insistia eu.

- O Arnaut aborrece-se.

- Faça-lhe sinal e dispa o casaco.

Assim fez. Passado meio minuto estava tudo em mangas de camisa e gravata desapertada.

Até ao fim da visita dos Deputados Coreanos nunca mais ninguém andou de casaco e gravata, salvo o dia em que fomos recebidos pelo Presidente da República e aí, até eu primei. À vontade sim, mas regras estritas, são regras.

 

Quando ia à Presidência da República só com os deputados portugueses embora fosse de casaco e gravata tratava sempre o Presidente da República Ramalho Eanes com muito à vontade. Um dia que fui com uma delegação de comunistas e o Ramalho Eanes me tratou por tu, eu respondi-lhe com igual tratamento. Nos dias seguintes os comunistas olhavam-me como se fosse um animal raro, eu dei por ela mas fiz de conta, até que na semana seguinte, o Deputado Jorge Lemos, veio ter comigo.

- Ó Cunha Simões, é verdade que você tratou o Presidente da República por tu?

Eu fiz-me pateta.

- Eu?

- Sim, você. Você é inacreditável, tratar o Presidente da República por tu.

- Se calhar foi ele o primeiro a tratar-me assim.

- Mas ele é o Presidente da República.

- E eu sou o cidadão Cunha Simões.

- Você é impossível...você é impossível...

Para os comunistas, naquele tempo, não sei se os comunistas de hoje ainda pensam assim, o Presidente era o deus, para mim, ele era meu conhecido, sempre nos tínhamos tratado por tu, o que o Deputado Jorge Lemos desconhecia e que eu, para me divertir, não lhe disse.

 

As greves portuguesas sempre me motivaram muitas dúvidas.

Numa daquelas, muitas greves, quase selvagens, que se fizeram durante os primeiros anos depois do 25 de Abril, irritado com a irresponsabilidade dos sindicatos, resolvi contestar a greve dos padeiros actuando. Já tinha escrito contra as greves não por as não considerar justas, mas sim, porque punham em risco a sobrevivência dos trabalhadores. Muitos suicidaram-se, outros entraram na miséria de onde nunca mais conseguiram sair.

Se os trabalhadores, em greve, fossem pagos pelos sindicatos como acontece em outros países, até concordaria com elas, agora não esgotar o dialogo e fazer greves, de perna traçada, enquanto os trabalhadores são consumidos na insensatez, nunca contem comigo.

Já era Deputado e há uma greve de padeiros, eu tento convencer o senhor Joaquim Dias Santos, um homem de coração largo, bondade extrema e dono da padaria “Combatente, em Tomar, a vender pão nesse dia.

- Como? Não tenho padeiros, não tenho quem venda o pão.

- O senhor e a D. Sílvia, a esposa, fazem o pão e eu vendo-o. - Depois de muita hesitação e da minha teimosia lá o convenci e foi assim, que mesmo Deputado eleito, eu passei o dia a vender pão com todos a gritar:

- Senhor Deputado, senhor professor: seis carcaças, um pão de quilo, uma forma...

Todos foram servidos, o pão esgotou e a mim não me caíram os parentes na lama.

 

Não há que ter vergonha de trabalhar, de ajudar. Se não o pudermos fazer na nossa profissão procuremos outra até atingir o que na verdade nos convém. Nunca devemos ficar de braços cruzados.

 

Outro episódio.

O Dr. Manuel Guimarães passou de professor na Escola Industrial de Tomar para gerente do Hotel dos Templários. Num Domingo que não tinha viva alma no hotel, telefona-me.

- Anda conversar um bocado, estou sem ninguém.

Aí fui, as conversas com o Manuel começavam sempre com umas historietas e acabávamos em assuntos de muitíssimo interesse. Falávamos de política, religião, filosofia ou outro qualquer assunto actual. Isso apaixonava-me. Com ele ou com o Dr. Anselmo Borges aparecia o lado sério da vida, aquele que obriga a pensar e que me atrai.

Estava em conversa com o Guimarães no bar do hotel quando aparece o Sr. Galvão, muito aflito.

- Chegaram dois autocarros de turistas italianos, o Sr. Dr. mandou dispensar o cozinheiro, o empregado do bar e mais de metade do pessoal, agora só tenho o ajudante do cozinheiro, mais um miúdo e o jardineiro. Digo que a estas horas não há serviço?

O Manuel era incapaz de perder uma oportunidade de fazer dinheiro para o patrão.

