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LIVRO EM ESTUDO:

 

 

 

 

 

 

 

 

GUARDA, MEU AMOR

 

A NEVE

 

“Branca e leve, branca e fria”

Assim Augusto Gil dizia

Cantando a dor que passa

Nos olhos de uma criança

Que pobre e descalça

Só no amor tem a esperança.

“Branca e leve, branca e fria”

Ah, como eu te recordo, neve.

A primeira que caía

Era enorme a alegria

Das capas negras enroladas;

Corríamos pelas escadas

Mergulhávamos nas ruas,

Deslizávamos pelas vielas

Onde a neve se estendia.

Era o Chartier, o Sá Pessoa,

O Casimiro, o Adérito, o Herculano,

O Patrício, o Mário, o Guimarães,

E todos à uma, todos à toa

Combatíamos, rindo felizes,

Loucos de contentamento.

“Branca e leve, branca e fria”

Toda a juventude a sentia

Como a bênção, o reboliço, a emoção.

Neve, Guarda, prazer, amor

Ninguém se lembrava da dor

Que a neve trazia ao indigente.

Neve bendita que tudo purifica.

As dores de outrora passaram.

Hoje, a Guarda é próspera e rica.

Terra de neve, terra oiro, terra pão.

 

 

O PINTOR

 

Olha o "Estação",

Com a paleta na mão

E sorriso meio trocista.

Quem será a vítima afinal

Do seu jeito caricatural

E lápis grande artista?

O Gonçalves não é de fantasias

A todos tira as manias

E desenha-os sem pinturas.

O Luís detesta a hipocrisia,

Os fanfarrões, o engano.

Só pensa na Academia,

Nas Artes, na Arquitectura.

É da Estação-Guarda natural.

Estação, prós amigos fica o nome

Porque o Gonçalves genial

É a honra de Portugal.

Estação, o cognome.

 

O MILAGRE

 

Junto à Torre dos Ferreiros

A imagem do santo olhava.

Toda a figura tremia.

Eu, de olhos arregalados,

Pensava...no mistério

Que ilumina as ilusões,

Quando chegou o Martins de Almeida

Que, rude e grosso, me disse:

- Que grande carraspana, ó Simões!

- Chiu! Espera pelo milagre.

- Vamos imediatamente embora

Antes que chegue a senhora

Que trás flores ao santinho.

- Espera, espera só mais um bocadinho.

- Vem ateu. Vem. O teu milagre é o vinho.

- Assim perdi, uma provável visão,

Por causa daquele descrente.

Levou-me a reboque, a empurrão.

Parecia mal, vinha lá gente.

 

 

O NAVE

 

Capa rota, em frangalhos,

Bamboleando as sapatorras

Vem ao longe trauteando

Melodias em tom suave.

Esconde-te, diz o Craveiro;

Ouve o que canta a garganta

Do desgrenhado do Nave.

Passa o folião trauteando:

“O Passarinho da Ribeira”,

O Craveiro puxa-lhe a capa.

- Larga, bandido, larga.

Julgais que sou da vossa laia?

- Ah, safado, que cantas?

- O vosso funeral, senão largais

A minha douta manta,

Mais feroz que a dos Cabrais.

- Adeus Nave, adeus férias

Cá voltámos à desgraça

Fazendo as equações

Na aula do Rabaça.

“Estudai, malandros”

Respondeu o esfrangalhado

Enquanto continuou assobiando.

“Vem zuca das férias”

Disse o Craveiro conformado.

  

 

O SONHO

 

Um dos meus sonhos de criança

Era ser locutor.

Através da palavra bem timbrada

Podia tornar o mundo melhor.

Um dos meus grandes amigos,

O João Alfredo Donas de Sá Pessoa,

Prestou-se a entrar comigo

Na compra de um gravador.

Entre estudos e gravações

O Sá Pessoa convenceu-me

A prestar provas na Rádio Altitude.

“Vai lá, dizia-me, vai lá, ó Simões,

A ti não te negam nada.”

A Rádio Altitude aceitou

Que representássemos a Ceia dos Cardeais.

Melhor lá não tivesse ido.

Ao ouvir a minha voz

Que mais parecia um rugido,

Fugi espavorido.

Bem me acalmava o Sá.

Eu não entendia razões.

Fiquei tão horrorizado

De me ouvir

De me sentir ridicularizado,
Através das ondas hertezianas,

Que vendi, ao Sá, o gravador

E pensei outro caminho melhor

Para influenciar o mundo.

  

O ARAGONEZ

 

Quem diria que entre duas tacadas

Num bilhar mal amanhado

Se encontrava um filósofo sonhador?

O Aragonez, discutia tudo serenamente.

E ouvia com atenção.

Para nós, jovens da brincadeira,

Admirávamos-lhe o vestir,

A botoeira futurista,

O calçado, avançado no tempo,

Tal como as suas dissertações.

Muitas vezes me perguntei,

Se, na sua maneira de estar,

Não haveria um sofrimento escondido,

Por sentir que a vida

Teimava em lhe negar

O que ele gostaria de fazer.

Quando entrou para a Rádio Altitude

O Aragonez ganhou alento.

A Guarda reconheceu-lhe o mérito.

A sensibilidade, o talento

Que deram voz à cidade.

Mas, o Aragonez, entre o rádio e o bilhar

Continuou sempre o mesmo pensador.

Olhar distante, compenetrado,

Amigo do seu amigo.

 

 

OS GAIATOS

 

"Os Gaiatos" foram a Instituição

Que mais amor

Tiveram dos Guardenses.

Aqui se “construíram” homens

Que ultrapassaram os tristes fados

E deram a Portugal sabedoria e valor.

Destaco o Zeca Rodrigues,

Rapaz de múltiplas funções

E de carácter lhano.

Estudava nos Gaiatos,

Trabalhava no Herculano.

Um dia, por pirraça do destino,

Foi D. Dores buscar o menino

Para ajudar na missa

O corpulento padre Inácio.