- O hotel está aberto. Eu vou servir às mesas, o ajudante de cozinheiro passa a cozinheiro, você ajuda e tu, - olhou para mim, riu-se - o italiano é o teu forte... servir café e bebidas para ti é mato... riu-se de novo e foi direito à porta.

- Eu?

- Tu sim, de malandragem já basta o tempo que passas no Parlamento. Tens a lista de preços...segue-a.

Nem tempo me deu para negociar o contrato.

Passado 40 ou 45 minutos apareceram os italianos, muito faladores e dispostos a beber e a repousar no bar e no jardim contíguo. Eu servia com rapidez e eficiência, dava-me gozo. Era diferente. Eles e elas admiravam-se como um empregado falava tão bem italiano e eu nunca me desmanchei, só que passado mais algum tempo, começaram a aparecer os tomarenses que conhecendo-me, e achando estranho o meu trabalho, pediam, com mil desculpas, o café e uma ou outra aguardente enquanto os italianos bebiam do fino.

No final tinha de gorjetas: dois mil trezentos e cinquenta e sete escudos. Só dos italianos. Os tomarenses não ousaram ofender o Sr. Deputado.

O Manuel, depois de tudo despachado e com os italianos a caminho de Santarém, perguntou-me.

- Que tal?

- Foi bom. Tens a caixa cheia. Estes italianos valeram a pena.

- Gorjetas? 

- Estão aqui neste cesto.

- Conta.

Eu já tinha contado. Peguei no dinheiro, meti-o no bolso e disse-lhe: são dois mil trezentos e cinquenta e sete escudos.

- Metade para a casa, metade para o trabalhador.

- Nem um tostão para a casa. Metade para o trabalhador e metade para a vergonha que passei. Nunca tiveste tantos tomarenses a beber café, eles passavam palavra e só para serem servidos por um Deputado iam estoirando com o servidor. Esses não deram um tostão.

O Manuel bem argumentou. Mas fui inflexível. Dinheiro de trabalho suado é sagrado. Se tivesse feito contrato teria pago mais.

O Manuel, durante um mês, encheu-me de impropérios: “trabalhador explorador” “trabalhador sem vergonha” e outros menos dignos para a classe dos mal pagos. Eu sentia-me feliz todas as vezes que ele me insultava. Tinha experimentado mais uma profissão e tinha sido pago à gorjeta. Era o que muitos cafés pagavam aos seus empregados.

Como vês o trabalho só envergonha os inchados, aqueles que se julgam tão importantes que qualquer trabalho os incomoda.

Tanto o trabalho braçal como o mental são importantes. Sou apologista que vendas trabalho mental, mas nunca desprezes o braçal sempre que mais ninguém o faça e tenha de ser feito. Quando isso acontecer inventa sempre maneira de o desempenhares de maneira fácil. Inventa. Vais ver que dá muito gozo resolver em duas horas aquilo que outros levam dez.

 

Experimentar o peso da vida para a explicar sempre me atraiu. Ao ver carregar, às costas, sacas de farinha para a padaria, que já referi, um dia, depois das aulas na Escola de Santa Maria do Olival, antigo Liceu de Tomar, pedi aos dois homens que descarregavam uma camioneta de farinha:

- Posso experimentar?

- Vai-se sujar todo.

Tirei o casaco, enfiei uma saca vazia na cabeça e costas e até ao fim da carga acompanhei um dos homens enquanto o outro passou a levantar as sacas.

No final paguei-lhes umas cervejas e agradeci-lhes.

Minha mulher é que não achava graça às minhas experiências nem às minhas aprendizagens.

 

Entre os nossos amigos contava-se uma japonesa, muito bonita, a Hiromi. Eu resolvi aprender japonês. Um dia, depois de acabar a lição, a minha mulher disse-me diplomaticamente:

- Já sabes línguas demais. Acabaram-se as lições de japonês.

Eu podia contestar. Para quê? Contrariar mulher? Nem pensar.

 

A Hiromi separava os pintos machos das fêmeas numa das empresas da firma “Mendes Godinho”, deixou de lá ir a casa. Um dia encontrei-a e convidei-a a assistir a uma aula do 10 ou 11º anos na Escola de Santa Maria do Olival. Passados dois meses voltei a encontrá-la na tabacaria do Sr. Calado e perguntei-lhe:

- Então Hiromi, ainda não foi assistir a uma das minhas aulas? Está zangada comigo?

E ela:

- Não estou zangada. Eu fui a escola, perguntei: Dr. Cunhal está? O Sr. da porta disse não, e eu voltei para trás.

Todos, na tabacaria, riram enquanto Hiromi, de olho muito aberto se perguntava o que estava a acontecer. Lá tive de explicar à Hiromi que o porteiro era novo e que Cunhal não era o mesmo que Cunha. O outro era um político bem conhecido e o porteiro não teve o discernimento rápido, perante uma estrangeira, para se aperceber do engano.

 

Depois de todos os trabalhos principais que tive; no colégio, no consulado, no turismo, no liceu, nas lições particulares, muitas vezes me deitei às duas da manhã e me levantei às sete; o trabalho dá-me prazer, era natural que fosse amealhando algum pecúlio. Chega o 25 de Abril e por eu ver os erros dos exageros revolucionários e os denunciar no “Templário”, um amigo meu, que se dizia de esquerda, resolveu atacar-me. Arranjou um jornal e pespegou na primeira página um artigo contra o “Cunha dos cifrões”, ele sabia da minha vida. Avisei-o de que ele estava a ser injusto e demagogo, não me ouviu. Contra ataquei com as minhas armas. Dois artigos demolidores: “O cavaleiro da confusão” e “O osso”. No primeiro insinuava que apesar de ele ter estado preso pela Pide devia ser informador pois saiu do recolhimento gordo, anafado e bem vestido; no segundo afirmava que ele o que desejava era um tacho graúdo na empresa onde trabalhava o que mais tarde aconteceu de facto. Como vês, não sou santo nenhum, não dou a outra face às pessoas cultas, os ignorantes ou os ignoro ou os ensino. Se alguém inteligente me ataca ou actua incorrectamente para comigo e se insiste não resisto a uma resposta condigna. É assim o ser humano. Eu e tu fazemos parte deste mundo e tentamos aperfeiçoar-nos sempre.

Eu tinha poupado, a seguir fui Deputado e desiludido e desacreditando no caminho que seguíamos, resolvi comprar tudo o que fossem manuscritos e outros papeis de valor desde o século XV até aos nossos dias para os voltar a vender com a colaboração do meu amigo Manuel Guimarães. Excedi-me embora pensasse sempre que o investimento seria seguro. Ajudei ainda dois políticos. Por causa de um, perdi, além do tempo e dinheiro, a grande maioria dos assinantes do semanário “A Província” e ao outro publiquei-lhe dois livros de graça e paguei-lhe os telefones do Partido num mês em que as contas estavam muito em baixo. Conto-te tudo isto para veres que a fortuna ou a desgraça nunca podem desviar o ser humano do seu objectivo: viver feliz com a felicidade de todos.

Divorciei-me e a partir daí a minha partícula ofuscou-se durante uns meses, os suficientes para uma cheia do rio Nabão entrar no cofre onde estavam os meus tesouros e transformar tudo em pasta de papel. Perdi muito mais do que as minhas economias. Os dois amigos a quem recorri para me apresentarem pessoas sobre quem escrevesse foram sempre adiando as apresentações. Um, já morreu de repente e outro aí continua como símbolo da ingratidão. Outros ainda usufruíram de altos juros enquanto eu fui sempre incapaz de levar 1% fosse a quem fosse nos tempos em que podia dar ou emprestar. Continuo a contar-te isto para saberes que tens de orientar bem a tua vida para não contares só com a clarividência da partícula que te ilumina mas para que também estejas com atenção aos desaires inesperados. Podia servir-me do património paterno mas preferi que as aves de rapina o farejassem, assim conheceria todo o ciclo das aves rapaces para depois reconstruir todo o próprio património para o voltar a distribuir por aqueles que necessitam dele. Tenho a certeza de que não levarei nada mais para o outro mundo, do que a partícula que me voltará a ligar a este ou a qualquer outro planeta.

 

Sintetizando:

 

Como já aludi: bati no fundo. Entendi a vida. Vou fazer a recuperação no século XXI só para compensar quem acreditou em mim e para escrever a todos os Governantes do mundo e teimar na eliminação dos exércitos e no desenvolvimento da educação.

 

Corrige sempre os erros. Nunca faças deles uma tragédia. Ou penses que as situações são irreversíveis. Há tempo para tudo, neste pouco tempo que vivemos sobre a terra.

 

Estou certo que os pais, neste século XXI, compreenderão melhor os jovens. Repreender sim, chamar a atenção sim, e nunca facilitar nos estudos como faziam os meus pais. O amor exagerado só revela impericia sobre a finalidade da vida.

 

A educação é a condição essencial para o entendimento e prosperidade dos povos. Quando 100% da população mundial souber escrever, ler, contar, e entender que as únicas armas permitidas são as da convivência, as do amor e da inteligência, tudo ou quase tudo está resolvido.