O rapaz, sempre prestável,

Não se negou ao serviço,

Mas do assunto não percebia nada.

O Padre, em surdina, sempre lhe dizia

O que devia conduzir para o altar,

Mas, num momento de atrapalhação,

O Zeca ouviu “galhetas”

E sem mais; ala que se faz tarde.

Deu às pernas, o maroto.

O padre, de mãos no ar,

Viu escapar-se o ajudante.

Sem as galhetas do ofício

Resolveu improvisar

Enquanto procuravam o garoto.

Foram-no encontrar debaixo do balcão

Transido de medo.

Galhetas são fortes bofetadas

E dessas já estava farto.

Valeu-lhe a Maria das Dores

Que, com festas e explicações,

Lá o convenceu a voltar

Enquanto o padre perorava, perorava,

Sem nunca mais acabar.

Voltou o rapaz, continuou a missa,

Mas o Zeca Rodrigues jurou

Que na vida só faria

Tudo o que da vida entendesse.

Que fosse ao ofício quem quisesse.

Ajudar à missa? Nunca mais.

 

 A LIBÂNIA

 

A Libaninha consoladora de estudantes,

De futricas e tratantes,

Era senhora impecável.

Nunca negava um sorriso, uma pernada,

Um conselho ao mais desesperado.

Para ela, a função era uma paciência

Muito elaborada, da ciência

Do conhecimento e dos segredos do amor.

Ela, que era analfabeta,

Interrompia a tarefa para escrever uma carta

Ao vadio que amava verdadeiramente.

E o estudante que ela ensinava

Escrevia tudo com prazer, correctamente.

Na profissãoempenhava o corpo, a vida,

E todas as habilidades.

A Libânia era uma excelente professora.

Devia ser condecorada a titulo póstumo

Por ter encaminhado a juventude.

Todos adoravam a Libaninha,

Todos saíram da sua cama mais conscientes

Que o trabalho, o estudo, o amor, a honradez

Faziam a vida e o mundo melhor.

A Libânia sabia mais que um doutor.

Libânia, doutor honoris causa?

Sim senhor.

 

 

NEVOU

 

Que encantamento!

Como é bela e fria

A cidade.

Nevou

Como se sente

Por todo o corpo

Os monumentos, as casas

Ganham cor,

E até as expressões de dor

São sorrisos.

A neve faz tritar

Os mais desprotegidos,

Mas o deslumbramento

Deixa-os indiferentes

Ao sofrimento.

A neve é a esperança

Que lhes enche a alma,

E lhes diz que um dia

Também eles serão neve,

Futuro, pão, e riqueza,

Misturados na Natureza

Para que a vida continue.

 

 

CRESCER ATÉ MORRER

 

Pequeno, Sorridente, brincalhão,

Olhar de bom malandro,

O Martins de Almeida entrava em todas.

No roubo de galinhas era perito:

Metia-lhes a cabeça debaixo de asa

E elas gostavam, não abriam bico.

Mas uma vez, só não foi apanhado

Porque esteve três horas agachado

De cócoras dentro do galinheiro.

Ao sair pelas telhas parecia um Cristo;

As lêndias eram aos montes; só visto.

Até com creolina foi lavado.

Mas ele não tinha emenda.

O Martins de Almeida, que era pequenote.

Cresceu graças ao Caetano, Mata-frades,

Que queria ser militar, mas faltava-lhe altura.

O Mata-frades, pendura aqui, ali pendura

Cresceu até um metro e sessenta e dois.

O Martins de Almeida que tinha complexos

De crescimento comprou barras e argolas.

E não é, que estes dois mariolas,

Cresceram mesmo a valer?

O Mata-frades foi na tropa comandante

E o Martins de Almeida quase alcançou

Um metro e setenta e cinco.

A brincadeira escondia força de vontade.

E todos os jovens que estudaram nesta cidade

Subiram na vida. Cresceram em tamanho.

 

 

O RAU

 

Cem metros em doze segundos

Só o Rau era capaz.

Fugia como uma garça.

Nas serenatas o Rau destacava-se

Pela altura e voz desafinada.

Depois seguia-se a patuscada.

Para roubar galinhas

O Rau era o grande atleta.

Passava-as ao Zézé

E ala que ninguém mais os via.

Depois, já descansados, a trupe;

Joaquim Couto, Albertino Santana,

António Almeida e Armandinho Alpergatas

Juntavam outros menos actuantes.

O Rau, com voz tonitruante, decidia:

Tu, não fizeste nada, trazes o vinho.

E tu, trazes o pão, e tu as batatas.

Instalado como um rei, o Rau começava o banquete.

Durante meia hora nimguém o ouvia.

Os outros seguiam-lhe o exemplo.

E como num hino de louvor, em mastigação sagrada,

Só se ouviam os queixos : rau, rau, rau.

 

AS CONFISSÕES

 

A Sé na sua imponência,

É santuário onde a fé

Não se discute.

No seio acolhe visitantes

Dados à religião e aos mistérios.

Os jovens do Liceu

Indiferentes aos devaneios,

Só pensam nas correrias.

Esvoaçam pelas escadarias;

É dia geral de confissões.

Para todos é, unicamente, festa.

Acabaram as aulas mais cedo

Para preencher esta função.

O Guimarães vai à água benta

E borrifa, em bochechadas,

As hostes mais chegadas.

Ímpio pagão grita a “malandragem”.

“É preciso mostrar contrição”

Diz uma beata.

“Tá bem santinha, desculpe.”

No meio das bem-aventuradas e dos talados

Jogávamos ao burro e à apanhada,

Aos ditos, aos encontrões.

Mas todos vão à confessada,

Mesmo que isso não passe de brincadeira.

A Sé vestiu-se de Quaresma

Precisa de silêncio e de tristeza.

Exige hipocrisia.

Mas na alma da juventude, a natureza

É mais forte que o velório.

“És tu, és tu agora a confessar”

Cada um empurra o outro

Para junto do cubículo ou do altar,

E cada um confessa a mentira,

A tristeza alegre e descarada

Que ali tem de estar encapuçada

Porque assim manda a tradição,

A beatice, o fingimento, a dissimulação.

“Vai tu, vai tu”

E lá vai o Barão para os pés do Padre Inácio.

“Este não!” Grita ele interiormente.

O padre conhece a sua repulsa.

- Ficaste admirado? Vai para outro.

O Zé, quer manter a compostura.

Hipocrisia com hipocrisia se paga.

- Eu confesso, eu confesso sr. Padre.

- Vê lá, pensa bem, não mintas.

- Eu confesso.

Confessar confessou, mas no final engasgou:

- Há um, que eu não posso dizer.

- “Vês. Eu não te avisei?

 Assim não te posso dar a bênção.

Eu só perdoo se confessares”.

- "Se tem que ser...

Quando vou à casa de banho

E sai um, deste tamanho,

Digo sempre: aboca padre Inácio.”

O solene, gordo e bondoso sacerdote,

Vermelho como um pimentão,

Murmura-lhe em tom audível:

“Arreda, arreda, grande malandro!

Aboca tu, meu descaradão!”

Terminaram ali as confissões

No meio de enorme alarido.

Aquela Quaresma foi uma festa.

Aquela, sim, valeu a pena.

O Barão, com a sua ingenuidade,

Desmascarou a hipocrisia com a verdade.

 

 

LÁ VAI CRISTO

 

Há Quaresmas azaradas

Pró Statuo estabelecido.

Quanto mais proibições pior.

Naquele ano de cinquenta e cinco;

Tudo fardado a rigor

Na Mocidade Portuguesa.

A farda não impedia

Os maiores disparates.

E quantos mais se faziam

Maior era a alegria.

Até o saudoso Guimarães

Levava farda emprestada.

Ele só tinha camisa,

E tão velha e debotada

Que tinha visto, há trinta anos,

O começo da Instituição.

Nesse dia também queria

Participar no evento.

E todos, muito perfilados,

Entrámos na Sé Catedral.

As bandeiras, os tambores

As espadas e os galões

Abrem alas no altar

Para enquadrar o padre

E guardarem o guardado.

Mas quem segura a juventude,

O Craveiro, o Maurício, o Vasco,

O Bidarra, o Adérito, o Patricio,

O Herculano, o Mário, o Borges?

Todos ainda riem do episódio

Do dia anterior.

Numa lufada de riso,

Toca a bandeiras levantar

Para saudar o mistério

Que adormece gerações.

O Craveiro, todo torcido

Com a risada, dá uma bandeirada

No Cristo da cruz impante.

Nesse momento,

E perante o olhar horrorizado

De tão solene e beata assistência,

Grita o Zézé: lá vai Cristo!

Sem um mínimo de hesitação

Tirei veloz o espadeirão

E milagrei a cruz, com firmeza,

Empurrando-a para o lugar.

Ouviu-se um ó admirativo.

O padre olhou-me agradecido

E a missa continuou mais leve.

Aquele pesadelo da Quaresma,

A partir daquele ano,

Deixou de ser um engano

Tornou-se uma festa popular.

 

 

OS GAROTOS DA GUARDA

 

No tempo em que a miséria

Se passeava pela cidade

Nasciam garotos

Cuja necessidade

Os obrigava a enfrentar a vida.

Um deles, o Guimarães,

Mal deu os primeiros passos

Aprendeu a sobreviver.

Estudou os adultos

Encontrou-lhes os pontos fracos

E, sorrateiramente,

Foi crescendo.

Um dos humanóides

Engraçou com o rapaz

E prometeu fazer dele um homem.

Protegeu, incitou

Aquele desígnio selvagem

Que mais do que protecção

Precisava de camaradagem.

O Guimarães tinha de vencer.

Foi para a Universidade

Com vinte escudos no bolso.

Sorriu, acamaradou, encostou,

Fez sebentas a quinze tostões.

Fez sempre um pouco de tudo

E quando recebeu o canudo

Foi dar aulas, trabalhou no turismo,

Assessorou ministriáveis.

Escreveu artigos p'ra "Capital",

Fez televisão, revistas, livros, jornais.

Trabalhou como um mouro.

Parecia ter a resistência de um touro.

E quando tinha vencido a vida,

Morreu.

 

O ADÉRITO

 

Pequeno, azougado

Agarrado à concertina,

O Adérito estava em todo o lado

Onde houvesse festa, farra e romaria.

Estudar? Só de vez em quando .

Estudava quando lhe apertava a barriga

E o fim do período se aproximava,

Mas se na “Baco ó Vénus” se decidisse

Que havia truculência noite fora

O Adérito nunca lhe resistia.

Sempre pronto para acamaradar

Conhecia meio mundo.

Tornou-se um perito em conhecimentos

E ganhou tanto dinheiro

Que o Adérito mais parece um mealheiro

Sempre cheio e feliz por poder fazer

Tudo o que na vida lhe apetece.

 

 

A CIDADE MAIS ALTA

Subir a montanha sagrada

Onde a neve adormecida,

Vem passar o Inverno,

Não fazia parte dos planos

Que excitassem os seres humanos.

Ninho de águias,

Fortaleza inexpugnável,

A Guarda guardou o tempo,

Durante gerações

Nada mais ouviu que o vento.

Hesitantes, fugindo ao inimigo,

Chegaram os primeiros habitantes

Para aqui encontrar refúgio.

O ar puro da serra,

O lânguido cantar do vento

Depressa os seduziu.

E no ponto mais alto da terra

Nasceram novas águias.

 

 

A TERRA

 

Alta, fria, farta, elegante

A Guarda veste-se de granito

De sonho, fantasia.

Neve, chuva, granizo, nevoeiro.

O Sol abriga-a na Cova Quente,

Protege-a do vento cieiro.

Nos campos a produção é farta:

O centeio, a castanha o azeite

Irrompem da terra pujantes.

O gado passeia-se pelo terreno alcantilado

Mostra-se saudável.

E quando chegam emigrantes

O Vinho brota em cascata.