 

O homem é o animal em que tudo se aproveita. Enquanto aos irracionais se pode aproveitar a carne, o sangue, os ossos. O homem entrega toda essa parte material à terra para a continuar a alimentar e ainda se lhe aproveita o pensamento que, tal como o sopro da criação, cria, ele próprio, novas formas de vida.

 

Tenta moderar as tentações. Oscar Wild dizia não conseguir resistir a uma tentação. Isso trouxe-lhe gravíssimos dissabores. Moderar as tentações é a maneira mais correcta para domar este potro bravo que é o corpo. Dominados os apetites violentos e irresistíveis, o raciocínio clarifica-se e os segredos da vida são-nos esclarecidos

 

Enquanto há poucos anos atrás seria difícil pensar em alfabetizações em massa e em efectivas mudanças de comportamento, hoje, com a televisão, a Internet, a rádio e os telefones celulares conseguem-se verdadeiros milagres; é só substituir as armas por estes equipamentos. Não posso compreender como é possível que os países mais desenvolvidos, industrializados e cultos continuem a vender armas a países paupérrimos, cujo subsolo é riquíssimo mas onde os seus naturais morrem de fome por causa da sua ignorância.

 

Pobres e ricos todos têm de passar pelas escolas: estudar, brincar e serem muito competentes. Ser competente dá o mesmo trabalho que ser incompetente e rende muito mais.

 

É a hipocrisia do ser humano que o deixa cego perante a iminência da sua própria destruição.

  

Contei-te histórias verídicas, levantei-te problemas, desafio-te a utilizar a inteligência a bem da humanidade, a descobrir os porquês desta angustiante incerteza da finalidade do ser humano. 

Que solução propões?

Escreve, estuda, experimenta, actua. Quem sabe até onde poderás chegar. Lê e relê o que escreveste, depois conversa com alguém com quem tenhas confiança e ouve a sua opinião. Se possível, 5 opiniões diferentes são o ideal. Nunca te aborreças se a opinião, dele ou dela, não for coincidente com a tua. Afinal, ele ou ela vão funcionar como críticos que têm a sua própria visão sobre o assunto. A decisão final é tua.

 

Como vês, ou como lês, a minha história envolve outras histórias.

A vida é uma história constante. Só fica nela quem a souber contar, ou seja, quem fizer obras notáveis, os outros, nunca passarão de baratas, que do mundo pouco mais tiveram do que os problemas do dia a dia. Agora, quando todos ficarem inscritos na memória do mundo, teremos a compreensão humana, porque estaremos solidários uns com os outros. Todos participámos, de uma maneira positiva, na sua evolução.

 

A tua cabeça é uma fonte criadora e inesgotável. Aproveita-a. Serve-te dela e de todos os meios à tua disposição para a rentabilizares: livros, Internet, rádio, televisão, jornais, faxes. Tudo te pode servir, para fixares o trabalho do teu estudo, a bem de Portugal e do mundo. Utiliza a “agressividade com sabedoria” para defenderes as tuas ideias e os teus negócios e depois sabe valorizá-los a favor dos outros. 

 

Estás no século XXI, pensa com a visão do século XXII, aproveitando e melhorando tudo o que foi o último quartel do século XX.

 

Luta para que toda a população do mundo tenha acesso à Escola. Peço o teu contributo. O ser humano não se pode transformar em abcesso humano. Em aborto humano.

Tu fazes parte de todo o mundo. Ensina, divulga, utiliza todos os meios áudio visuais para obrigares os Governos a actuarem rapidamente na educação dos povos.

O futuro e a felicidade de todos os seres estão nas tuas mãos.

 

Insisto: devemos vender inteligência para a rentabilizarmos a favor da humanidade. Já que os outros países não são capazes de o fazer que o faça Portugal. É o Quinto Império, é o Império da inteligência sonhado por  António Vieira, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva. É óbvio que para isso terás de utilizar todas as tuas capacidades. Para o fazer tens de mergulhar no mais fundo do pensamento e daí arrancares a ideia. É inegável que o convívio, o empenho e a influência das outras pessoas é fundamental para o estudo e divulgação das ideias para concretizar o Quinto Império: é o Império da Inteligência, do deslumbramento, da ideia que ninguém teve. O Quinto Império é o Império que conquista a sabedoria, a paz, a harmonia e a prosperidade de todos os povos. Há uma maneira de o fazer: através de todos os meios audio visuais que dispomos.

Pensa bem neste assunto.