Por todo o lado as cachopas

Riem alegres e prazenteiras.

São moças da cidade e do campo,

Sãs e apetitosas:

Olhos brilhantes de pureza,

Dentes brancos, fascinantes.

Bocas ávidas de beijos,

De amor, de amizade, de desejos.

Rosto repuxado, corado pelo frio.

São mulheres de graça e confiança .

Com elas a aliança é p'rá vida.

 

 

CAPELA DO MILEU

 

Eu tive uma namorada,

Tão linda e tão meiga,

que povoava a noite.

Levava-a à capela do Mileu

Onde a beijava a medo.

Mas tantas voltas lhe dava

Que a minha namorada, inquieta,

Punha-me tento e contenção

Tirava-me do corpo a mão

E olhava-me doce e enleada

Naquela capelinha

Estava a minha Perdição.

Ali aprendi a amar.

ali saboreei os primeiros beijos.
Mas, um dia
deixei escapar

A minha “Pega”

Para a sua terra natal.

Pega, como te recordo,

Terra da minha paixão.

O nome da namorada é segredo

Que eu guardo no coração.

 

 

A GUARDA É FRIA?

 

Dizem que a Guarda é fria.

Nunca senti terra mais quente.

A alma que ela entoa

É a prova evidente

Que quem tal diz, não a sente

Nem experimentou águas do Côa.

A sua quentura é real.

Tem ceptro viril, bem erecto.

Que o diga D. Sancho I.

Enamorou-se da Ribeirinha

Fez trovas ao vento que passa

E ao “meu amigo na Guarda”.

E o que fez, o rei D. João I

À filha do judeu Barbadão?

Dois rebentos: Beatriz e Afonso.

Uma casou com o Conde de Arundel,

O outro deu origem à casa de Bragança

Ao casar com a filha de Nuno Álvares Pereira.

Fria, a Guarda? Nem pensar.

Nunca senti tanto os calores

Enquanto lá estudei, amei, vivi.

Quantas saudades tenho de ti, Guarda.

 

 

 

SOUSA MARTINS

 

Entre os homens notáveis,

Que a Guarda recebeu,

Destaca-se um entre todos:

O Dr. Sousa Martins,

Que pelo saber e inteligência,

E bondade de coração

Galvanizou a população.

Durante muitos anos, o Dr. Sousa Martins

Verificou resistência e pulmões:

Subia à Serra e levava com ele

Todos os seus amigos.

Fundou o clube dos Hermínios

Para incentivar o conhecimento

Sobre o benefício do clima de altitude.

Escreveu sobre a Serra,

Sobre a terra

Sobre as gentes

Sobre os seus desígnios,

Sobre as suas qualidades.

E elas são tantas que a rainha D. Amélia

Incentivou a edificar, na Guarda,

O Sanatório Sousa Martins,

Casa que todos os doentes

Ficaram a estimar e a admirar.

Muitos deles aqui se fixaram

Na saudável Cova Quente

E contribuíram para que a Guarda

Se tornasse próspera e mais feliz

Porque eles próprios

Recuperaram a felicidade

E muitos por aqui ficaram

Neste clima privilegiado.

 

 

A COZINHA ECONÓMICA

 

Embrulhados nos seus trapos,

Com pequenos sacos na mão,

Junto à portaria

Amontoavam-se os pobres.

O estômago é uma obsessão

Para quem vive de esmolas.

A cozinha económica

Era a salvação dos desamparados,

Daqueles que nada tinham

Por nascimento,

Não por falta de merecimento.

Comiam sopa e um pouco de pão.

Não morriam à fome não,

Mas faltava-lhes a dignidade

Que só o dinheiro concede.

Os guardenses não se conformaram;

Primeiro ajudaram a sobreviver

E logo que puderam

Juntaram à cozinha económica

A instrução.

E a Guarda tornou-se o que é:

Uma cidade de progresso

Uma cidade de futuro

Uma cidade onde apetece viver.

 

 

OS CANTORES

 

Quando pela madrugada

O silêncio adormecia a cidade

Havia sempre rapaziada

A fazer sua maldade.

Primeiro uma patuscada

De galinha bem tirada

Ao António Pinto.

Era o próprio cantor, o Calheiros,

Que gostava de escolher

O galináceo a surripiar.

“Queres a preta ou a pedrês?”

“Uma qualquer, apressa-te”

Mas ele insistia sempre

“A preta ou a pedrês?”

“A pedrês, sussurra o Pissarra”

A festa era na República Baco ó Vénus

Sedeada na Pensão Central.

Daí saíamos, em surdina,

Todos de capa e batina

Cantando à Mariazinha, à Ludovina.

E por fim, todos bem bebidos

O Joaquim Craveiro e o Calheiros

Cantavam até à Lua.

O que era preciso era cantar,

Deitar fora a força e as mágoas.

No dia seguinte, de manhã,

Com o ar fresco a dar no rosto

Ninguém sabia dizer

Se aquela boa disposição

Era da juventude

Da Galinha

Dos amores

Ou do mosto.

 

GÁRGULAS e GARGANTAS

 

Todas as pedras da Guarda servem de inspiração

E quanto mais quente me sentia

Mais a veia produzia sons que só eu escutava.

Aos outros então mandava:

Cantai, cantai, cantai!

Insistia com o Craveiro e o Calheiros.

“Vai-te encher de moscas” dizia o Joaquim.

“Craveiro canta, canta, vai por mim.

Canta às gárgulas jacentes

Que nos espreitam admiradas.

Vê como abrem as bocarras

Fazendo-vos concorrência.

“Canta tu, meu desbocado.

Eu e o Calheiros cantamos fado

Não vamos nas tuas tolices.”

“Façamos-lhe a vontade,

Senão nunca mais se cala”.

Moderava o Calheiros.

E os dois começavam:

“Gárgulas da Guarda cantai

Nossas penas, nossas dores

Por todo o mundo levai

As penas destes cantores.