 

As conversas e a escrita são como as cerejas. Eu insisto para que escrevas, melhor que eu, muito melhor, de maneira a deslumbrares o mundo, a tocares a inteligência e o coração daqueles que podem compartilhar ensinando, empregando, criando riqueza para a fazer reproduzir a bem de todos.

Isto não é ser lamechas, nunca o fui. Sou um revoltado por amor, se quiseres, por amor a um mundo hipócrita, infame e que se mata, esfaqueia ou destrói como se tudo fosse natural, e não é: ou então não somos racionais, ou então caminhamos para a destruição a curto prazo e certamente é o que vai acontecer, como já aconteceu de outras vezes.

O mundo tem mais de 550 milhões de anos. Foram encontrados antropoides com 40 milhões de anos. Nós só temos material escrito desde há pouco mais de cinco mil anos. O que aconteceu antes?

 

Apesar da juventude portuguesa ser irreverente, os portugueses começam a perder o seu valor combativo e aventureiro poucos anos depois de o Tribunal da Inquisição ter sido introduzido em Portugal em 23 de Maio de 1536.

O reinado de D. João III privilegia a cultura e a religião em deterimento da aventura ultramarina: cerceia a ambição, relaxa o corpo e as mentes. Por outro lado a Inquisição oprime todos. Há o desinteresse por aquilo que acicata o homem e o torna combativo.

D. Sebastião tenta fazer o retorno à gesta antiga e arrasta com ele todos os homens válidos e os de valor para o desastre de Álcacer Quibir.

O rei Filipe II de Espanha reclama o trono, que era seu por direito de sucessão, poucos se lhe opuseram. Quebrado o ânimo tanto lhes fazia ser independentes como pertencerem a uma Espanha forte e unida. Mas os Filipes fizeram tantos erros que os Portugueses mesmo sem armas, nem dinheiro, nem aliados conseguiram reunir toda a força que lhes restava e expulsaram o familiar que tão canhestramente pretendia unir a Península Ibérica.

Com os Filipes a Inquisição não parou, continuou a ceifar consciências, a aterrorizar quem não seguia a religião católica ou quem não respeitava o rei. Expulsos os Filipes, os reis portugueses continuaram a agradecer-lhes os favores e assim continuou com D. João IV, D. Afonso VI, D. Pedro II, D. João V, D. José e D. Maria. Foi tempo a mais de sofrimento e recalcamento. Quando estavam na recuperação vieram as Invasões Francesas e as guerras entre Liberais e Miguelistas. Na primeira República, como não tinham mais mundo a descobrir nem com quem combater voltaram a matar-se uns aos outros. Em 1928, na Segunda República, também conhecida por Estado Novo, apareceu um homem, Oiveira Salazar, que disse: chega de confusão, quem fizer desordem é responsabilizado e punido pelos actos que cometer. A parttir deste momento os portugueses acharam que o melhor era aproveitar o Sol e as praias e deixar Governar quem governa e quem não lhes desse cabo da cabeça.

Aventuras? Só em países estrangeiros onde pudessem ganhar dinheiro comprar carro e ter a certeza que os Governantes do seu país não mandavam neles.

Os portugueses podem ser mandados por todos menos pelos seus conterrâneos. Eles gostam de chegar a Portugal e ser eles a mandar nem que o tempo de mando seja de dois ou três anos que é o tempo da chegada e o tempo em que abandonam este mundo depois de terem gasto as energias por outras terras onde foram porteiros, empreiteiros ou gestores de grandes companhias multinacionais.

É por isto que os portugueses continuam a viver num país envelhecido e mais atrasado que os outros. Os portugueses perderam a ambição. Agora tanto lhes faz ser pobres ou ricos desde que não passem fome e tenham um tecto onde viver.

Repetindo: depois de Portugal ter sido ocupado por Espanha durante sessenta anos, entre 1580 e 1640, de a Inquisição ter garrotado milhares de cristãos novos e assustado centenas de milhar com as suas impunes e abençoadas barbaridades e depois das tropas Napoleónicas terem pilhado e vandalizado quase todo o país, Portugal desinteressou-se do trabalho, perdeu o gosto pela aventura e pela descoberta, deixou isso para os outros.

Fomos no século XVI a luz da Europa e de todo o mundo conhecido. Somos no final do século XX a lanterna da Europa. No século XXI voltaremos à paridade Europeia e dos cérebros do mundo. Se Portugal quiser continuar como expressão num Universo que teima em se querer desfazer, os portugueses terão de voltar a ter confiança nas suas excelentes capacidades..

CONTINUA

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