Levai-nos ao rio Mondego

Faz de nós os seus doutores

Leva connosco os amores

Deixai os pais em sossego.

Cantai Gárgulas da Sé

Cantai gárgulas da cidade

Leva-nos para longe do Zé

Não percamos a mocidade."

"Estás satisfeito, ó bruto?”

Perguntavam os dois a seu tempo.

Eu olhava-os feliz de contente.

Se até estes “animais” cantavam,

O mundo ainda não estava perdido.

 

 

O DISCURSO

 

Quando o D. Sancho apareceu

Tivemos mais um companheiro.

Sempre que ninguém nos queria ouvir

Fazíamos discursos ao D. Sancho.

Falávamos, falávamos, falávamos

Sempre com a sua aprovação.

Foi assim que treinámos o futuro:

Uns foram advogados, outros procuradores

Outros juízes, outros deputados, outros

Professores, melhores que os anteriores.

Trabalhadores em diferentes profissões,

Outros militares.

Estes foram os mais sacrificados:

Além de sempre aprumados

Pediram-lhes compostura

E bravura ao serviço da Pátria.

E foi assim, por causa desta ideia,

Que o Casimiro entregou a vida.

O Casimiro, que era o mais irreverente.

Depois de ser militar

Tornou-se intransigente consigo.

Paz à sua alma e aos seus discursos

Que eram os mais atrapalhados.

 

RUAS

 

Estas ruas estreitas, sinuosas,

Aconchegam-nos, atraem-nos

Como se vivêssemos

No útero materno.

A Guarda abraça-nos

Enleia-nos nas ruelas

E por elas passamos contemplativos.

Não há uma rua, uma esquina

Uma escada

Que não nos marque.

A Guarda é a nossa guardiã.

Altiva nas suas alturas,

Elegante nos seus contornos.

Quente e fria:

É pujança e abastança.

Quem viveu na Guarda

Nunca mais deixou de a amar.

 

O CHAMIÇO

 

Todos os dias encontrava

O Chamiço, bêbado e poeta.

Para lhe acirrar a veia

Dizia-lhe volta e meia:

“Ó Chamiço, não te aguentas nas pernas”

O “poeta” olhava-me com desprezo.

“Estudantes, putas e padres

Quanto mais longe melhor.

Não dão nada a ninguém.

O estudante julga-se doutor

A puta fornica sem dor

E o padre julga-se alguém

Porque engana toda a gente

Vendendo, aos bocados, o que não tem.”

Eu voltava ao ataque:

“Ó Chamiço, não sejas ordinário.

Vê se tens tento na língua”

“ Tem tu, estudante de palavreado.

O Chamiço respeita. Ia calado”.

Mas eu não resistia.

Agora tinha de o elogiar:

“Tu podias viver como um rei,

Com a tua veia poética,

Que a Guarda vai guardar”.

Ele olhava-me hesitante.

“Estudantes não sabem nada.
Para que quero eu o dinheiro?

O que tenho mantém-me inteiro,

E ninguém necessita mais

Do que pode gastar.”

 

O SOL DA GUARDA

 

Hoje o Sol escondeu-se

Na Mata da Dorna.

A filha do sapateiro chora

Porque não tem sapatos.

O frio entra pelas frinchas

De todas as portas

E pelo tecto de telha vã.

“Acontece-nos isto

Porque és ateu.

Não acreditas em Deus

E ele castiga-nos”

Lamuriava a mulher.

O sapateiro, de sovela na mão,

Respondia-lhe:

“O teu Deus é o meu.

O meu Deus é o trabalho.

E quando o há e é bem pago,

Quem o pagou

É o meu Deus.”

“Blasfemo

Que nos afastas a sorte!”

Grita-lhe a mulher.

Tens razão:

“Somos pobres de espírito.

E não há maior pobreza

Do que não entender a natureza

E não compreender

Que nascemos pobres,

Que não estudámos,

Que nos querem pobres

Para nos lamentarem.”

O Sol, de envergonhado,

Baixou a cabeça

Na Mata da Dorna.

 

 

O ACIDENTE

 

Nas aulas de Inglês

O Aristides teimava

Em nos fazer decorar

O texto do livro.

Como ninguém o fazia

Havia sempre berraria

Com varada de escarchar.

Um dia, o Zé António inventou

Um método infalível de enganar

O Varapau.

Depois de ler a lição

E das perguntas sacramentais

Passávamos à punição.

Até que, farto de apanhar,

O Zé António expedito

Pedia para ir ao quadro

Onde colocava um papelito

Com o texto salvatério.

Milagre da ousadia;

Passámos da pior turma

Para a melhor turma do dia.

Tudo corria pelo melhor

Seguindo os trâmites normais,

Mas uma vez terminada

A acareação, o Zé António

Tirava dissimuladamente

O papel bendito.

Sem o ter percebido

O Maurício foi chamado:

“Sabes de cor a lição?”

"Sei sim", disse o Maurício enchendo o peito.

Foi o desastre total.

O Maurício, de óculos muito graduados,

Bem procurava a tábua da redenção

Enquanto a turma gargalhava

Por ver a sua aflição.

O Aristides distribuía,

Varada a torto e direito

Mas a rapaziada, perdida de riso

Não parava, e o Aristides insistia:

Diz.
Mas, o Maurício, nem do título

Se lembrava.

E levou tanta varada

Que andou dias a maldizer

A ideia disparatada

Que o tinha levado a perder.

 

A GENTE DA GUARDA

 

Amigos do seu amigo

Como os da Guarda não há:

Naturalidade, espontaneidade

Franqueza, urbanidade,

Tudo esta gente recebeu da natureza

Em doses prenhes de amor.

Na Guarda aprende-se a fraternidade

De um modo tão singelo

Que até os do Jarmelo

São Guardenses dos mais puros.

A cidade irradia para as aldeias

Toda a força da sua pureza

E é um encanto.

O encanto da gente e da natureza

Que se confundem no amor

Que a terra transmite.

Desde Avelãs da Ribeira,

Rochoso, Trinta, Gonçalo,

Valhelhas, Vale de amoreira,

Fernão Joanes, Aldeia Viçosa,

Vila Garcia, Adão, Famalicão,

Vila Fernando, Ramela,

Alvendre, Cavadoude, Faia,

Meios, Vila Soeiro, Mizarela,

Aldeia do Bispo, Codesseiro

Benespera, Corujeira,

Vila Cortês do Mondego, Vela,

Porto da Carne, Sobral da Serra,

Castanheira, Carvalhal Meão,

João Antão, Santana da Azinha,

Pêro Soares, Seixo Amarelo,

Videmonte, S. Miguel de Jarmelo

Vila Franca do Deão, Vale da Estrela,

Albardo, Gagos, Marmeleiro

Pêra do Moço, Vale de Amoreira

S. Pedro de Jarmelo, Casal de Cinza

Monte Margarida, Pousada,

Rocamondo, Maçainhas de Baixo,

Panóias de Cima, Arrifana,

Gonçalo Bocas, Ribeira dos Carinhos,

Até Pega

De tantas recordações

E corações despedaçados

Que todos os seus pecados

Têm sido anos de sonho.

A Guarda, com as suas freguesias;

A Sé, São Vicente, São Miguel da Guarda

É a minha amiga que tarda.

 

GRANITO

 

Talhados nos rochedos

Nascem homens e monumentos.

A terra ergue-se pujante

Regada a suor, sangue e gritos.

“Puxa, corta, adelgaça, levanta”.

Rasga-se a serra, rasga-se a montanha

Para a fecundar, para lhe dar a alma.

A alma, esse enorme pensamento

Está impregnado na Sé Catedral,

Nas casas humildes da Judiaria

No Paço Episcopal, nas muralhas,

Na torre de Menagem, nas portas da cidade,

Nas calçadas, na Torre dos Ferreiros.

E tudo respira,

Tudo se manifesta na humanidade

Que o granito conquistou,

Mas o homem modelou.

A Guarda é toda granito:

Uma enorme fortaleza

De gente sã.

O granito é o nosso cristal.

E a cidade? A mais nobre de Portugal.

 

A MERENDA

 

Merendar ao ar livre, Sol e vento

É um dos prazeres dos guardenses.

Em dia de festa, não há coisa igual.

Se a Mata e o Parque são aprazíveis,

Nas festas da Santa Cruz

Há povo por todo o lado.

E nas festas da Senhora do Mileu?

Entre benzeduras e orações

Cada um larga os sermões dos padres

E procura o melhor lugar para merendar.

Todos são convidados ao festim.

Tudo é farto, agradável, apetitoso.

Os sacerdotes terminada a função

Olham gulosos cada refeição;

Escolhem a melhor entre as melhores

E aí abancam, sem cerimónia,

Que o estômago não perdoa mais demoras.

Vêm de todo o país, nestas alturas,

Excursões para o festim.

Visitam os amigos, os pais, os avós.

Uma minhota que tudo observa

Repara no padre, de guardanapo ao pescoço.

“Ai, o senhor abade, como ele se sente bem.

Gosta de manjedoura farta como eu.”

O marido dá-lhe uma cotovelada.

“Ó homem, que modos!”

“Vê se evitas a asneira”

Diz-lhe o homem envergonhado.

“Vê lá tu, se falar é pecado"

A Guarda orgulha-se da sua gente.

Em dia de festa tudo se conhece

E quem quiser merendar, aparece.

 

 

O VOLFRÂMIO

 

Nesta cidade altaneira

Aqueles que mais me impressionaram

Foram os homens que labutaram

À procura do volfrâmio.

Um deles, cujos netos são conhecidos,

Contou-me quantos sacrifícios

Passou para sair da miséria.

Mas conseguiu, à força de vontade.

E agora, naquela idade;

Já tinha setenta e seis anos

Aquilo que recordava com mais saudade

Era a sua Marília.

Resistira à maldita silicose,

Resistira à fome e ao frio,

Mas à morte da Marília

É que não conseguiria resistir.

“Sabe, dizia ele, a saudade mata,

Ai se mata! Para que serve o dinheiro,

Se eu não lhe pude comprar a vida?” 

O volfrâmio era o ouro negro

Que Portugal exportava sem ruído.

E este homem, que o tempo tinha vivido,

Mais nada queria da vida que a sua Marília.

São assim os homens da Guarda e do concelho:

Cegos pelo trabalho, mas sempre

De coração aberto para a família.

 

 

O REGIMENTO

 

Fazendo parte da cidade;

O Regimento de Infantaria 12,

Mais o Liceu, o Seminário,

O colégio das Doroteias,

O Outeiro de S. Miguel,

A Escola Regional

Eram pólos de alegria e vivacidade

Numa cidade onde a chuva, a neve,

O frio e o cinzento dos muros

Poderiam esmorecer as gentes.

Mas não. Na Guarda

O sangue circula.

O Regimento, com as suas marchas,

Alvoroçava toda a cidade.

"Toca a banda no coreto?"

E a este sinal de alarme

Todos acorriam e ouviam

Enleados na harmonia

Aqueles jovens magalas

Que melhor que a telefonia

Davam espectáculo ao vivo.

Foi assim que a Guarda cresceu.

 

OS CAFÉS

 

No tempo em que havia cafés

E em Portugal tínhamos o Tejo

Sem as barragens de Espanha

Que aos poucos e poucos

Tudo arrebanha

Naturalmente e com muitos euros,

Havia cafés na Guarda

Onde a juventude estudava

Jogava bilhar e conversava.

Era ali que as farras eram combinadas.

Passávamos da Cristal para o Mondego

Corríamos para o Monteneve.

Eram o lugar de encontro privilegiado

Para um descanso ou uma maroteira

Que os empregados, de paciência santa,

Tentavam acordos complicados

Desde que os estudantes estivessem avinhados.

Eles sabiam quais os limites.

E, se nesse dia não levavam a melhor,

No seguinte chamavam o futuro doutor

E lá o convenciam a pagar a garrafa

Perdida por baixo da capa e batina.

Hoje não existem cafés

Como os de antigamente.

Hoje o café chama-se lucro, euro,

Muitos euros e até a Guarda caminha

Para a globalização.

Vamos ver se a sua altura a salva

Da padronização universal.

Pode não ter sido aqui

Que nasceu Portugal,

Mas foi seguramente aqui

Que nasceram os primeiros portugueses.

 

O CONVENTO DE SÃO FRANCISCO

 

Quantas vezes a bebedeira

Nos adormecia a decência

E com muita irreverência

Cantávamos à Ritinha.

O Calheiros bem se esforçava

Para que a heresia não fosse grande.

Eu fazia a letra num instante.

Rita de Cássia aparecia

Como se fosse a namorada

Que não ligava importância

Ao estudante desbocado

Que tinha a ousadia

De cantar, sem harmonia,

A uma santa consagrada.

A paixão era tão grande

Que o amor platónico servia

Para contentar o estudante

E fazer com que o tunante

Ficasse mais aliviado.

No convento de S. Francisco

Por onde a santa passara

As paredes ainda gemiam

Pela santa que guardaram

E que os olhos comiam.

Esta ideia de sedução

Criava no estudante a paixão

E o platónico suspiroso aqui deixava

Desejo e coração.

Quantas saudades Ritinha!

 

 

A COVA FUNDA

 

Tinha ido para a Guarda para estudar.

Eu queria fugir de mim,

Das minhas cedências,

Do dinheiro que me perdia.

Mas há um destino que aponta

O caminho do irresistível.

Logo no primeiro dia

Cruzo com o Manuel Poppe

Que afirmava acalorado,

A quatro foliões,

Que o vinho da Cova Funda

Deitava qualquer um abaixo.

“Menos ao Simões”

Disse eu ao passar.

O Poppe, que não me conhecia,

Desafiou-me imediatamente:

“Pago meio litro se o beberes.”

Olhei-o arrogante: é para já.

Depois de bebido, o Poppe abanou-me:

“Não estás bêbado?”

“Nem que fossem cinco litros”

Respondi-lhe desandando.

O Poppe disse:

“Se ele consegue... e eu, por que não?”

Bebeu do tal tinto.

A partir daí nunca mais se entendeu:

Foi ao Colégio das Doroteias

Onde tinha uma namorada.

Chamou por ela, falou com ela,

Mas como a Fernandinha

Lhe sentiu a enorme bebedeira

Recusou sair do lar sereno.

O Poppe, não esteve com meias medidas,

Agarrou-a pelo cabelo,

Arrastou-a pela escada.

Foi um escândalo.

Mas o Poppe...

Era filho do senhor Desembargador

Afinal a culpa maior

Tinha sido minha

Pois era um grande bebedor.

Assim se fez a fama

De um estudante que queria estudar

Mas cuja fanfarronice

Lhe marcou mais um ano de estroinice.

 

 

O FUNERAL DO CINEMA

 

Quando os estudantes se zangam

E se resolvem congregar

Cuidado, gentes do dinheiro

Ou em quem neles quer mandar.

Sentindo-se ofendidos,

Por o bilhete aumentar

Para vinte e cinco tostões

E por um deles ser insultado,

Juntou-se a academia

Para saber o que faria

A tão insólito proceder.

Aumentar? Insultar um dos seus “académicos?”

Um dos seus pares de estroinice?

Quem ousar tal é punido.

E na Assembleia foi decidido

Que nem um só estudante

Entrasse naquele cinema.

O prevaricador recebia a pena

De cabelo rapado.

Mas, se para os donos do cinema

O prejuízo era grande,

Para a juventude era um sacrifício;

Os divertimentos não abundavam.

Um ou outro não resistia

A tamanho sofrimento,

Era cedo para ir para a cama.

E lá ia, às escondidas, bem disfarçado.

Mas os veteranorum sempre alerta

Esperavam-no à saída.

Rapado e bem rapado foi o Tracana.
E o Paulinho Miróscas

Também não se livrou de uma boa corrida.

Naquele ano nem o cinema ganhou

Nem os estudantes se divertiram.

 

O BAPTISMO DO CALOIRO

 

Um bom começo de ano

Tem sempre umas boas histórias,

Salpicão, presunto e queijo

Que um ou outro trouxe de casa

Para os amigos, e para matar o desejo

Enquanto se esperam os caloiros.

Quando o “rebanho” está composto.

Seguem as intimações:

Tu e tu e tu trazem o lençol.

Tu e tu vêm de calções,

Aquele vai de braguilha aberta.

Juntos em duas centenas,

Aí vai a caloirada rumo à Dorna;

Um chafariz a preceito

Onde começa o baptismo

Sempre à espera que um refile.

Tem de haver um refilão

Para que nesta provocação

O baptizado ganhe animação.

Se não há, inventa-se.

É preciso ganhar vontade

Para ao entardecer e à noitinha

Os veteranos celebrarem, entre pares,

Os louros da sua sapiência.

Correm-se as tabernas

Ouve-se da Libânia os conselhos

Vêem-se, às meninas, as pernas

Para excitar as serenatas.

E quando já de madrugada

Só restam dois ou três.

Eles prometem, já “torcidos”

Fazer baptismos de mês a mês.

 

NOTAS A CINCO PAUS

 

Nas aulas do António Pinto

Quando as preparações ferviam

E cada um lhe perguntava

O disparate mais incrível,

O Cruz, o contínuo,

Tentava ajudar o Pinto,

Mas já o Feio se lambuzava

De sacarose e glucose.

O Pinto não sabia para onde se voltar,

E o Cruz, que tudo sabia, preparava as soluções.

Nesses momentos, o Bardino,

Roubava a caderneta ao professor

E aos que tinham negativas perguntava:

“Queres que te passe o nove para dez?”

“Quero” respondia o infeliz.

“Cinco paus”

E de cobrança em cobrança,

O Bardino, arranjava sempre o suficiente

Para lancharmos na Orquídea.

 

 

O MEIA LECA

 

Dois palmos de altura

Metro e meio, mal medido,

Eis o Meia Leca da estatura

Do Marquês de Pombal.

É verdade que não reconstruiu Lisboa,

Mas conhece-o todo o Portugal.

É da Guarda natural

Como estudante de peito.

As suas tropelias são tantas

E as bebedeiras tão famosas

Que era o ídolo da estudantada.

O Meia Leca era a graça

Que não ofende.

Pequenino, irrequieto, matreiro.

Nas aulas do Zé Vilhena

Tinha sempre maneira de colocar o capote

No cimo de um alto cavalete.

Logo que a aula era estopada

Pedia, ao Zé, licença,

Para tirar do capote o lenço.

Ao ficar a baloiçar

Na haste gigante a partir

Logo gritava o professor:

Agarrai-o que se mata, agarrai-o. 

Era o que todos queriam ouvir.

O Meia Leca a sorrir

Passava ali dez minutos

E a aula terminava

Com toda aquela “cambada”

A sair com o Meia Leca aos ombros.

Mas a sua fama é tal

Que foi cantado em esparsa

Pelo Shegundo Galarza

E oferta a “su” amigo

Meia Leca.

 

 

 O OFICIAL

Diplomata da palavra
Porte de aristocrata:
Alto como uma torre,
O Zé Dias confundia
Com quem com ele convivia
Nos terrenos da Egitânia.
Oficial garboso,
Sempre fardado a rigor.
Incapaz de uma ofensa
Era o modelo da elegância
Da brincadeira e da prudência.
Admirava-o como a um deus.
Passaram mais de quarenta anos
Sem o voltar a encontrar.
E no encontro que tivemos
Não nos reconhecemos:
O meu deus encolhera no tempo,
Eu envelhecera na idade.
Da juventude ficou a semente:
O Zé Dias ficou como referência,
Como modelo de sã camaradagem.
E na minha viagem pelo tempo
Serviu-me de luz e de contenção.
O Zé Dias foi na Guarda
O grande amigo,
Um exemplo, a melhor lição.

 

O INVERNO

 

As noites de Inverno

Seriam de inferno

Para os menos protegidos.

Como sobreviviam?

Que força anímica os ajudava

Na caminhada da vida?

A rua da Torre era gelo.

Perto dela a taberna.

As almas engelhavam.

A cidade encolhia.

Os filhos tremiam.

A aguardente aquecia

Enquanto a neve caía.

O Inverno na Guarda

Foi o agasalho dos pobres

No cemitério.

 

O CALIFA

 

Refastelado na padiola

Abanado com leques de plumas

Meia Leca, o mariola,

Ia feliz como um nababo.

Atrás do lorde ia o séquito

Envolvido em lençóis brancos.

E enquanto a gente da Guarda

Se perguntava “o que era aquilo?”

O Meia Leca exigia

Um maior número de abanões

E mais um dos garrafões.

O Califa não se cansava de beber

Perante o desespero dos carregadores.

“Ó Meia Leca, passa para cá.

Não há quem aguente mais!”

O Meia Leca benzia-os

Com umas gotas de tinto.

“Carregai, carregai mais um pouco,

É só chegar até à Dorna”

“Acabou! disse o mais zangado,

Isto do Meia Leca ser nababo

Cansa e seca que se farta!

Ou nos passas já um garrafão

Ou vais ver o trambolhão

Que o Califa dá.”

O Meia Leca, vendo o perigo, respondeu

“Bebei rapazes, bebei

E a toda a gente dizei

Que o Meia Leca não gosta de ver sofrer”

Mas não resistindo à brincadeira

Despejou-lhe os garrafões sobre as cabeleiras.

 

 

A SOVA

 

Estudar? Nem é bom pensar.

Quem gosta de tal canseira?

Só os professores

Que esqueceram a juventude

A praxe e outras facécias.

Entre os mais ferozes

Estava o “Paramécias”,

Que num dia mais violento

Deu, num exercício, medíocre menos,

Ao meu amigo Cameira.

E, não contente com a asneira,

Exigiu que o mesmo fosse assinado

Pelo encarregado de educação.

O Cameira pediu ao encarregado Moreira

Para lhe escrever por favor:

“Carreguei-lhe deveras com um pau”.

Quando chegou diante do vilão,

Este viu-o todo torcido e dorido.

Perante o espanto do professor

O Cameira aponta-lhe o caderno.

Logo que o carrasco tal leu

Riu, o boçal, esfregando as mãos.
”Levaste, sofreste, apanhaste,

Louvado seja Deus!

Esse Encarregado de Educação

É cá dos meus.

A partir de agora ficas debaixo de olho”

“Não faça isso”, gemeu o Cameira

Fazendo voz de sofrimento,

“Senão o senhor Moreira

Ainda me deixa zarolho”

E enquanto a estudantada

Via o tempo da aula passar

O “Paramécias” ria contente;

Tinha encontrado, finalmente

Um verdugo à sua altura.

Éramos assim educados,

Entre varadas e palavrões.

 

 

AO MANUEL CALDAS

Os Homens caem lentamente.

Espíritos lançados ao mundo

Que crescem pela solidariedade.

Tu, Manuel,

Confundiste o eterno e o presente.

A tua amizade espalhou-se,

Foi a semente

Que Deus lançou ao mundo

Para nos servir de exemplo,

De boa disposição pela fraternidade.

Agora, Manuel,

Exageraste, voaste longe.

Foste de abalada

Para o lugar a todos reservado

Onde o espírito se confunde

Com o universo.

Espera por nós, Manuel Caldas,

Com calma.

Mais ano menos ano todos aí estaremos

Numa tertúlia mais apetecida

Onde viveremos menos para a comida

E mais para a discussão forte e farta

Como é próprio da gente da Guarda.

Espera por nós Manuel.

Garanto-te que nenhum de nós faltará

Promessa de Cunha Simões

É para cumprir.

Um abraço, Manuel.

 

 

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